Meio Ambiente
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26 de dezembro de 2023
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14:47

Retrospectiva: O ano em que o Guaíba deu um aviso a Porto Alegre

Por
Luís Gomes
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Elevação do nível do Guaíba causa inundação em diversos pontos da cidade. Vista da Avenida Mauá. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Elevação do nível do Guaíba causa inundação em diversos pontos da cidade. Vista da Avenida Mauá. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O ano que se encerra no próximo domingo foi marcado, em Porto Alegre, por cheias recordes do Guaíba, atingindo as duas maiores marcas desde a enchente histórica de 1941, quando parte da cidade ficou embaixo d’água e imagens mostram pessoas trafegando de barco pelas ruas do Centro. Em setembro, na esteira das chuvas que devastaram o Vale do Taquari, o Guaíba atingiu um pico máximo de 3,18 m [3,17 m na conta oficial da Prefeitura] na altura do Cais Mauá. A marca foi a maior registada desde 1967, quando o Guaíba havia atingido 3,13 m, e a segunda maior da história, atrás apenas dos 4,76 m de 1941. Contudo, ela logo seria superada, uma vez que, em novembro, após mais uma sequência de fortes chuvas no Estado, atingiria um novo pico, de 3,46 m, o que levou o prefeito Sebastião Melo (MDB) a decretar estado de emergência.

As duas cheias significaram os primeiros testes verdadeiros do Muro da Mauá, construído no início dos anos 1970 como parte do Sistema de Proteção Contra Cheias de Porto Alegre. Fechadas nas duas ocasiões, as comportas do Guaíba precisaram ser reforçadas com sacos de areia em setembro. Contudo, em novembro, com a maior pressão das águas, uma das comportas, a de número 13, rompeu, permitindo que a inundação avançasse sobre a região do bairro Navegantes.

O sistema de proteção contra cheias da cidade foi tema do podcast De Poa publicado em 5 de outubro. No programa, os professores Joel Goldenfum e Gino Gehling, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS explicaram sobre o papel que o Muro da Mauá desempenha e avaliaram as discussões a respeito da retirada da estrutura, ponderando as alternativas que existiriam e os seus riscos.

Em sua região continental, Porto Alegre também registrou inundações em áreas não protegidas pelo sistema de proteção, como os bairros Ipanema e Guarujá. No entanto, os maiores efeitos das cheias foram sentidos, nas duas oportunidades, na região das Ilhas. O repórter Luciano Velleda visitou a Ilha da Pintada em 26 de setembro, encontrando um cenário que descreveu como “desolador”. Ao lado da sede da Colônia de Pescadores Z5, em uma rua completamente submersa pelas águas do rio Jacuí, conversou com moradores que recorriam a canoas para acessarem suas casas. “Ir pra onde? É triste”, disse um dos entrevistados, resignado com a situação.

No final de novembro, Velleda voltou à região do bairro Arquipelágo e contou histórias de pessoas que haviam sido atingidas pelas duas cheias. “A maioria não sai por falta de condições. As casas não valem muito e, se vender, não se consegue comprar outra. Então o pessoal não sai porque não têm condições”, disse a ele Sabrina Araújo, 33 anos, que não só teve estragos materiais em sua casa, como perdeu 20 galinhas para a força das águas.

 

Moradores da Ilha da Pintada enfrentaram os efeitos das duas cheias em três meses | Foto: Luiza Castro/Sul21

Das cinco maiores cheias do Guaíba registradas desde 1941, quatro ocorreram nos últimos oito anos. Em 2015, foi atingida a marca de 2,94 m, aproximando-se, mas sem superar os 3 m da cota de inundação na altura do Cais Mauá. Em 2016, foi registrada a marca de 2,65 m. Contando as cheias deste ano, a única exceção neste “Top 5” é a de 1967, antes da construção do Muro da Mauá, quando o Guaíba alcançou 3,13 m.

Em setembro, antes de um nova marca histórica ser atingida dois meses depois, uma reportagem do Sul21 já se propunha a discutir que não se tratava de casualidade ou infortúnio, mas de uma situação diretamente vinculada ao aumento dos eventos climáticos extremos, agravada por um modelo de cidade que não prepara Porto Alegre para cheias e inundações. Pelo contrário, permite o avanço de grandes blocos de concreto e a devastação da cobertura vegetal sobre as margens do Guaíba, em áreas que servem de “amortecimento” para a inundação.

Um dos casos que mais preocupam os ambientalistas neste sentido é o avanço do projeto na Fazenda do Arado Velho. Área de banhado, caracterizada por ser inundável pelo Guaíba, a região deve abrigar um “bairro planejado” e ver a urbanização de 426 hectares. Por coincidência, o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) do projeto foi aprovado pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) em 22 de agosto, poucas semanas antes da primeira cheia.

“A água não escoa, e vai para onde? Ela vai ocupar as regiões alagadiças, alagáveis e inundáveis da margem dos corpos d’água. E essas regiões acabam cumprindo um importantíssimo papel de amortecimento da inundação. Quer dizer, elas são como um local em que há uma possibilidade de estocagem de água, o que é muito importante porque, do contrário, essa água pode então extravasar para inundar regiões habitadas. Por isso, as regiões alagadiças nas margens dos corpos d’água são muito importantes”, explica Rualdo Menegat, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre.

 

Fazenda Arado Velho durante a enchente de setembro de 2023. Foto: Preserva Arado/Divulgação

Apesar de não alterarem oficialmente os planos da gestão Melo para a cidade, as cheias de setembro e novembro já obrigaram a Prefeitura a repensar a relação com a Orla. Diante dos estragos causados pela inundação nos trechos 1 e 3, o projeto do trecho 2 passou a receber propostas de alterações para que seja acompanhado da elevação da altura do solo. Contudo, o dilema que está colocado para o futuro da cidade é sobre quais recordes serão alcançados e como a cidade se relacionará com seu mais importante curso d’água, bem como quais lições são aprendidas a partir de eventos como os deste ano.

O engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti, integrante dos coletivos Preserva Arado e Ambiente Crítico, avalia que esta expansão predatória sobre áreas que deveriam ser preservadas sequer faz sentido em uma cidade que, conforme apontou o Censo Demográfico de 2022, perdeu 5,4% de sua população com relação a 2010. “Qual é a razão de a gente ocupar as várzeas? Não tem motivo além de vender terreno. O nosso entendimento é que devemos pensar uma cidade que respeite a dinâmica da natureza. Aquela área lá tem uma vocação ambiental de absorver a água da chuva, do Guaíba, é uma área que, proporcionalmente para toda a planície do Guaíba, pode ser até mesmo pequena, mas temos que ter uma filosofia de como ocupar os ambientes, de como regrar o uso dos ambientes. A gente não precisa alocar recursos para aterrar aquela área, não precisa criar esses ambientes aterrados, sendo que nem tem mais necessidade de expansão urbana em Porto Alegre. Inclusive, tem 100 mil domicílios vazios na cidade”, diz.

Uma expansão que, na verdade, é contraditória também com ideias defendidas pelo prefeito Sebastião Melo e pelo secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre, Germano Bremm, no âmbito das discussões da revisão do Plano Diretor. Ao menos publicamente, ambos têm defendido a ideia de uma cidade mais adensada, mais caminhável, com fachadas ativas e outras atributos que identificaram como apreciáveis em viagens para a Europa.

Na prática, contudo, quem anda pelas ruas vê que a cidade em construção não é essa defendida no discurso, mas aquela em que os interesses dos grandes empreendimentos predominam sobre a preservação ambiental. Um dos casos mais emblemáticos é o do projeto de parque temático em construção no Parque Harmonia. No início de julho, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) denunciou o corte predatório de 435 árvores e o impacto da medida na flora e na fauna, que inclui o habitat na cidade de dezenas de espécies. “Este deserto sem verde formará uma ilha térmica de asfalto, concreto e construções ocupando a maior parte da área para megaeventos, para gerar lucro. Quem ganha com isso?”, questionou o professor Paulo Brack, do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador-geral do InGá.

Em defesa do empreendimento, o secretário Bremm argumentou que o cenário, de fato, parecia um “pouco assustador”, mas disse que isso seria natural em uma grande intervenção e pediu para a população lembrar “de todos os desafios que tivemos antes de entregar o trecho 1 da Orla”.

Uma batalha de liminares foi travada ao longo do mês de julho e no início do mês seguinte, mas uma decisão do desembargador Marcelo Bandeira Pereira, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), liberou, em 4 de agosto, a prosseguimento das obras do parque, que terá como grande atrativo uma roda gigante de 72 m. Para o magistrado, os diversos danos ambientais denunciados pelos autores da ação não poderiam justificar a paralisação total das obras, afinal, a supressão vegetal e a terraplanagem da área já estavam praticamente concluídas, restando apenas os arremates que trariam os “benefícios inicialmente propostos”.

 

Vista aérea do Parque Harmonia, em foto produzida pelo InGá no começo de julho. Foto: Gabriel Poester

A prevalência dos interesses dos grandes empreendimentos na construção de Porto Alegre foi o tema de investigação da série de reportagens “Donos da Cidade”, publicada em novembro. Composta por um mapa interativo, um minidocumentário, seis matérias que analisam o rumo na cidade na última década e 12 análises de caso de empreendimentos que foram aprovados ou estão em vias de aprovação e que precisaram de mudanças de lei ou se aproveitaram de alguma brecha legal para saírem do papel. Na maioria das vezes, as leis mudadas ou ignoradas tratavam da preservação e do impacto ambiental.

Ao longo do ano, outro tema que causou grandes debates na seara urbanística, também com previsão de impacto ambiental, foram os grandes espigões. Em março, durante a abertura da Conferência de Avaliação do atual Plano Diretor de Porto Alegre, Melo fez questão de frisar em seu discurso que, para ele, a cidade não deveria ter limite de altura para construções e que um dos prédios em construção que promete ser o “mais alto da cidade”, com 127 m e ser erguido no 4º Distrito, “ainda tá baixo”. Em setembro, outro empreendimento, na mesma região, recebeu liberação da Aeronáutica para ter 130 m de altura. A autorização foi necessária porque a construção poderia interferir com o Aeroporto Salgado Filho.

No final de agosto, o Sul21 trouxe à tona o debate sobre outro espigão, um projeto de 41 andares da construtora Melnick para um lote entre as ruas Fernando Machado e Duque de Caxias, a Prefeitura de Porto Alegre. Posteriormente, uma nova reportagem debateu as inconsistências e falta de explicações da Prefeitura e da construtora sobre o projeto, como o fato dele superar o limite de 15 andares ou 45 metros previstos na portaria da Secretaria Estadual da Cultura (Sedac) que tombou o Museu Júlio de Castilhos, vizinho ao lote, como patrimônio histórico do Rio Grande do Sul. Ainda em fase de licenciamento, o projeto gerou uma série de questionamentos sobre os seus impactos negativos, incluindo do Ministério Público Estadual (MP-RS), do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS) e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O ano de 2023, contudo, não foi apenas de derrotas para o movimento ambientalista da cidade. Em outubro, a Prefeitura confirmou que o processo de concessão da gestão do Parque da Redenção, revelado pelo Sul21 em setembro de 2022, estava sendo engavetado — ao menos na atual gestão.

 

Prédio de 41 andares projetado para a Av. Duque de Caxias | Foto: Reprodução

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