Geral
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2 de dezembro de 2023
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09:35

Divididos entre ficar e ir embora, moradores da Ilha da Pintada tentam recomeçar a vida

Por
Luciano Velleda
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Sabrina, à esquerda, não pensa em deixar a ilha; Patrícia, ao lado, sairia se pudesse. Foto: Luiza Castro/Sul21
Sabrina, à esquerda, não pensa em deixar a ilha; Patrícia, ao lado, sairia se pudesse. Foto: Luiza Castro/Sul21

Quem passasse na frente da casa nº 594 da rua Martinho Poeta, em Eldorado do Sul, na tarde da última quinta-feira (30), veria na calçada um gazebo protegendo um amontoado de sacolas e sacos plásticos. No lado de dentro do pátio, veria também a varanda da residência completamente tomada por mais sacolas e sacos contendo roupas separadas para serem entregues às vítimas da maior enchente vivida pela comunidade desde 1941. O que os olhos provavelmente não captariam seria o estado de ânimo das três mulheres ali trabalhando, separando e organizando uma montanha de doações.

Menos de uma semana atrás, Aida Ferreira, de 78 anos, a dona do imóvel, filmou da mesma varanda uma verdadeira cachoeira d’água invadindo seu quintal. A enchente de setembro já havia tomado sua casa e a cheia do rio Jacuí, em novembro, foi ainda mais rápida.

Ao lado de Aida, Sabrina Araújo, de 33 anos, viu os filhos de 5 e 10 anos de idade inicialmente acharem até divertido brincar na enchente. Em pouco tempo, porém, a ingenuidade das crianças foi revertida em susto à medida em que viam a aflição da mãe. Sabrina perdeu 20 galinhas para a força das águas e conseguiu salvar outras dez. A cena de animais mortos boiando pelas ruas transformadas em braços de rio, lhe impressionaram. “Foi uma loucura.”

Um desses animais pode ter sido o cachorro de Patrícia Oliveira, de 43 anos, a terceira mulher organizando as sacolas com doações. Quando a água do rio Jacuí subiu e invadiu  sua casa, ela conseguiu no limite fugir com a filha de 13 anos, apavorada. O cachorro da família morreu afogado. “Não deu tempo de salvar”, lamenta.

Tirando o telefone celular do bolso, Patrícia mostra o vídeo que conseguiu fazer ao ser resgatada de barco, por volta das 4h da madrugada. Enquanto exibe as imagens, pede para relevar seu choro e gritos de desespero. “Deu medo”, fala, baixinho.

O endereço da casa de Aida fica a poucos metros de distância da pequena ponte que marca o início da Ilha da Pintada. Formalmente residindo em Eldorado do Sul, na prática, todas ali se identificam como moradoras da ilha. E todos, de um lado e de outro da ponte, ficaram cerca de cinco dias sem água, sem luz, sem internet e sem telefone devido à histórica enchente.

 

A casa de Aida tem sido um ponto de distribuição de doações às vítimas da enchente. Foto: Luiza Castro/Sul21

Agora que a água baixou há menos de uma semana, as memórias do sofrimento vivido são pesadas, mas ali entre elas o estado de ânimo é impressionantemente elevado. Há bom humor e pensamento positivo, em que pesem as incertezas causadas pela realidade da crise climática e o drama das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul em 2023.

Quando conversam sobre o futuro, todavia, as opiniões divergem. Há 55 anos morando na mesma casa, Aida diz que se criou com água e que não quer sair dali. “Vou ficar por aqui e só saio quando me levarem. E vocês sabem pra onde”, comenta, para risadas das amigas. Aida é a zeladora do cemitério local.

Sabrina igualmente não pretende sair da Pintada. Explica que gosta da ilha, está acostumada com a vida na região e, além disso, diz que as enchentes são de vez em quando. “Gosto daqui, não iria para outro lugar.”

A divergência é aberta pela amiga Patrícia. Se pudesse, ela conta que deixaria a Ilha da Pintada. Faltam as condições econômicas. Por mais difícil que acredite ser o prognóstico de seguir morando na ilha, trocar a casa própria pela incerteza de viver de aluguel em outro lugar não lhe parece uma opção favorável. Para ela, muitos na Ilha da Pintada têm pensamento semelhante.

A avaliação é compartilhada por Sabrina. “A maioria não sai por falta de condições. As casas não valem muito e, se vender, não se consegue comprar outra. Então o pessoal não sai porque não têm condições”, analisa, destacando que as enchentes de agora desvalorizam ainda mais as moradias.

Diante da incerteza da própria vida, as três amigas aparentam gratidão por poderem ajudar outras famílias. Além de receberem doações diretamente no endereço de Aida, elas também buscam donativos entregues na Prefeitura de Eldorado do Sul e trazem para distribuir na ilha. No momento, os itens mais necessários são roupas de cama, toalhas, material de higiene e colchões.

 

Aida Ferreira diz que mantém fogão e geladeira elevados para caso aconteça nova enchente. Foto: Luiza Castro/Sul21

Se na casa de Aida, Sabrina e Patrícia a água já baixou, na Avenida Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, à margem do rio Jacuí, poças d’água ainda dominam o calçamento. Mais do que isso, o nível do rio quase encostando na calçada é a presença permanente a lembrar o que houve e o que pode voltar a acontecer.

Parados no meio fio da calçada, sem muita disposição para conversar com jornalista, três homens comentam que o problema todo se restringe ao vento sul. Com ar de normalidade ao explicar a inundação, reforçam que a enchente de novembro foi muito mais rápida do que a de setembro e avançou mais quadras no interior da ilha. As ruas desapareceram. Tudo virou rio. Em algumas casas, o nível d’água alcançou a altura das janelas.

Ali ao lado, na esquina da Avenida Nossa Senhora da Boa Viagem com a rua Doutor Salomão Pires Abrahão, na tradicional Colônia de Pescadores Z-5, os funcionários conseguiram voltar ao trabalho apenas nos últimos dias. Entre eles, Simone Macedo, taxativa ao dizer que perdeu tudo em casa. Residindo com a filha de 22 anos, estudante de Odontologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conta que mora nos fundos do terreno onde, na casa da frente, vivem a mãe e a irmã. Por estar numa área mais alta do local, diz que a enchente de setembro não invadiu tanto sua residência. A de novembro, pelo contrário, foi implacável.

Móveis, roupas, eletrodomésticos, tudo ficou embaixo d’água. A TV já havia sido perdida em setembro. Agora, mantém a esperança de que o fogão seja possível salvar, assim como a geladeira, desligada há dias à espera de secar.

Embora a água tenha baixado, ela ainda não pôde voltar à casa. Segue acomodada na residência de uma tia, explicando que o processo de limpeza do imóvel será longo. A lama tomou conta de tudo.

 

À margem do rio Jacuí, a Avenida Nossa Senhora da Boa Viagem segue alagada. Foto: Luiza Castro/Sul21

Com 50 anos de idade, Simone diz que gostaria de sair da Ilha da Pintada, mas também não tem condições financeiras para fazer tamanha mudança de vida. O roteiro se repete tal qual narrado por Sabrina e Patrícia: deixar a casa própria para viver de aluguel em outra região não parece solução digna.

A funcionária da Colônia de Pescadores Z-5 enfatiza que sua mãe é resistente à ideia e não cogita deixar a ilha em que passou a vida toda. Ela, entretanto, dá outra orientação para a filha estudante da UFRGS. “Falo pra ela: ‘Não queira ficar aqui’.”

Se não vislumbra condições econômicas para sair da Pintada, Simone agradece ter emprego fixo e renda garantida. Bem pior, ela pondera, é a situação de muitos moradores das ilhas de Porto Alegre que trabalham como autônomos, em funções que a própria enchente inviabiliza por semanas. Uma vida à deriva. “Graças a Deus a gente tem emprego de carteira assinada, e quem não tem?”

 

A força das águas destruiu muitas casas na ilha. Foto: Luiza Castro/Sul21
Moradores da Ilha da Pintada enfrentam novos alagamentos em decorrência das fortes chuvas. Foto: Luiza Castro/Sul21
Aida mostra vídeo da água invadindo seu quintal. Foto: Luiza Castro/Sul21
Avenida Nossa Senhora da Boa Viagem segue com alagamento. Foto: Luiza Castro/Sul21
Sabrina e Patrícia trabalham distribuindo doações. Foto: Luiza Castro/Sul21
São muitas as casas seriamente atingidas pela enchente. Foto: Luiza Castro/Sul21
Porto Alegre vista da Ilha da Pintada. Foto: Luiza Castro/Sul21

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