Ao lado da sede da Colônia de Pescadores Z5, na rua completamente submersa pelas águas do rio Jacuí, uma canoa dobra a esquina, identificada como tal apenas pela metade da placa de trânsito acima do nível d’água. Dentro dela, dois homens e uma mulher acompanham outro homem de meia idade, sentado numa cadeira de rodas. Na tarde do dia em que Porto Alegre atingiu a histórica marca do mês mais chuvoso desde 1916, a trégua da chuva foi o momento oportuno para o resgate do cadeirante.
Lentamente, a canoa avança em direção ao trecho ainda não alagado da rua e manobra para se aproximar da calçada. No mesmo instante, um carro modelo Celta se aproxima até o limite entre o asfalto e o alagamento. Um sujeito alto e magro salta dele e corre para ajudar na retirada do cadeirante de dentro da canoa. Ao redor, vizinhos também se mobilizam. Com cuidado, ele é levantado e colocado na calçada. Acudido por amigos, é levado para dentro de uma casa próxima ao trecho mais crítico da enchente que atinge, nesta terça-feira (26), a Ilha da Pintada, em Porto Alegre.
Aos poucos, o grupo se dispersa. O homem que chegou no Celta sobe na canoa e rema até a esquina, bem ao lado do casarão da colônia de pescadores. Olha para os lados. As águas do rio Jacuí dominam o cenário desolador. Ele para e retorna. Amarra a canoa no portão de ferro de uma casa e volta para o automóvel. Ao se aproximar, comenta com outra pessoa que ficou esperando dentro do veículo.
– Preciso ir lá ver se não é melhor tirar a mãe de casa.
Instantes antes, um senhor havia cruzado, a pé, o mesmo trecho da esquina alagada. Trazia no ombro uma caixa de madeira. Dono de um pequeno mercado distante poucos metros da sede da Colônia de Pescadores Z5, havia ido até sua casa ajudar o filho a levantar um armário – colocar o móvel num lugar mais alto da casa, tomada pelas águas. Na residência, além do filho e da nora, moram a mãe e o irmão.
– Tá brabo, comenta.
A voz fraca parece não combinar com sua figura austera de ombros largos e braços grossos. Ele acredita que as águas subirão ainda mais. Conta que a cheia naquele trecho da Ilha da Pintada aconteceu rápido, a partir dessa segunda-feira (25). Perguntado se pretende ficar no imóvel alagado, responde com outro questionamento:
– Ir pra onde? É triste.
Numa rua não muito distante dali, diante de um trecho onde as águas também tomaram conta do asfalto, dois jovens conversam com uma amiga, eles na calçada e ela na janela do segundo andar de uma casa azul.
Ela os convida para passarem a noite ali. A casa de dois andares, construída em alvenaria, ao contrário da maioria das casas de madeira que dominam a região, se mostra um local mais seguro em meio à enchente.
Um dos jovens, vestindo bermuda, chinelo de dedos e moletom vermelho, aceita o convite. O problema, ele diz, é seu pai, que não quer sair de casa. Para convencê-lo, pensa em levar o celular com a mensagem do convite para passar a noite na casa da família amiga. Apesar da enchente, muitas pessoas se recusam a abandonar seus imóveis, com medo de furtos. Os amigos comentam o caso de uma residência roubada na última noite. Levaram tudo, diz um dos jovens.
O dilema entre sair de casa para salvar a vida ou ficar no imóvel para proteger o que ainda não foi perdido domina os moradores da Ilha da Pintada. Não bastasse terem suas moradias tomadas pelas águas, o medo de assalto é outra ameaça, além da força da natureza.
Padre da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, Rudimar confirma o dilema. Ele chegou na Ilha da Pintada em 2015, ano de outra grande cheia, e agora, sete anos depois, vive o mesmo drama. A igreja foi transformada em local para receber doações de roupas e comidas. A solidariedade da comunidade, ele conta, é o que resta neste momento. Muitas pilhas de roupas estão espalhadas pela igreja, a comida, entretanto, falta. Ironicamente, água para beber é outro item que necessitam.
Rudimar diz estar se esforçando para enviar pequenas cestas de alimentação para diferentes regiões em todas as ilhas da Capital. O transporte é feito de canoa, com a ajuda de pescadores.
– É algo que mexe com a gente e com as famílias. Se luta tanto para conseguir os móveis e então, se perde tudo.
O salão social da igreja, localizado ao lado, foi transformado em abrigo pela Prefeitura de Porto Alegre. Nesta terça-feira (26), 10 famílias, totalizando 32 pessoas, estão abrigadas no espaço. Foram trazidas por agentes da Defesa Civil, após terem suas residências avaliadas como sob risco. A faixa etária dos abrigados vai de uma criança de 2 anos até idosos, incluindo um homem adulto venezuelano, o único estrangeiro.
Enquanto a chuva deu trégua, pelas ruas da Ilha da Pintada se via moradores carregando pertences, indo ao mercado comprar mantimentos, resgatando amigos e parentes em condições mais graves.
A previsão dos institutos de meteorologia é de que a chuva continue castigando Porto Alegre até essa quarta-feira (27). Em que pese os moradores das ilhas da Capital conviverem com enchentes frequentemente, o momento está sendo particularmente dramático. Como projetou o dono do pequeno mercado da Ilha da Pintada, o nível da água tende a subir mais. A cheia dos muitos rios que deságuam no Guaíba ainda farão a enchente se agravar. Para os moradores de uma das áreas de Porto Alegre mais vulneráveis à emergência climática, setembro de 2023 se encaminha para ser o mês que nunca será esquecido.