Meio Ambiente
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26 de setembro de 2023
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18:14

Inundação do Guaíba mostra importância de preservar áreas como a Ponta do Arado, diz especialista

Por
Luís Gomes
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Fazenda Arado Velho durante a enchente de setembro de 2023. Foto: Preserva Arado/Divulgação
Fazenda Arado Velho durante a enchente de setembro de 2023. Foto: Preserva Arado/Divulgação

Porto Alegre vive no início desta semana a mais dramática inundação do Guaíba desde 2015. Enquanto na região central a água do rio se aproxima da cota de inundação do Cais Mauá, obrigando o fechamento das comportas, em outras regiões bairros inteiros sofreram alagamentos nos últimos dias, como na região das ilhas e às margens do Guaíba, na zona sul da Capital. As cheias, contudo, não se tratam de mero casualidade ou infortúnio, mas também são influenciadas pelo modelo de cidade, como construções que avançam sobre a orla. Neste sentido, ambientalistas têm apontado a temeridade do avanço de projetos imobiliários, como o aprovado para a região da Fazenda do Arado Velho, no bairro Belém Novo.

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Em dezembro de 2021, a Câmara de Vereadores aprovou o projeto que alterou o regime urbanístico da área da Fazenda Arado, convertendo o regime de Ocupação Rarefeita incidente sobre parte de uma gleba definida como Área de Proteção do Ambiente Natural (APAN) e Área de Produção Primária em Área de Desenvolvimento Diversificado. Na prática, o objetivo foi permitir a construção de um “bairro planejado”, que a prevê a urbanização de 426 hectares às margens do Guaíba, uma área equivalente a 11 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. Em 22 de agosto, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) aprovou o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) para o empreendimento.

O engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti, integrante dos coletivos Preserva Arado e Ambiente Crítico, explica que a área da Ponta do Arado — área de preservação — e da Fazenda do Arado é considerada de restingas arenosas. À semelhança de Tapes, na Lagoa dos Patos, e Itapuã, também às margens do Guaíba, se caracteriza por uma enseada bem recortada, em que o vento e as ondas do Guaíba vão criando “degraus”, que variam de um a dois metros de altura. “Ali é muito plano, a água se acumula muito fácil. Se tu cava, tu rapidamente encontra a água subterrânea, ela tá muito próxima de aflorar. Inclusive, em muitos pontos, está sempre aflorando a água subterrânea”, diz.

Ele pontua ainda que, desde a cheia de 2015, o coletivo tinha a informação de que a parte mais baixa da Ponta do Arado era inundável, mas que não tinham tido acesso à área do terreno mais próxima à Av. Lami para confirmar se toda a extensão podia ser inundada. Isso acabou se confirmando no último sábado (23), quando fizeram imagens da área com um drone.

 

Imagem feita por drone no último sábado (23) | Foto: Preserva Arado/Divulgação

“Descobrimos que toda a extensão da fazenda, 100% da área, está com pelo menos um filme de água em cima dela. É uma lâmina de água permanente em cima dela, alguns lugares mais fundos, outros lugares mais rasos, mas ela está completamente tomada pela água. É uma área muito plana, em que o lençol freático está aflorando, então mesmo a área mais alta próxima da Avenida do Lami, onde seria uma parte mais adensada no projeto que eles propõem, também é um banhado. A área inteira é um banhado. Uma parte do banhado é inundável pelo Guaíba, outra parte do banhado é uma área de afloramento da água subterrânea, toda a extensão é alagada”, afirma.

Rualdo Menegat, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, pontua que a sequência de grandes ciclones extratropicais que têm atingido o Rio Grande do Sul e a Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos meses criaram uma situação que facilitou o acúmulo de água no Guaíba. Ele explica que a Região Metropolitana é de terras baixas, para onde convergem quatro rios — o Jacuí, o Caí, o Rio dos Sinos e o Gravataí –, que vão desembocar no Guaíba, mas que tem origem a 1,1 mil metros de altitude, no Planalto Meridional, em Cambará do Sul. “A água desses ciclones rapidamente escoa como se fosse um tobogã de 900 metros de elevação e vem até a região mais baixa, onde ela estaciona. Essas regiões mais próximas do Delta do Jacuí são águas que estacionam numa cota de 0 metros, o Guaíba se situa numa cota de 0 metros”, diz.

Quando a água se concentra em demasia no Delta do Jacuí, não encontra condições para o escoamento, pois o Delta é formado por um arquipélago e canais que barram a fluidez. Além disso, ventos fortes como os que foram verificados neste início de semana provocaram o aumento do nível do mar no litoral, criando mais um empecilho para a escoamento das águas para a Lagoa dos Patos e para o mar.

“A água não escoa, e vai para onde? Ela vai ocupar as regiões alagadiças, alagáveis e inundáveis da margem dos corpos d’água. E essas regiões acabam cumprindo um importantíssimo papel de amortecimento da inundação. Quer dizer, elas são como um local em que há uma possibilidade de estocagem de água, o que é muito importante porque, do contrário, essa água pode então extravasar para inundar regiões habitadas. Por isso, as regiões alagadiças nas margens dos corpos d’água são muito importantes”, ressalta Menegat.

Ele pontua que as cheias são ainda agravadas pela remoção de matas ciliares em todas as bacias hidrográficas citadas e pela remoção e destruição dos banhados. “Isso faz com que a água da chuva que, em geral, se infiltra naturalmente a até 60% no solo e nos aquíferos, não tenha mais elementos de retenção e escoe toda para os canais fluviais. Desce o tobogã e chega mais rapidamente aqui embaixo. Há elementos agravantes que são relativos ao uso do solo, tanto rural, como também no urbano, isso agrava essas enchentes de uma forma avassaladora”, diz.

Menegat destaca que a Ponta do Arado é uma “riquíssima” região inundável e alagadiça que cumpre esse papel ecossistêmico de ajudar a regular as cheias, ajudando a contrabalancear o que foi perdido com o desmatamento. Contudo, destaca que a situação atual evidencia a necessidade de um plano integrado de gestão das águas, algo no que a cidade está, segundo ele, muito atrasada.

“Nós temos que ter um plano integral, não adianta apenas fazer algo muito importante que é reacomodar os flagelados, isso é muito importante, mas nós temos que ter um plano de recuperação dos serviços ecossistêmicos de todas as margens dos rios, das bacias hidrográficas que afluem para o Guaíba e do próprio Guaíba. Essa recuperação dos serviços ecossistêmicos inclui a regeneração e a recuperação das matas ciliares, dos banhados, restabelecer áreas de amortização de inundações e, no caso de Porto Alegre, nós temos ainda que salvar essas poucas áreas que restam de amortização de inundações e alagamentos, como as da região sul do Guaíba, entre elas a importante Ponta do Arado, que é, por excelência, uma área inundável e importante para este papel”, afirma. “Porto Alegre está deixando a desejar já há muito tempo no que se refere a um plano integrado de gestão ambiental e, principalmente, de gestão das nossas águas. Esse descaso não se dá apenas no lançamento de projetos, de certa forma, irresponsáveis de ocupação das margens do Guaíba, mas também o modo como vêm sendo geridos os arroios da Capital. Se nós dermos uma olhada nos nossos arroios, eles estão todos entulhados de resíduos, dos mais diferentes tipos, não só trazendo grandes problemas sanitários para as comunidades que ali vivem, mas também dificultando todo o trabalho natural que os arroios fazem de escoamento da água”.

Iporã argumenta que o processo de urbanização da cidade deveria ser “inteligente” em relação ao meio ambiente, identificando áreas aptas e não aptas à urbanização. Para o engenheiro ambiental, esse processo de expansão da cidade para a zona sul sequer se justifica, como comprovado pelo último Censo Demográfico, que apontou que, em 2022, Porto Alegre tinha 5,4% menos população do que em 2010.

“Qual é a razão de a gente ocupar as várzeas? Não tem motivo além de vender terreno. O nosso entendimento é que devemos pensar uma cidade que respeite a dinâmica da natureza. Aquela área lá tem uma vocação ambiental de absorver a água da chuva, do Guaíba, é uma área que, proporcionalmente para toda a planície do Guaíba, pode ser até mesmo pequena, mas temos que ter uma filosofia de como ocupar os ambientes, de como regrar o uso dos ambientes. A gente não precisa alocar recursos para aterrar aquela área, não precisa criar esses ambientes aterrados, sendo que nem tem mais necessidade de expansão urbana em Porto Alegre. Inclusive, tem 100 mil domicílios vazios na cidade”, lembra.

Para Menegat, a cidade deveria tomar as inundações atuais como um exemplo de um desastre que será cada vez mais comum e que já não pode ser considerado como natural, porque é provocado pelas atividades que emitem gases do efeito estufa, responsáveis por acelerar o aumento da temperatura do planeta e causar eventos climáticos extremos. “Nós devemos olhar com seriedade o futuro que tá ali na frente porque Porto Alegre é uma cidade que está na margem de um corpo da água que se situa no nível do mar. O que acontecer no clima, vai acontecer conosco”.

“Veja, nada melhor do que a realidade dos fato para nos fazer entender certas situações. Esta grande enchente, que já se equipara a de 2015, que foi quase comparável a de 41, quando a cidade fecha as comportas do Cais Mauá. Aí então a gente vê com maior realidade os riscos que corremos por habitar a margem de um corpo d’água”.


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