Geral
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27 de dezembro de 2023
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13:42

Retrospectiva: O ano em que o RS mais sofreu os efeitos da crise climática

Por
Luciano Velleda
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Estiagem e enchente marcaram os eventos climáticos extremos do RS em 2023. Fotos: Fabio Pozzebon/Agência Brasil e Maurício Tonetto/Secom
Estiagem e enchente marcaram os eventos climáticos extremos do RS em 2023. Fotos: Fabio Pozzebon/Agência Brasil e Maurício Tonetto/Secom

Nos primeiros dias de janeiro de 2023, os efeitos econômicos e sociais da seca que atingia o Rio Grande do Sul há quase três anos dominava o noticiário. O fenômeno, antes esporádico, se mostrou cada vez mais frequente e intenso em solo gaúcho, diretamente conectado com a crise climática que neste ano afetou o planeta em condições jamais vistas. Cientistas apontam que o ano que se encerra será o mais quente da Terra em 125 mil anos.

Se antes o tema do aquecimento global soava em muitos ouvidos como previsões exageradas ou sobre um futuro longínquo, o ano de 2023 no Rio Grande do Sul provou, da maneira mais dolorosa, que esse tempo já é presente. Se o ano iniciou com o sofrimento causado pelas mazelas da seca, ele termina com a triste memória das históricas enchentes que causaram mais de 100 mortes em pelo menos quatro eventos extremos no RS. A água que no começo do ano faltou para irrigar lavouras e ser consumida por animais e humanos, é a mesma que devastou cidades no Vale do Taquari,  e afogou dezenas de pessoas.

A crise da estiagem que afetou o RS levou à criação, em fevereiro, de comissão especial da Assembleia Legislativa para analisar os impactos do fenômeno e propor alternativas para o futuro. O documento final ressaltou que as agruras da estiagem agora fazem parte da realidade dos gaúchos. Os prejuízos econômicos da agricultura e da pecuária foram destacados no relatório final, assim como o das comunidades quilombolas e de pescadores artesanais. Rios e lagoas baixaram seus níveis, dificultando a pesca. Plantações para a subsistência das famílias secaram.

Na economia, o resultado final foi a queda do Produto Interno Bruto (PIB) do RS em 5,1% em 2022. A estiagem foi apontada como a principal causa do PIB baixo devido ao resultado da agropecuária, que caiu 45,6% em 2022. Símbolo da perda econômica causada pela estiagem, a lavoura de soja está no centro do debate da crise devido ao custo ambiental de sua expansão em território gaúcho.

O Pampa, bioma típico do RS, atualmente tem mais áreas modificadas pela ação humana (antropizadas) do que de vegetação nativa. Em 1985, as áreas de vegetação nativa ocupavam 61,3% do Pampa e, em 2021, essa participação foi de 43,2% – quase o mesmo das áreas de agricultura, que já ocupam 41,6% do bioma.

Entre 1985 e 2021, a perda de vegetação nativa foi de 29,5%, sendo acentuada nas últimas duas décadas. Os dados são de estudo de 2022 do MapBiomas, sobre uso e ocupação do solo do Pampa cobrindo o período de 37 anos.

O milho foi uma de tantas plantações prejudicadas pela estiagem. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Durante os debates sobre a estiagem no começo do ano, técnicas de armazenagem de água das chuvas e novos projetos de irrigação foram discutidas. Houve consenso sobre a importância da criação de uma política pública permanente de irrigação que beneficie os diferentes tipos de agricultores, do maior ao menor. Para alguns grupos, porém, faltou discutir o que eles acreditam ser o essencial: a preservação e a produção de água.

Representante da Rede Sul de Restauração Ecológica na Coalisão pelo Pampa, Rodrigo Dutra afirmou que a supressão dos campos nativos do Pampa tem jogado toneladas de carbono na atmosfera. O zootecnista explicou que o sequestro de carbono, no caso do Pampa, está no subsolo, acumulado nas raízes dos campos. A conversão dos campos nativos em lavoura, portanto, libera esse carbono na atmosfera e contribui para o aquecimento global, além da perda da biodiversidade.

O problema é pior porque muito da supressão de campos nativos ocorre em zonas que recebem e acumulam água subterrânea. Também é grave quando a supressão atinge zonas de nascentes de água e áreas úmidas de banhados, afetando a produção de água no RS. A questão é paradoxal: o campo nativo é convertido em lavoura e depois não há água para abastecer a plantação.

Por isso, é consenso haver urgência na criação de projetos de reserva de água e de irrigação, de modo a permitir que os produtores rurais não desperdicem a água no período das chuvas e tenham técnicas mais eficazes de irrigar as lavouras e manter os animais. O problema é qual tipo de projeto.

A seca do começo do ano levou os ambientalistas a destacarem que a proteção aos elementos da natureza que produzem água está ausente do debate público. Ou quase isso, pois políticos que representam os interesses do agronegócio apontam como solução um caminho que ambientalistas dizem ir no sentido contrário: a criação de barragens em cima de banhados, córregos e Áreas de Preservação Permanente (APP), como forma de reservar água.

De autoria do deputado estadual Delegado Zucco (Republicanos), um projeto de lei neste sentido quase foi votado na Assembleia no apagar das luzes de 2023.

A nova realidade de secas mais frequentes aumentou a disputa pela água no RS. Foto: Corbari

“A reserva de uns pode ser a falta de água de outros”, criticou o zootecnista Rodrigo Dutra. “Só se fala em reservação de água e não se fala em proteção e muitos menos em recuperação e restauração das nascentes e córregos que foram destruídos nas últimas décadas.”

A pecuária, símbolo da história do RS e da própria figura do gaúcho, há anos perde espaço para lavouras de soja. “Não adianta ‘enxugar gelo’, precisamos saber qual é a origem do problema e atacar esse problema”, afirmou Gervásio Plucinski, presidente da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) no Rio Grande do Sul. “Isto coincide (o avanço da soja) com esses problemas climáticos que estamos vivendo. Então acho que é diagnosticar e buscar a solução na origem.”

As divergências se tornaram mais evidentes quando a discussão avançou para as causas da seca. No centro do debate está a proteção dos ambientes naturais responsáveis pela produção de água no RS. Enquanto um grupo enfatiza não fazer sentido discutir projeto de irrigação sem antes garantir a existência de água; outro grupo pouco trata do assunto. A divergência chega ao ponto máximo quando o tema é a relação dos cerca 150 mil hectares de campos nativos do Pampa anualmente convertidos em lavoura, principalmente de soja, e a relação disto com a estiagem, a falta d’água, a emissão de carbono na atmosfera, o aquecimento global, ou seja, com a crise do clima.

O ano que termina é mais um em que o bioma típico do RS esteve nos debates que relacionam sua preservação com a crise climática. E tal como em anos anteriores, 2023 termina sem perspectivas favoráveis para a proteção dos campos nativos. Não faltaram tentativas.

Em meados de março, pesquisadores e ambientalistas que compõem o grupo “Coalisão pelo Pampa” entregaram ao presidenta da Comissão da Estiagem da Assembleia Legislativa, deputado Zé Nunes (PT), um documento com sugestões de medidas a serem adotadas para enfrentar a crise climática.

Na ocasião, o documento destacou que o governo de Eduardo Leite (PSDB) não apresenta propostas que enfrentem o problema da falta de chuvas, algo diretamente atrelado à destruição dos biomas, poluição e emissão de carbono. Ambientalistas afirmam que a destruição destes campos leva à emissão de toneladas de carbono na atmosfera todos os anos, contribuindo para o aquecimento global e as mudanças do clima.

Por isso, na lista de seis medidas a serem adotadas para enfrentar o problema, o tópico nº 1 é a implementação urgente do Programa de Regularização Ambiental (PRA) em todo o estado, com início imediato de projetos de recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs). Mesmo 10 anos depois da promulgação da Lei de Proteção à Vegetação Nativa (Lei 12.651/2012), o PRA não avança no RS e nenhum hectare de campo ou floresta foi recuperado.

O tema envolve uma intrincada disputa jurídica. A soja tem sido o principal cultivo a ocupar as áreas originalmente constituídas de vegetação nativa campestre. Entre 2000 e 2015, a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5%. As florestas nativas cobrem 13,2% do bioma e a silvicultura 2,4%, sobretudo com eucalipto e pinus, enquanto que os corpos d’água representam 9,6%.

 

No discurso, todos reconhecem a importância da preservação do Pampa; na prática, o bioma perde cada vez mais sua vegetação nativa. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em 2012, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa estabeleceu que 20% de cada propriedade rural deve ser preservada como “reserva legal”. Três anos depois, em 2015, a lei foi regulamentada no RS por decreto do governo estadual, à época comandado por José Ivo Sartori (MDB). Foi o início de uma disputa judicial ainda não resolvida e cujo impasse, segundo a secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Marjorie Kauffmann, tem trancado as principais ações de preservação e conservação do Pampa.

Entidades ambientalistas ingressaram na Justiça contra trechos do decreto e, em 2016, obtiveram liminar favorável. A principal disputa envolve a permissão que o decreto estadual havia dado para que os proprietários de imóveis rurais declarassem como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa” aquelas áreas usadas para atividades pastoris (criação de gado, por exemplo). Tal permissão faria com que muitas propriedades rurais ficassem desobrigadas de cumprir a exigência de 20% de reserva legal.

Na liminar, a juíza acatou os argumentos dos ambientalistas de que a atividade pastoril não descaracteriza o Pampa e, portanto, não pode ser declarada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como área rural consolidada, ficando então passível de constituir os 20% de reserva legal. Sete anos depois da liminar, ambientalistas acusam a Secretaria Estadual do Meio Ambiente de não exigir o percentual mínimo de reserva legal estabelecido na lei e também de não implementar o Programa de Recuperação Ambiental (PRA) nos imóveis rurais sem os 20% de reserva legal. Em sua defesa, o governo estadual argumenta que não pode agir enquanto a Justiça não tomar uma decisão definitiva.

Professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador-geral do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Paulo Brack diz que o RS é um dos últimos estados do País a implementar as medidas previstas em lei. Para ele, falta interesse político em implementar a legislação, apesar dos discursos do governador em defesa do meio ambiente e da presença constante de comitivas do governo gaúcho em eventos internacionais sobre a crise climática.

“O agronegócio no Rio Grande do Sul é muito forte e em nível nacional também. É claro que esse silenciamento sobre a Reserva Legal, o Programa de Regularização Ambiental e de qualquer política em prol do Pampa, ocorre por conta dos setores econômicos imediatistas que não querem abrir mão dos seus interesses. E o governo do Estado responde a essa lógica, por isso não vem sendo implementado, infelizmente”, lamenta.

Em junho, o ciclone extratropical que atingiu o RS e matou 16 pessoas em Caraá, município localizado no litoral norte, foi o prenúncio trágico do que viria pela frente. Os meses de estiagem haviam ficado para trás e o período seguinte se consolidou como o de históricas chuvas torrenciais. Definitivamente, 2023 começava a ficar marcado como o ano dos eventos climáticos extremos no estado.     

Numa manhã no começo de setembro, os gaúchos acordaram estarrecidos com as notícias e imagens que vinham do Vale do Taquari. Cidades como Muçum, Roca Sales, Estrela, Encantado, Lajeado, Ibiraiaras, entre outras, se transformam em cenários desoladores, de grande destruição material e enorme sofrimento humano. A mesma região seria novamente atingida por outra forte enchente em novembro, dessa vez, porém, sem vítimas fatais devido ao melhor preparo e alertas de segurança.

O que aconteceu no RS em 2023 comprovou que as enchentes não podem mais ser consideradas fenômenos inesperados no contexto das mudanças climáticas. Especialistas alertam há anos para os fenômenos climáticos extremos, cada vez mais frequentes, cada vez mais fortes.

 

A enchente de setembro deixou um rastro de destruição no Vale do Taquari. Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

“O enfrentamento à emergência climática deve ser prioridade para o poder público. As fortes chuvas que resultaram em dezenas de mortes e milhares de desabrigados e desalojados no Rio Grande do Sul, são resultado da falta de políticas efetivas de prevenção, adaptação às mudanças climáticas e resposta aos eventos extremos”, afirmou Igor Travassos, coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil. “Não estamos lidando com um fato novo ou inesperado. O sul do país tem sofrido com os efeitos das passagens de ciclones na região por décadas e nada de concreto tem sido feito. Quantos mais precisarão morrer ou perder tudo para que os governantes garantam cidades seguras para todas as pessoas?”, questionou.

Ainda em setembro, o Sul21 mostrou que o RS, pioneiro no Brasil na criação de uma lei específica sobre a gestão das águas nas bacias hidrográficas, aprovada em 1994, nasceu na vanguarda, mas ficou nisso. Quase 30 anos depois, um dos atores que deveriam ter papel central na questão sequer foi criado: as agências de região hidrográfica.

A lei estabelece que os 25 Comitês de Bacia Hidrográfica do RS assumem o papel de gestão, a instância onde se tomam decisões regionais sobre os destinos das águas. Em evidência devido a tragédia recente, o Comitê da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas está na área geográfica que chove e concentra a água na foz do rio Taquari, em Triunfo. São 119 cidades, o maior comitê de bacia hidrográfica em número de municípios do Brasil, com 27 mil km² e um milhão e 500 mil pessoas.

Em 2012, o comitê aprovou as fases A e B do seu plano de ação, respectivamente, o diagnóstico e o prognóstico da situação da bacia hidrográfica Taquari-Antas. A fase seguinte, chamada de fase C, é a implementação do plano de ação propriamente. Todavia, está parada no Departamento de Recursos Hídricos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (DRH/Sema) desde 2013.

Julio Salecker, vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas e presidente do Fórum dos Comitês de Bacia Hidrográfica do RS, afirmou que se o plano de ação estivesse em vigor, a tragédia no Vale do Taquari poderia ter sido menor.

“Na quantidade de chuva que tivemos, beirando os 400 mm em quase todas as cabeceiras da nossa enorme bacia, nós não teríamos eliminado o problema, mas com certeza teríamos reduzido muitas perdas de vida, de infraestrutura, de meio ambiente, de animais, de produção agrícola. Nosso Vale perdeu rebanhos inteiros de suínos, de aves e de gado, com devastação muito grande da produção rural. Se tivéssemos a fase C, se tivéssemos a cobrança e a agência de bacia para dar base técnica para tudo, e se tivéssemos os planos sendo implantados, dentro das ações prognosticadas, como melhoria da mata ciliar, preservação de nascentes, pagamento por serviço ambiental, preservação dos banhados, tudo coisa que segura a água”, afirmou Salecker.

Em outra entrevista, Igor Travassos, coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil, disse que o caminho do RS e de todos os estados e cidades deve ser a elaboração e aplicação de planos de adaptação climática.

“Os planos de adaptação são transversais, precisam lidar desde as populações mais atingidas, os territórios mais atingidos, até com o sistema de saúde e de educação. São vários setores econômicos e sociais que precisam ser abarcados num plano de adaptação. A partir de um plano de adaptação, o governo cria insumos e tecnologias para evitar as perdas e danos. Não só perdas materiais, mas também humanas. Se o governo estivesse preparado, ele teria evacuado áreas, teria preparado o abrigamento de pessoas, a redução dos impactos econômicos. A gente tem que falar de hospitais adaptados, escolas adaptadas, residências e territórios adaptados, são vários segmentos envolvidos que vão sendo destravados para que haja o menor impacto possível. E isso é feito com base em estudo técnico, consulta da população, acadêmicos, porque não é uma pessoa que vai ter resposta para tudo”, explicou.

Criticada por técnicos da Fepam, novo zoneamento agrícola do RS foi elaborado por empresa contratada pelo próprio setor interessado. Foto: Fernando Dias/Ascom Seapi

No dia 14 de setembro, enquanto as famílias no Vale do Taquari ainda choravam seu parentes mortos, procuravam os desaparecidos e contabilizam os prejuízos econômicos causados pela enchente dias antes, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou a atualização do Zoneamento Ambiental para a Atividade da Silvicultura (ZAS) no estado. Pela decisão, a alteração será aplicada aos novos plantios ou na renovação dos plantios florestais já existentes.

As áreas de plantios da silvicultura passarão dos atuais 900 mil ou 1 milhão de hectares para 4 milhões de hectares em cada Unidade de Paisagem Natural (UPN) x Bacia Hidrográfica (BH). A silvicultura é o cultivo de florestas por meio do manejo agrícola, com o objetivo de suprir o mercado de madeira e aproveitar o uso racional das florestas. No RS, o eucalipto é um dos principais cultivos da silvicultura.

A mudança foi comemorada pela secretária estadual do Meio Ambiente, Marjorie Kauffmann, apesar dos alertas para os possíveis riscos ambientais. Em 2023, assim como no primeiro mandato, o discurso com viéis ambientalista do governo Leite costuma não acompanhar suas decisões práticas.

E assim, a aprovação se concretizou mesmo com os alertas de perda de biodiversidade feitos por técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). “O resultado da proposta apresentada induz a uma maior ocupação pela silvicultura das áreas onde a conversão de campos, em tese, tenha sido maior, desconsiderando outras questões de fundamental importância, quando se trata de conservação da biodiversidade, entre elas: o limite de resiliência e extinções de espécies locais nas áreas convertidas”, diz trecho do documento elaborado pelos técnicos da Fepam.

Membro do Consema, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) também emitiu parecer contrário a mudança. No documento, a entidade afirmou que a aprovação poderá representar numa “irreversível e extraordinária perda adicional ao Pampa e aos Campos Sulinos”.

O InGá ainda considerou que a proposta aprovada teve vício de origem por ter sido elaborada por empresas contratadas pelo próprio setor a ser regulado pelo governo estadual. O Zoneamento Ambiental para a Atividade da Silvicultura atual, ao contrário, foi construído a partir do setor técnico da Fepam e da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).

No final de outubro, o governador gaúcho assinou um contrato de R$ 1,5 milhão com o Conselho Internacional para Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI, na sigla em inglês), rede global voltada para o desenvolvimento urbano sustentável. Pelos próximos 18 meses, a entidade irá assessorar o governo estadual na governança, análise de risco e vulnerabilidade climática do RS diante dos desafios das mudanças do clima. O trabalho inclui a execução do inventário de emissões de gases do efeito estufa.

A parceria se insere no Plano Estratégico do ProClima 2050, que tem como objetivo reduzir as emissão de carbono em 50% até 2030 e agir para neutralizar a totalidade das emissões até 2050. O ProClima 2050 pretende ser um roteiro de ações para medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, com prazos para que as ações sejam executadas.

 

Leite e a secretária do Meio Ambiente, Marjorie Kauffmann, procuram mostrar uma agenda preocupada com a crise do clima, mas são muito criticados por ações práticas do governo. Foto: Luiza Castro/Sul21

Porém, para além dos discursos, o evento do governo estadual não apresentou novidades no enfrentamento das mudanças climáticas. Durante a apresentação, Leite inclusive destacou ações de sua gestão que já teriam sido realizadas e chamou a atenção alguns episódios que tiveram ampla repercussão negativa junto as entidades ambientalistas do RS. É o caso da Lei 15.434, o chamado Novo Código Estadual do Meio Ambiente, que suprimiu ou flexibilizou mais de 500 artigos e incisos do Código Estadual de Meio Ambiente de 2000, afrouxando assim regras de proteção ambiental dos biomas Pampa e Mata Atlântica.

A ambiguidade entre discurso e prática do governo estadual na temática ambiental chegou ao ápice, em 2023, um dia após a Assembleia Legislativa aprovar o orçamento do governo estadual para 2024, com receitas totais de R$ 80,3 bilhões e despesas totais de R$ 83 bilhões (um déficit de R$ 2,7 bilhões). No dia 22 de novembro, o governo do estado celebrou a fatia do orçamento de R$ 115 milhões para enfrentar os eventos climáticos no RS no próximo ano. O governo definiu o valor previsto como um “orçamento robusto”, embora a cifra represente menos de 0,2% do orçamento total aprovado.

Em entrevista ao Sul21, o advogado Thales Zendron Miola, sócio no escritório MDRR Advocacia & Direitos Humanos, especializado em direitos socioambientais, avaliou que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) e o Plano Plurianual 2024-2027 (PPA) apresentados pelo governo parecem insuficientes dada a magnitude dos efeitos devastadores dos eventos climáticos extremos em 2023. “Quando comparados com os custos decorrentes dos danos causados pelas tempestades e ciclones extratropicais, o investimento no combate, contenção e mitigação das mudanças climáticas é irrisório”, afirmou.

Miola foi além e afirmou não ser possível perceber qual o plano de transição energética a ser implementado no RS e se este é adequado com as metas de redução estabelecidas em normas internacionais das quais o Brasil é signatário. “Há um atraso na implementação de planos efetivos para a contenção. Apesar da Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (Lei Estadual nº 13.594/2010) estar vigente desde 2010, somente a partir dos próximos anos será iniciada a formulação de planos para o combate e mitigação das mudanças climáticas, sem expectativa de execução desses planos”, avaliou.

Além dos 0,2% do orçamento aprovado para enfrentar a crise do clima em 2024, Miola cita como exemplo de descompasso de prioridade o eixo Sustentabilidade Ambiental no Plano Plurianual 2024-2027, no qual consta a proposta de aplicar pouco mais de R$ 260 milhões, enquanto há um investimento previsto de mais de R$ 1,6 bilhão para o setor da agropecuária – atividade que, segundo dados de 2021 do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases, é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa no Rio Grande do Sul.

 

Tamanduá-bandeira foi flagrado por uma câmera fotográfica posicionada na mata. Foto: Reprodução

Apesar dos muitos pesares climáticos que marcaram 2023, o ano termina com uma notícia animadora. Um tamanduá-bandeira, espécie considerada extinta no RS há 130 anos, foi fotografado no Parque Estadual do Espinilho, na fronteira Oeste do estado.

O flagrante surpreendeu os ambientalistas que faziam uma expedição em busca de animais silvestres na Unidade de Conservação da Barra do Quaraí. Os pesquisadores instalaram equipamentos fotográficos acionados a distância para registrar os habitantes do parque em estado selvagem. Porém, não esperavam jamais encontrar um tamanduá-bandeira.

“A gente acredita que esse bicho seja uma expansão do trabalho de reintrodução feito na Argentina, lá em Esteros del Iberá, do trabalho da Fundação Rewilding. Esses animais estão adentrando o Rio Grande do Sul. No Uruguai, o tamanduá também já tinha sido extinto no mesmo período em que isso aconteceu aqui no Pampa brasileiro”, explicou o biólogo Fábio Mazim, que atua no Parque do Espinilho e faz parte do grupo responsável pelo registro.

Embora a primeira fotografia tenha sido registrada em junho, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) somente divulgou a boa-nova em 18 de dezembro, dia seguinte à data que celebra o “Dia do Pampa”. Sem ter muito o que mostrar na proteção do bioma típico do RS, foi a forma encontrada pelo governo Leite de defender sua agenda ambiental, tão criticada pelos ambientalistas.


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