Meio Ambiente
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6 de abril de 2023
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15:44

Com prejuízo econômico, social e ambiental, seca que abala o RS expõe conflitos da luta pela água

Por
Luciano Velleda
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A nova realidade de secas mais frequentes aumentou a disputa pela água no RS. Foto: Corbari
A nova realidade de secas mais frequentes aumentou a disputa pela água no RS. Foto: Corbari

A imagem de uma paisagem árida, de animais magros ou mortos, do homem do campo desolado, com dificuldade para se alimentar e até mesmo sem água para consumo próprio, durante décadas simbolizou a dureza da vida no agreste. Ao que tudo indica, tal exclusividade não pertence mais apenas ao Nordeste. A crise da estiagem que afeta o Rio Grande do Sul levou à criação, em fevereiro, da Comissão de Representação Externa Especial da Assembleia Legislativa para analisar os impactos do fenômeno e propor alternativas para o futuro. Após 30 dias de atuação, o relatório da comissão foi entregue na última terça-feira (4) ao presidente da Assembleia, deputado Vilmar Zanchin (MDB). O documento comprova que, depois dos últimos três anos, as agruras da estiagem também fazem parte da realidade dos gaúchos.

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O fenômeno, antes esporádico, tem sido cada vez mais frequente e intenso. A seca que afeta o estado desde 2020 está aí para acabar com qualquer dúvida que alguém ainda pudesse ter sobre a nova realidade do RS. A situação não é isolada e está diretamente conectada com a crise climática que abala o planeta. As consequências são cada vez mais mensuráveis, tanto em aspectos econômicos quanto sociais e, porque não dizer, inclusive na saúde mental de quem sofre as mazelas da seca.

Em março, a Emater/RS apresentou um diagnóstico dos impactos causados pela estiagem somente na safra 2022/23. Os dados, embora não sejam definitivos porque as lavouras ainda não foram finalizadas, já são suficientes para dar a dimensão do problema na agropecuária, base da economia do Rio Grande do Sul. Segundo o órgão, a quebra na produção do milho grão está em 41%, e da soja, em 31%. No milho silagem, usado para alimentação de animais, a quebra é de 40,5%. Além dessas culturas, a estiagem afetou fortemente muitas outras, como feijão, arroz, frutas e hortaliças.

A Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (FecoAgro/RS), que representa 42 cooperativas agropecuárias, com 173 mil produtores associados, também divulgou nota sobre as perdas referentes à estiagem. Dados da Rede Técnica Cooperativa, em levantamento realizado no dia 6 de março com 21 cooperativas, prevê quebra de produção e perdas estimadas em 43% na soja e de 56% no milho.

No caso específico da soja, a previsão inicial da safra no Rio Grande do Sul era de 22 milhões de toneladas. Ao plicar 43% de perda sobre esse montante, a quebra fica em torno de 9,46 milhões de toneladas. Considerando o preço de R$ 3 mil por tonelada, o prejuízo é de cerca de R$ 28,3 bilhões. Símbolo da perda econômica causada pela estiagem, a lavoura de soja está no centro do debate da crise devido ao custo ambiental de sua expansão em território gaúcho.

Sem milho grão e milho silagem, a produção de leite foi igualmente impactada pela seca, pois os animais dependem do produto para a pastagem. A reação é como um efeito dominó. A falta de milho bagunçou também as cadeias produtivas de aves e suínos, já que o produto é o principal grão para a alimentação desses animais. Sem milho, o jeito foi comprar o produto em outros estados e então aumentar os custos de produção, fato que reverbera na ponta, com o aumento do preço ao consumidor.

O resultado final na economia foi a queda do Produto Interno Bruto (PIB) do Rio Grande do Sul em 5,1% em 2022. A estiagem que castigou o estado no ano passado, principalmente nos meses de verão, é apontada como a principal causa do PIB baixo devido ao resultado da agropecuária, que caiu 45,6% em 2022.

Os prejuízos econômicos da agricultura e da pecuária são relatados no relatório final da Comissão Externa da Assembleia, assim como o das comunidades quilombolas e de pescadores artesanais. Rios e lagoas baixaram seus níveis, dificultando a pesca e o tamanho do peixe. Plantações para a subsistência das famílias secaram.

Forte seca que atingiu o RS nos primeiros meses de 2022 foi determinante para a queda do PIB do estado. Foto: Luiz Carlos Pilz/Arquivo pessoal

Durante os trabalhos da Comissão da Assembleia, técnicas de armazenagem de água das chuvas e novos projetos de irrigação estiveram no centro do debate. Em termos gerais, há consenso entre os diferentes atores envolvidos sobre a importância da criação de uma política pública permanente de irrigação que beneficie os diferentes tipos de agricultores, do maior ao menor.

Para alguns grupos, entretanto, faltou discutir o que eles avaliam ser o essencial: a preservação e a produção de água. Representante da Rede Sul de Restauração Ecológica na Coalisão pelo Pampa, Rodrigo Dutra afirma que a supressão dos campos nativos do Pampa tem jogado toneladas de carbono na atmosfera. Segundo o MapBiomas, em média 125 mil hectares de campos nativos têm sido anualmente convertidos em lavoura.

O zootecnista explica que o sequestro de carbono, no caso do Pampa, está no subsolo, acumulado nas raízes dos campos. A conversão dos campos nativos em lavoura, portanto, libera esse carbono na atmosfera e contribui para o aquecimento global, além da perda da biodiversidade. “Esse é o primeiro problema a contribuir para as mudanças climáticas”, diz Dutra.

O problema se agrava na medida em que muito da supressão de campos nativos ocorre em zonas de recarga de aquífero, ou seja, que recebem e acumulam água subterrânea. Igualmente grave é quando a supressão atinge zonas de nascentes de água e áreas úmidas de banhados, em ambos os casos afetando a produção de água no Rio Grande do Sul. A questão é paradoxal, ele pondera, pois o campo nativo é convertido em lavoura e depois não há água para abastecer a plantação.

Em meados de março, membros da Coalisão pelo Pampa entregaram ao presidente da Comissão que avaliou os impactos da seca no RS, deputado Zé Nunes (PT), um documento com sugestões do que fazer para enfrentar as próximas estiagens – que certamente virão. Os ambientalistas destacaram que, enquanto se sofre com a seca, a proteção aos elementos da natureza que produzem água está ausente do debate público. Em certa medida, há vozes do debate que apontam como solução um caminho que ambientalistas dizem ir no sentido contrário: a criação de barragens em cima de banhados, córregos e Áreas de Preservação Permanente (APP), como forma de reservar água.

O problema da ideia, explica Dutra, é reservar a fonte de água de uso comum para o uso de alguns poucos. “A reserva de uns pode ser a falta de água de outros”, critica. “Só se fala em reservação de água e não se fala em proteção, e muitos menos em recuperação e restauração das nascentes e córregos que foram destruídos nas últimas décadas.”

O bioma Pampa representa mais de 60% do território do Rio Grande do Sul. O zootecnista avalia que o governo estadual reconhece os problemas climáticos no discurso, diz publicamente querer avançar nas soluções, mas não discute a supressão dos campos nativos do Pampa. “O discurso é parcial.”

Ao entregar para o presidente da Assembleia Legislativa o relatório da comissão que presidiu, o deputado Zé Nunes (PT) reforçou que cabe ao governo do Estado ter iniciativa e estabelecer parcerias com a União e municípios para enfrentar o problema da estiagem. Fazendo coro ao discurso defendido por ambientalistas, o parlamentar concordou que a irrigação é importante, mas ainda mais vital é produzir água. “Embora a irrigação seja importante, mais importante é produzir água, cuidá-la, fazer boa gestão dela e a conservação dos solos”, afirmou.

Para ele, o tema da imprevisibilidade, tão usado em secas anteriores por diferentes governos, não existe mais. O deputado lembrou que as estiagens eram de amplo conhecimento e criticou a falta de ação e prevenção do governo. “Sabemos que teremos outras estiagens. Temos legislação e programas que podem ser resgatados. Defendemos integração dos municípios, licenciamento, recursos humanos preparados, e sugerimos, por exemplo, um seguro agrícola especial, tripartite, que tenha recursos do Estado, da União e de quem produz.”

Cada vez mais a seca tem impactado o cotidiano dos agricultores gaúchos. Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Nome importante no governo de Eduardo Leite (PSDB), o secretário da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação, Giovani Feltes, defende as medidas adotadas até aqui pelo Executivo.

Elogia os investimentos do Programa Avançar na Agropecuária e no Desenvolvimento Rural, lançado em 2021, com previsão de investimentos de R$ 275,9 milhões e tendo um dos três eixos focado na “Qualificação da Irrigação”, com previsão de R$ 201,4 milhões em investimentos. Deste total, R$ 173,7 milhões são projetados para serem aplicados em reservação de água, e R$ 20,2 milhões em projetos de irrigação. O programa prevê perfurar 750 poços artesianos com bomba submersa, sendo que cerca de 250 poços já foram feitos, segundo o secretário. Na sua avaliação, acredita que a medida resolve “as angústias” de comunidades no interior do estado.

O secretário também ressalta o acordo que ampliou para até 25 hectares as licenças concedidas diretamente por municípios para projetos de reservação de água em açudes de grande porte, além de recursos repassados pelo governo estadual para municípios criarem outros açudes de pequeno porte – uma média de R$ 100 mil transferidos para cada cidade. “O governo vem há tempos trabalhando nessas coisas e tem feito iniciativas importantes”, afirma.

Dentro destas iniciativas, o governo Leite tem dado ênfase ao Programa Supera Estiagem, que reúne um conjunto de ações, algumas sendo iniciativas recentes e outras de anos anteriores. As medidas foram organizadas em quatro eixos: Disponibilidade e acesso à água; Comunicação e monitoramento; Governança e gestão; Apoio e assistência.

No eixo Comunicação e monitoramento, entrou em vigor o Monitor da Estiagem, plataforma que permite checar as previsões do tempo, pressão atmosférica, nível pluviométrico e umidade do ar, entre outras informações meteorológicas. O lançamento do Monitor tem sido destacado pelos porta-vozes do governo estadual como uma resposta significativa à crise. Se é verdade que obter informações climáticas é importante para o agricultor se planejar, tampouco saber com antecedência se vai ter sol ou não resolve o drama da falta d’água.   

O tema da produção de água, cobrado pelos defensores do meio ambiente, todavia ainda passa ao largo do discurso do secretário. O foco é outro. Feltes enfatiza, como premissa fundamental para enfrentar a estiagem, que as políticas de irrigação e reservação de água não parem quando o período da seca terminar. “Não sabemos quando será a próxima estiagem, mas não temos nenhuma dúvida de que vai ocorrer. Então que na próxima estejamos melhor preparados do que agora.”

O secretário afirma que o governo estadual tem consciência dessa questão e o início do período de chuvas não deve afrouxar as políticas de enfrentamento à estiagem.

A análise otimista de Feltes não é compartilhada por Gervásio Plucinski, presidente da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) no Rio Grande do Sul. Para ele, primeiro é preciso entender porque estão acontecendo anos seguidos de estiagem no Rio Grande do Sul, uma crise que “não é de graça”.

“O debate que nós precisamos fazer é se o modelo produtivo que nós estamos desenvolvendo hoje, baseado praticamente na monocultura da soja, se não é ele o causador desse desequilíbrio que nós estamos vivendo”, questiona.

A pecuária, símbolo da história do Rio Grande do Sul e da própria figura do gaúcho, há anos perde espaço para lavouras de soja. Até o arroz, outrora uma das culturas mais importantes do estado, também tem tido queda na produção. Nos últimos anos, a área plantada com soja teve aumento de 55% no estado.

“Não adianta ‘enxugar gelo’, precisamos saber qual é a origem do problema e atacar esse problema”, afirma. “Isto coincide (o avanço da soja) com esses problemas climáticos que estamos vivendo. Então acho que é diagnosticar e buscar a solução na origem.”

Outro ponto destacado por Plucinski é a política de valorização da produção de alimentos. Para ele, é um erro o governo investir recursos públicos e pensar políticas  para irrigar lavoura de soja, enquanto o melhor seria irrigar lavouras de produção de alimentos.

A irrigação, ele reconhece, é uma necessidade imediata (enquanto se procura enfrentar a origem do problema), a questão é o ponto de vista predominante. “Só vamos conseguir enfrentar a situação que vivemos com irrigação. E para isso precisamos de política pública de crédito, de assistência técnica, de compra dos alimentos da agricultura familiar, trabalhar o fortalecimento da agricultura familiar e do cooperativismo, numa lógica de produção de alimentos.”

Plucinsk enfatiza que o fortalecimento da agricultura familiar, além de produzir alimentos num país com milhões de pessoas passando fome, também corrige ou evita maiores problemas ambientais. O agricultor familiar referido pelo presidente da Unicafes/RS é alguém com até 20 hectares de terra. Para ele, não há dúvidas de que reservar a água da chuva é uma prioridade para manter a vaca de leite, a horta, o milho e o feijão, por exemplo. Porém, para que isso vire realidade, ele é taxativo ao dizer que a responsabilidade maior cabe do governo estadual.

“É uma decisão política do governo do Estado, ele precisa puxar à frente. Se ele não fizer isso, esse negócio não vai acontecer. Fiquei todo o ano passado dizendo que o governo do Estado não se deu conta do tamanho que foi a estiagem”, lamenta.

Enquanto a imprensa noticiava a morte de animais e as perdas dos agricultores, Plucinski critica que o governo estadual anunciava a isenção do programa Troca-Troca de sementes ou a criação de alguns poucos poços artesianos e açudes por município. “Estão brincando de ação de combate à estiagem. Isso não existe. Tem que ter uma ação massiva do governo, que realmente puxa a frente, bota o sistema financeiro, manda lei para a Assembleia, se for preciso. O Estado precisa criar um grande programa de irrigação pra que a gente possa enfrentar o tema de uma vez por todas.”

Benéfico para a preservação dos campos nativos do Pampa, a pecuária tem perdido espaço para as lavouras, principalmente de soja. Foto: Guilherme Santos

Sob anonimato para não sofrer represálias, um servidor da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) conversou com a reportagem do Sul21 e questionou se as propostas de médio e longo prazo feitas há dez anos, incluindo a construção de pequenos açudes, estão hoje surtindo efeito positivo no enfrentamento da estiagem.

Para ele, há ausência de parte técnica na formulação e implementação das políticas públicas propostas para resolver o tema. Deu certo? Teve resposta positiva? Passaram bem a crise? Ou o Estado só mandou abrir o açude e constar como número para apresentar à sociedade? São perguntas feitas pelo funcionário. Ele lembra já ter visto, na serra gaúcha, produtor aposentado ganhar açude na propriedade.

O servidor explica que não basta construir o açude e não pensar em ações que garantam a preservação daquele reservatório quando parar de chover. Sem isso, o resultado costuma ser a imagem do pequeno açude seco e os animais sem ter o que beber.

Ele conta que a instalação de pivôs (uma irrigação que gira em círculo) costuma ter falhas básicas, como não checar se a área onde ele é instalado tem água suficiente para suprir o dispositivo. O técnico explica que a instalação do pivô deve dimensionar a área que será irrigada e a disponibilidade de água no local. Para ele, a impressão é de que o governo primeiro instala o pivô para depois ver a quantidade de água existente. E uma vez instalado, o custo serve para entrar na soma dos investimentos feitos, independente da efetividade do dispositivo.

Muitas vezes elogiado por ambientalistas pela capacidade técnica, o corpo de servidores da Sema é extremamente reduzido. Atualmente, a equipe responsável pelos projetos de regularização do uso de água em todo o Rio Grande do Sul é composta por apenas três funcionários.

Na opinião deste servidor, a raiz do problema está na gestão. Ele afirma que o corpo técnico, que deveria ser responsável pela formulação das soluções para enfrentar a estiagem no estado, não é ouvido. Se o servidor que lida com o tema não é consultado para apontar caminhos, quem está dando a solução?, pergunta o funcionário. E ainda que a solução seja o financiamento de projetos de irrigação ou reservação de água, ele pontua que cada região tem suas peculiaridades e, não raro, o problema nem é dinheiro, é mais planejamento.

Sem a necessidade de anonimato, o deputado que presidiu a Comissão Externa da Assembleia sobre a estiagem enfatiza que há saídas para enfrentar o problema. Não faltam, diz Zé Nunes, exemplos e propostas para tratar do tema da água e da prevenção das estiagens, mas é preciso que as ações tenham continuidade, orçamento e planejamento.

“Nós temos instrumentos que precisam ser aplicados. O que se constata, no entanto, é que não há continuidade, não há perenidade destas políticas e que estas propostas não foram colocadas em prática pelos governos que se sucederam. Há uma ação de interrupção”, avalia.

De acordo com o parlamentar, o trabalho realizado pela Comissão apresenta muitos elementos para o governo criar uma política pública de Estado permanente para tratar do tema, de modo a preparar o Rio Grande do Sul para conviver de forma menos traumática a cada nova estiagem futura.

A crise climática é uma realidade e ainda que os próximos anos possam ser de boas chuvas, há consenso de que logo haverá outra seca, potencialmente mais severa do que a atual. É o Rio Grande do Sul em sua versão sertão nordestino.


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