Entrevistas
|
29 de setembro de 2023
|
09:20

‘As pessoas precisam entender que, quando perdem tudo na chuva, é uma questão ambiental’

Por
Luciano Velleda
[email protected]
As ilhas de Porto Alegre são uma das regiões mais afetadas pelas históricas chuvas de setembro de 2023. Foto: Luiza Castro/Sul21
As ilhas de Porto Alegre são uma das regiões mais afetadas pelas históricas chuvas de setembro de 2023. Foto: Luiza Castro/Sul21

O mês de setembro começou, no Rio Grande do Sul, com uma enchente de proporção jamais vista que devastou cidades no Vale do Taquari, causando a morte de 50 pessoas (até o momento), prejuízos sociais e econômicos altíssimos e abalos psicológicos difíceis de mensurar. E o mês de setembro chega ao fim com Porto Alegre testemunhando a força do Guaíba, com suas águas invadindo bairros e avenidas da cidade, uma inundação histórica que atingiu 3,18 metros na altura do Cais Mauá, só atrás da cheia de 1941, que marcou 4,76 metros.

A quantidade acumulada de chuva ao longo de setembro de 2023 é a maior já registrada na Capital desde 1916, quando começaram os registros na estação meteorológica do bairro Jardim Botânico. A água que agora transborda, é a mesma que faltou nos últimos três anos no RS, causando secas severas e, novamente, inúmeros prejuízos.   

Os eventos extremos do clima, previstos há muitos anos por cientistas e ambientalistas, não são mais uma projeção no futuro longínquo. São realidades do presente. Suas consequências estão aí, literalmente batendo a nossa porta com a força das águas.

Águas do Guaíba invadem área de lazer da Orla. Foto: Luiza Castro/Sul21

Para entender o que pode – e deve – ser feito para que o RS enfrente a nova condição climática do planeta Terra, o Sul21 conversou com Igor Travassos, coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil. O caminho apontado é a elaboração e aplicação de planos de adaptação climática.

“Os planos de adaptação são transversais, precisam lidar, desde as populações mais atingidas, os territórios mais atingidos, até com o sistema de saúde e de educação. São vários setores econômicos e sociais que precisam ser abarcados num plano de adaptação”, explica Travassos.

Entre conceitos, modelos e estratégias, o coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil pondera ser fundamental encontrar formas de “traduzir” a crise do clima para incluir a população no tema. Se a sociedade não se conscientizar da gravidade do assunto, dificilmente algum plano de adaptação, por melhor que seja, será eficiente.             

“A gente não coloca, por exemplo, como que a vivência nas cidades e nos territórios também é impactada pelas mudanças do clima. Como que, diante de fortes chuvas, uma população é mais impactada do que outra ou porque isso acontece”, avalia.

Leia os principais trechos da entrevista:

Sul21:  O que o Rio Grande do Sul poderia ter feito para tentar minimizar o impacto da enchente que atingiu o estado em setembro?

Igor Travassos: Acho que faltou, na verdade, compromisso e senso de urgência diante dos eventos climáticos extremos. A gente não está falando sobre um fato novo. O Rio Grande do Sul lida com eventos climáticos extremos, assim como o País inteiro, há vários anos, há décadas. Óbvio que tem se intensificado, tanto a periodicidade como também tem sido cada vez mais intenso. Em 2023, um estado que não tem plano de adaptação, ou uma cidade que não tem plano de adaptação climática, é um problema. No Atlas Digital dos Desastres no Brasil, com o recorte de 1991 a 2022, o Rio Grande do Sul teve mais de 7 mil ocorrências de desastres, com 100 óbitos até 2022, sendo que esse ano já quase duplica o número de óbitos. São 724 mil desabrigados e alojados, 11 milhões de pessoas afetadas, danos de mais de R$ 6 bilhões e prejuízos de mais de R$ 77 bilhões.

Então, a gente não está falando de uma coisa nova ou, como vimos na fala do governador (em entrevista ao canal Globonews), que colocou no âmbito do inesperado. Os institutos de meteorologia já disparavam alertas sobre isso. Só que, obviamente, com uma semana de antecedência não dá para fazer muita coisa. Mas se existisse um plano de adaptação, teria também questões do nível de resposta. A gente fala de adaptação, mas também temos que falar de prevenção, adaptação e respostas a eventos extremos. Tem que ter preparação para o antes, o durante e o depois.

Igor Travassos, coordenador de Justiça Climática do Greenpeace Brasil. Foto: Divulgação

 Sul21: Como o quê, por exemplo?

Igor Travassos: No Rio Grande do Sul, em 2016, ou seja, 7 anos atrás, houve um Plano Estadual de Mitigação e Adaptação Climática, só que esse plano visa a consolidação de uma agricultura de baixa emissão de carbono. Então para a agricultura existe um plano, mas para as cidades, os desastres e as pessoas, não tem. O Plano Nacional de Adaptação foi feito em 2016 e valendo até 2020, a gente precisava que os estados e municípios replicassem esse plano às suas realidades.

Sul21: Mas que setores precisam estar incluídos num plano de adaptação climática?

Igor Travassos: Os eventos extremos, hoje, são o maior gerador de pobreza no menor período de tempo. A gente tem mais de 120 mil pessoas atingidas agora nesse fenômeno e a Caixa Econômica Federal já liberou o FGTS para 700 mil pessoas, porque quando a gente vai para perdas e danos, os atingidos são de várias formas. Por isso, os planos de adaptação são transversais, precisam lidar, desde as populações mais atingidas, os territórios mais atingidos, até com o sistema de saúde e de educação. São vários setores econômicos e sociais que precisam ser abarcados num plano de adaptação.

A partir de um plano de adaptação, o governo cria insumos e tecnologias para evitar as perdas e danos. Não só perdas materiais, mas também humanas. Se o governo estivesse preparado, ele teria evacuado áreas, teria preparado o abrigamento de pessoas, a redução dos impactos econômicos. A gente tem que falar de hospitais adaptados, escolas adaptadas, residências e territórios adaptados, são vários segmentos envolvidos que vão sendo destravados para que haja o menor impacto possível. E isso é feito com base em estudo técnico, consulta da população, acadêmicos, porque não é uma pessoa que vai ter resposta para tudo.

Sul21: Quando se fala em plano de adaptação climática, existem diretrizes que são gerais, independentes da geografia da região ou do município, e outras diretrizes que  precisam levar em consideração as particularidades locais, como estar na serra, na encosta de um morro ou à margem do rio?

Igor Travassos: É exatamente o que temos falado sobre o plano nacional. A gente tem um país de dimensão continental, com várias particularidades de uma região para outra,  então o plano nacional jamais vai atender todas as realidades. Por isso, o plano de adaptação precisa ter sua esfera federal, estadual e municipal. O plano nacional coloca as diretrizes gerais, como o que deve ser feito para o abrigamento, que o plano tem que estar conectado com o sistema de proteção da Defesa Civil, mas óbvio que, quando incorporado no território, leva em consideração as especificidades locais.

Por isso, o Greenpeace tem destacado que haja a participação da população mais impactada. A gente tem visto que quando se quer criar ou efetivar um plano, o estudo técnico muitas vezes está concentrado em empresas de consultoria europeias, que atuam no país e são contratadas por causa de expertise técnica, mas que não levam em consideração a cultura e os elementos de quem vive a crise climática no dia-a-dia.

Se é um território de vale, vai ser feito um estudo para entender quais são as rotas de saída, quais são os lugares estratégicos que não serão atingidos ou menos prováveis de serem atingidos. A partir disso, o município ou estado tem que criar seus lugares de abrigamento e estratégias para salvar a população. Se for dado o alerta uma semana antes, o que dá para fazer? É algo que tem que considerar justamente os aspectos locais, por isso que é importante ter planos locais para entender a dimensão de cada território.

Alagamentos na Ilha da Pintada em decorrência das fortes chuvas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21: Como fazer a sociedade entender a gravidade da situação que já está posta no mundo e na vida delas?

Igor Travassos: Acho que a gente precisa de um esforço coletivo da sociedade civil, organizações que trabalham com a pauta socioambiental e dos governos, para acessibilizar o discurso. A gente precisa entender que a pauta climática e em defesa do meio ambiente, não é unicamente técnica, não é só de biólogos, geógrafos e cientistas.  Precisamos entender que é uma pauta importante para todo mundo. As pessoas precisam entender que quando elas perdem tudo quando a chuva chega, isso é uma questão ambiental.

Quando a gente fala sobre defesa do meio ambiente, normalmente se concentra em duas coisas: ou na proteção integral da Amazônia ou em impedir as mudanças climáticas, atrelando a questão da emissão de gases do efeito estufa e a questão de resíduos. A gente não coloca, por exemplo, como que a vivência nas cidades e nos territórios também é impactada pelas mudanças do clima. Como que, diante de fortes chuvas, uma população é mais impactada do que outra ou porque isso acontece. A gente não consegue aproximar as mudanças climáticas e a pauta da defesa do meio ambiente ao dia-a-dia das pessoas.

Sul21: A comunicação precisa melhorar…

Igor Travassos: Se a gente só joga adaptação, quem sabe o que é? É um termo técnico. Se a gente fala em ‘descarbonificar’, são palavras difíceis que só afastam as pessoas da pauta ambiental. A gente tem tido o cuidado de explicar a crise climática a partir da realidade do que as pessoas têm vivido. Cresci na perspectiva de que o Brasil é maravilhoso, o Brasil não tem furacão, não tem terremoto, mas olha hoje o que estamos vivendo. São eventos extremos que podem não ser um furacão como os que acontecem nos Estados Unidos, mas têm efeitos de devastação tão similares quanto.

Acho que a tarefa é conjunta, é responsabilidade de todo mundo, a partir da democratização do discurso e da pauta, incluindo as pessoas, que são as mais importantes nesse processo.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora