Meio Ambiente
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27 de maio de 2023
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08:55

Alvo do Congresso, Cadastro Ambiental Rural é motivo de longa disputa jurídica no RS

Por
Luciano Velleda
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Cadastro Ambiental Rural é considerado essencial no combate ao desmatamento e na regularização ambiental de imóveis rurais. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Cadastro Ambiental Rural é considerado essencial no combate ao desmatamento e na regularização ambiental de imóveis rurais. Foto: Guilherme Santos/Sul21

A semana que se encerrou foi marcada pela expressiva demonstração de força da bancada ruralista no Congresso Nacional. Ao votar a Medida Provisória 1.154, editada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a posse e responsável pela reorganização dos ministérios e suas funções, a Comissão Mista, formada por deputados e senadores, fez alterações cirúrgicas que enfraquecem o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). As mudanças ainda precisam ser votadas no plenário da Câmara e do Senado.

Na pauta indígena, a Comissão Mista retirou do ministério comandado por Sônia Guajajara (PSOL) sua principal tarefa: a competência para demarcação de terras indígenas, transferindo o tema para o Ministério da Justiça. No ministério liderado por Marina Silva (Rede), o esvaziamento de funções também foi significativo.

O MMA perdeu a coordenação do Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (SIGRH) e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), transferidas para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Para ambientalistas, a mudança enfraquecerá a atenção para os múltiplos usos da água, com grandes chances de aumentar os conflitos nesse campo, no médio e longo prazo. Com as alterações, a pasta perdeu poder relativo aos sistemas de informações sobre os serviços públicos de saneamento básico, gestão de resíduos sólidos e gerenciamento de recursos hídricos.

A derrota imposta pelo Congresso à pauta ambiental inclui também a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Ministério do Meio Ambiente, passando-o para o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Entidades ligadas à defesa do meio ambiente avaliam que a mudança dificulta o uso do instrumento fundamental para o sucesso das estratégias de combate ao desmatamento e de regularização ambiental de imóveis rurais em todo o país.

“O que chama atenção é que o governo Lula sequer fingiu indignação ao descobrir que não manda nem na organização dos próprios ministérios. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, elogiou a MP na terça-feira; o PT no Senado comemorou nas redes sociais a “vitória” da aprovação na comissão”, afirmou, em nota, a coordenação do Observatório do Clima, criticando o que chamou de contradição no discurso ambiental do presidente em proteger os indígenas e fortalecer o combate ao desmatamento e às mudanças do clima.

Por sua vez, Marina Silva disse respeitar a autonomia dos poderes da República, mas avaliou que uma parte do Congresso, que seria a maioria, quer impor ao governo Lula o modelo de gestão do governo Bolsonaro.

“O Congresso é soberano. Nós respeitamos a autonomia dos poderes, mas o governo federal tem o direito legal e constitucional de se organizar [dentro da] forma que o Executivo entende que é a melhor forma de fazer a sua gestão”, disse. “Há um conjunto de ações sendo subtraído da forma original, como o presidente Lula fez a medida provisória, recuperando as competências perdidas e preservando as competências dos ministérios recentemente criados, como é o caso do Ministério dos Povos indígenas”, completou.

Sem força política suficiente para bater de frente com os partidos do Centrão e a bancada ruralista, a avaliação é de que o governo Lula optou por aceitar as derrotas impostas para tentar garantir vitórias nas pautas econômicas que ainda irão tramitar no Congresso, como a nova regra fiscal e a reforma tributária.

Em 2012, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa estabeleceu que 20% de cada propriedade rural deve ser preservada como “reserva legal”. Três anos depois, em 2015, a lei foi regulamentada no RS por decreto do governo estadual, à época comandado por José Ivo Sartori (MDB). Ali começou uma disputa judicial ainda não resolvida e cujo impasse, segundo a secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, tem trancado as principais ações de preservação e conservação do Pampa.

Entidades ambientalistas ingressaram na Justiça contra trechos do decreto e, em 2016, obtiveram liminar favorável. A principal disputa envolve a permissão que o decreto estadual havia dado para que os proprietários de imóveis rurais declarassem como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa” aquelas áreas usadas para atividades pastoris (criação de gado, por exemplo). Tal permissão faria com que muitas propriedades rurais ficassem desobrigadas de cumprir a exigência de 20% de reserva legal.

Na liminar, a juíza acatou os argumentos dos ambientalistas de que a atividade pastoril não descaracteriza o Pampa e, portanto, não pode ser declarada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como área rural consolidada, ficando então passível de constituir os 20% de reserva legal. Sete anos depois da liminar, ambientalistas acusam a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) de não exigir o percentual mínimo de reserva legal estabelecido na lei e também de não implementar o Programa de Recuperação Ambiental (PRA) nos imóveis rurais sem os 20% de reserva legal.

Em sua defesa, a Sema argumenta que não pode agir enquanto a Justiça não tomar uma decisão definitiva. Ao lembrar a recente aprovação, em 2020, do novo Código Estadual do Meio Ambiente, que incorporou conceitos do decreto de 2015, o diretor da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), Diego Melo Pereira, em entrevista concedida ao Sul21 há dois anos, ponderou que a liminar pode, inclusive, ter perdido seu objeto.

“Essa ação (na Justiça) cria efeitos sobre um decreto. E agora temos a lei estadual que absorveu esses conceitos. Então hoje, com a lei de 2020 publicada, ela torna sem efeito aquilo que determinou a ação civil pública, o efeito dessa ação perde objeto. Mas isso vai ter que ser discutido, há que se ter uma determinação judicial pra isso. Só que a liminar está em vigor”, afirma o diretor de Biodiversidade.

Professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador-geral do InGá, Paulo Brack diz que o RS é um dos últimos estados do País a implementar as medidas previstas em lei. Para ele, falta interesse político em implementar a legislação.

“O agronegócio no Rio Grande do Sul é muito forte e em nível nacional também. É claro que esse silenciamento sobre a Reserva Legal, o Programa de Regularização Ambiental e de qualquer política em prol do Pampa, ocorre por conta dos setores econômicos imediatistas que não querem abrir mão dos seus interesses. E o governo do Estado responde a essa lógica, por isso não vem sendo implementado, infelizmente”, lamenta.

Ministros e líderes do governo Lula deram entrevista nesta sexta (26) dizendo que o governo tentará reverter as mudanças feitas na agenda ambiental e indígena. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Na mesma entrevista de 2021, o diretor de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) explicou que a legislação federal estabelece que os estados devem implementar seus programa de recuperação ambiental com as regras que compõem as peculiaridades territoriais. Como o bioma Pampa no Brasil só existe no RS, ele acredita que deveria ter legislação própria. De qualquer forma, a lei federal estipulou um prazo, que já se encerrou.

“Só que ela diz que os estados que não implementaram passam a seguir as determinações da lei federal. Isso significa dizer que nós temos, sim, um Programa de Regularização Ambiental implementado. E qual é? O previsto na legislação federal. Todas as regras e disposições estão claras. Só que é importante nós termos as nossas peculiaridades territoriais”, pondera.

Pereira explica que, desde 2017, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente tem um grupo de trabalho para elaborar a minuta do programa de regularização ambiental conforme as características do Pampa, um material que, ele afirma, está praticamente pronto. O nó da situação, segundo o diretor, é a ação que corre na Justiça questionando trechos do decreto estadual de 2015.

“Temos um grupo técnico que desenvolveu a minuta do programa de regularização ambiental. E por que a gente não pode colocar ele na rua? A resposta sempre é a mesma, da análise do PRA (Programa de Regularização Ambiental). Se as questões judicias mudarem as suas determinações, a regra muda. Então como vamos colocar um programa de regularização ambiental na rua pra ser implementado, sem saber a consequência jurídica do processo? É criar regras, difundir regras, fomentar regras que não vão ser implementadas. Então temos isso consolidado, praticamente tudo pronto, são realmente as amarras judicias que estão aí envolvidas que nos impedem”, afirmou na ocasião.

Do ponto de vista do governo estadual, o imbróglio judicial está travando não apenas a implementação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), como também a exigência de 20% de reserva legal nas propriedades rurais.

Recentemente, a secretária Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), Marjorie Kauffmann, disse que ambos os temas fazem parte do Cadastro Ambiental Rural (CAR), cuja análise também está em discussão.

“O PRA é diretamente ligado a validação do CAR. Então enquanto a gente não avança no CAR, não conseguimos avançar no PRA, embora a gente já tenha desenhado internamente inclusive o fluxo do PRA. É uma busca que nós temos de conseguir construir um regramento que não seja novamente judicializado, para que a gente possa dar fluidez na pauta do Pampa, que é tão importante para nós através dos instrumentos de uso sustentável que estamos desenhando”, explica.

Na quinta-feira (25), dia seguinte às derrotas impostas pelos parlamentares ao governo federal, líderes do Congresso receberam um manifesto assinado por 790 entidades da sociedade civil, condenando o substitutivo para a Medida Provisória 1.154, aprovada pela Comissão Mista. Entre as centenas de adesões, estão ONGs que trabalham com meio ambiente e clima, representações indígenas, movimentos sociais, sociedades científicas, organizações corporativas e entidades do setor privado. O manifesto chama as alterações de “esquartejamento do meio ambiente” e convoca deputados e senadores a reverterem em plenário os retrocessos aprovados.

O documento aponta as alterações a serem feitas para corrigir os efeitos “devastadores” das mudanças no Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e no Ministério dos Povos Indígenas (MPI).

Essencialmente, as entidades concentram em quatro os pontos para voltar à redação original da MP: a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) pelo MMA; a coordenação pela pasta do Meio Ambiente do Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (SIGRH) e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA); a manutenção do poder do MMA relativo aos sistemas de informações sobre os serviços públicos de saneamento básico, gestão de resíduos sólidos e gerenciamento de recursos hídricos; e a competência do MPI para demarcação de Terras Indígenas.

“Votar a favor desses equívocos significa apoiar a diminuição da capacidade de o Brasil combater o desmatamento, principal fonte nacional de emissões de Gases de Efeito Estufa, de assegurar o equilíbrio no uso múltiplo das águas e de garantir a efetividade dos direitos constitucionais dos povos indígenas e a tutela dos direitos humanos. Não há qualquer razão administrativa que justifique o esquartejamento do MMA e a redução de poder do MPI”, destaca trecho do manifesto.

“Se não conseguirmos conter o desmatamento de forma rápida e eficaz, corremos o risco de sofrer graves consequências no curto prazo, como a redução das chuvas e o aumento de eventos extremos, bem como prejuízos ao comércio internacional e sobre a busca de recursos externos para financiamento das políticas socioambientais”, afirma o documento.

As entidades signatárias do manifesto enfatizam que as mudanças promovidas pela Comissão Mista do Congresso irão impulsionar a degradação ambiental no País, o que afetará o próprio futuro da economia, incluindo o agronegócio brasileiro, bem como dificultará a manutenção e cumprimento de compromissos climáticos do Brasil e dos direitos humanos.

“É importante ressaltar sempre que a crise climática é injusta e atinge com mais violência as comunidades tradicionais, população negra, quilombola e periférica. Não é de interesse de ninguém que esses erros prosperem. Contamos com o bom senso e o compromisso público dos deputados e senadores para reverter esses problemas”, completa o documento que tenta reverter as alterações feitas e que expõem a difícil situação do governo federal na correlação de forças no Congresso.


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