Geral
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7 de setembro de 2023
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10:52

‘Só há lama e caos’: A volta para casa após enchente histórica no Vale do Taquari

Por
Sul 21
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"Abro a porta de casa e vejo a lama e o caos". Foto: Cristiano Duarte/Sul21

Cristiano Duarte

Da lama ao caos, do caos à lama. O rio Taquari arrastou tudo: vidas, sonhos, casas, carros, empresas e tudo mais que passou pelo seu caminho. A enchente que atingiu a região nos últimos dias alcançou a marca histórica de quase 30 metros de altura e deixou mais de 30 mortos no Vale do Taquari.

O barulho de helicópteros e sirenes ecoa pelo céu em meio ao cenário apocalíptico que se estabeleceu em Lajeado. Móveis destroçados e cobertos de barro se aglomeram em fileiras da maior parte da região central da cidade.

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O cheiro do lodo adentra as narinas. Descubro, então, que a tristeza tem um aroma: seu odor é de enchente. A lama chegava até o meio da canela quando voltei para minha casa. O rio baixou após a cheia deixando seu rastro de caos por toda a cidade.

 

Cenário de devastação na cidade de Lajeado. Foto: Cristiano Duarte/Sul21

Busco a chave de casa no bolso da calça. Uma das poucas calças que me sobrou após a enchente e a única chave da única casa que tenho. Sabia que não precisava abrir a porta para descobrir que tudo havia se perdido: móveis, roupas, equipamentos de trabalho, brinquedos do meu filho, presentes recém comprados para minha esposa, a torradeira que fazia os pãezinhos com manteiga todas as manhãs e minha coleção de livros do Nelson Rodrigues.

Abro a porta e tenho certeza, só há lama e caos. A geladeira está espatifada no chão coberta de barro, os legos do nenê e a motoca, imundos, as roupas da minha esposa formam um grande nó de lodo. Tudo está perdido.

 

“A lama chegava até o meio da canela quando voltei para minha casa”. Foto: Cristiano Duarte/Sul21

Visito todos os cômodos da casa: o cenário de fim de mundo em cada canto. Eu choro. Choro baixinho para ninguém me ver. Choro por saber que o mundo é um lugar impossível, onde coisas que parecem impossíveis acontecem todos os dias.

Se alguém algum dia dissesse que o Vale do Taquari ficaria do jeito que ficou, qualquer um dos moradores desta região diria que isso seria impossível. Ficamos imersos, inundados e imundos de barro numa enchente em que o rio passou dos 29 metros de altura.

Percorro a casa de um lado para o outro por repetidas vezes. A dúvida de por onde começar é paralisante. Recorro à varanda para pegar fôlego.

“Olha que diabo de lugar e o que a gente tem que passar aqui”, diz Luci Saibro, 67 anos, moradora do bairro Praia há mais de 40 anos. “Eu vou embora daqui. Para mim chega”, desabafa ela.

Gabriel Reis, meu vizinho dos fundos, faz bico como músico na noite. Ele perdeu a guitarra e o violão na enchente. Gabriel bate palmas em frente a minha casa e chama meu nome. “Cris, minha gata Bananinha não está no seu telhado? Ela sumiu. Antes de eu sair pelo telhado da minha casa, eu joguei ela para o meu forro para tentar salvar. Acho que ela foi parar aí”, diz Gabriel apontando para o teto do meu imóvel.

A casa de Gabriel foi totalmente coberta pela enchente. Ele teve que sair pelo telhado de casa no meio da madrugada, salvo pela Defesa Civil do município. E, na verdade, o rio arrastou sua gata, a guitarra, o violão e suas roupas de roqueiro.

 

Móveis destroçados e cobertos de barro se aglomeram em fileiras. Foto: Cristiano Duarte/Sul21

O nível do rio surpreendeu a todos. Outro vizinho passa cabisbaixo. Além de sua casa, o rio arrastou seu Omega 4.1, ano 1997. “Estacionei ele lá na esquina. Lá nunca tinha ido enchente. Deixei todas as minhas coisas lá também e acabei perdendo tudo”, explica Carlos Almeida enquanto aponta para a outra esquina, onde enchente nenhuma havia chegado, até agora.

Muitos, assim como Gabriel, recorreram ao telhado de casa como último refúgio. Uns por esperança de que a água não subiria tanto, outros por não quererem deixar a casa abandonada temendo furtos e invasões. É o caso dos irmãos João Machado, 62 anos, e Paulo Machado, 60 anos. Eles permaneceram na residência até onde foi possível. A Defesa Civil passou no início da madrugada em que o rio subiu, mas eles não quiseram entrar no barco.

A família de João Machado saiu de casa e ficou sem ter notícias deles até a tarde do dia seguinte. Lajeado ficou sem wi-fi e sem dados móveis no celular durante a maior parte dos últimos dias, na maioria dos lugares.

“Nunca havia entrado enchente em nossa casa. Tive que escapar pelo forro da casa para acessar o telhado. Fiquei abrigado lá até a madrugada de quarta-feira”, explica João Machado.

 

Moradores não sabem nem por onde começar a reconstrução de tudo que foi perdido. Foto: Cristiano Duarte/Sul21

O cenário de caos levou a cenas difíceis de imaginar antes da tragédia. Um supermercado às margens do rio, invadido pelas águas, acabou invadido também por moradores que aproveitaram a falta de luz e os vidros arrebentados pela enchente para levar itens para casa. Mais de 400 kg de carne foram surrupiados do estabelecimento. Amaciantes, sabão em pó, refrigerantes e outro produtos eram carregados em canoas e distribuídos de forma ilegal.

Já uma outra loja de variedades chegou a montar um “kit enchente” para flagelados. Botas de borracha, rodo, vassouras de aço, panos de chão e luvas de látex. Nada disso estava em promoção, mas contemplava um espaço exclusivo do estabelecimento. “Enquanto uns choram, outro vendem lenços”, digo para o atendente enquanto loto um carrinho de compras.

A professora Laisa Almeida removia o barro da varanda. Ela perdeu tudo. Alguns livros que ensinavam o alfabeto para seus alunos e parte das lembranças do início da docência. “Simplesmente vou limpar a casa e nunca mais morar num lugar com possibilidade de enchente. Não consigo nem dormir direito. Sonho com as imagens da enchente levando tudo. É muito triste”, lamenta.

 

Lodo toma conta das ruas de Lajeado. Foto: Cristiano Duarte/Sul21

O advogado Thiago Krahl, 35 anos, perdeu tudo. O local onde reside em Estrela, município vizinho de Lajeado, é conhecido como Faxinha. Nos 40 anos em que sua família reside naquela região, jamais enchente alguma chegou perto de adentrar o imóvel. “Só consegui salvar meu vídeo game, minha televisão, meus 8 cachorros e meus três gatos”, conta o advogado.

Havia nestes dias todos uma expressão comum no rosto de quem perdeu tudo na enchente. “Perdeu tudo?”, dizia um. “Eu perdi também”, respondia o outro.
Esta cena se repetia em todos os quarteirões atingidos pelas águas.

Mais do que nunca, o Vale do Taquari é Vale do Taquari porque pertence ao rio Taquari. E é a força da natureza que forma a região que a governa. O que resta para nós, atingidos pelas cheias, são as coisas que não se perde, o amor, a esperança e a necessidade de, perto ou longe, recomeçar.

 

Foto: Cristiano Duarte/Sul21

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