Entrevistas
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30 de setembro de 2023
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12:22

Governo Leite: Menos de 0,2% dos recursos propostos são para adaptações climáticas

Por
Luciano Velleda
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Cidades do Vale do Taquari, como Roca Sales, foram arrasadas pela enchente no começo de setembro. Foto: Secom/RS
Cidades do Vale do Taquari, como Roca Sales, foram arrasadas pela enchente no começo de setembro. Foto: Secom/RS

A Assembleia Legislativa deve votar nas próximas semanas o Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024, elaborado pelo governo de Eduardo Leite (PSDB). É o quinto orçamento proposto pelo governador desde que foi eleito pela primeira vez, em 2018, e o primeiro na esteira da tragédia das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em setembro deste ano, causando a morte, até o momento, de 50 pessoas e deixando milhares de famílias desabrigas ou desalojadas de suas casas.

A peça orçamentária atraiu a atenção dos advogados Thales Zendron Miola e Marina Ramos Dermmam, sócios no escritório MDRR Advocacia & Direitos Humano, especializado em direitos socioambientais, povos e comunidades tradicionais, direitos LGBTQIA+, gênero e direito à saúde.

Ao analisar o LOA para 2024 e o Plano Plurianual 2024-2027, a conclusão de ambos é de que a adaptação aos eventos climáticos extremos não é prioridade do governo Leite. No caso da Lei Orçamentar Anual (LOA), a análise feita pela dupla aponta que “menos de 0,2% dos recursos propostos são para políticas públicas de adaptações climáticas”. Apenas R$ 157,933 milhões, de um orçamento total de R$ 80,348 bilhões, são previstos para a adaptação climática tão falada por cientistas e ambientalistas.

“O LOA e PPA apresentados parecem ser insuficientes dada a magnitude dos efeitos devastadores sofridos nos últimos meses. Quando comparados com os custos decorrentes dos danos causados pelas tempestades e ciclones extratropicais, o investimento no combate, contenção e mitigação das mudanças climáticas é irrisório”, afirma Miola.

Os investimentos analisados por ele no Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024 e considerados como tendo relação com a temática da adaptação climática são: implementação do sistema de gestão de riscos (R$ 14,194 milhões); sustentabilidade ambiental (R$ 18,175 milhões em investimento em energias renováveis, eficiência energética e hidrogênio verde); agropecuária pujante e sustentável (R$ 82,195 milhões em irrigação e descarbonização da pecuária); barragem do rio Jaguari (R$ 10,685 milhões); barragem do Arroio Taquarembó (R$ 32,510 milhões); fundo rotativo de emergência da agricultura familiar (R$ 11,3 mil); sistema estadual de gestão integrada de riscos e desastres (R$ 10 mil); sustentabilidade energética das instituições culturais (R$ 10 mil); mitigação dos efeitos da seca pelo desenvolvimento e difusão de tecnologias (R$ 67 mi); e PD&I voltados à transição energética sustentável (R$ 75 mil).

Nesta entrevista ao Sul21, Miola analisa a peça orçamentária do governo estadual no que se refere a adaptação climática, faz considerações sobre quais áreas deveriam ser prioritárias para receberem investimentos e o que deve ser levado em conta na hora de propor o orçamento do RS, considerando os eventos extremos que atingem o estado.

Confira os principais trechos da entrevista:

Sul21: Como você avalia a proposta orçamentária do governo estadual (LOA e PPA) para enfrentar os desafios da emergência climática?

Thales Miola: O LOA e PPA apresentados parecem ser insuficientes dada a magnitude dos efeitos devastadores sofridos nos últimos meses. Quando comparados com os custos decorrentes dos danos causados pelas tempestades e ciclones extratropicais, o investimento no combate, contenção e mitigação das mudanças climáticas é irrisório.

Além disso, há pouca clareza com relação ao cumprimento das metas estabelecidas. Não é possível perceber qual o plano de transição energética a ser implementado no estado do Rio Grande do Sul e se este é adequado com metas de redução estabelecidas mediante normas internacionais das quais o Brasil é signatário.

Ainda, há um atraso na implementação de planos efetivos para a contenção. Apesar da Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas ( Lei Estadual nº 13.594/2010) estar vigente desde 2010, somente a partir dos próximos anos será iniciada a formulação de planos para o combate e mitigação das mudanças climáticas, sem expectativa de execução desses planos.

Enquanto para a Sustentabilidade Ambiental (no PPA) está proposta a aplicação de pouco mais de R$ 260 milhões, há um investimento previsto para mais de R$ 1,6 bilhões para o setor da agropecuária, que, segundo dados de 2021 do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases, é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa no estado do Rio Grande do Sul.

Da verba prevista para o eixo de Sustentabilidade Ambiental, menos da metade é destinada especificamente à questão das mudanças climáticas, sendo que a maioria dessa verba é destinada à elaboração de planos e metas, sem adoção ou implementação de medidas de imediata execução. Em síntese, não há previsão de alocação de verba a ser destinada para adoção de medidas práticas e imediatas, mas apenas de elaboração de planos.

Leite entregou dia 15 de setembro na Assembleia a proposta de orçamento para 2024. Foto: Rodrigo Rodrigues

Sul21: Qual ou quais esferas de ação deveriam concentrar mais recursos para adaptar o RS no contexto da crise climática e mitigar danos?

Thales Miola: Dentro do Programa de Sustentabilidade Ambiental, há a necessidade de investimentos na ação programática que diz respeito à matriz energética e a redução da utilização do carvão mineral no estado do Rio Grande do Sul. O setor energético é responsável por ¼ das emissões dos Gases de Efeito Estufa (GEE) no estado.

Muito disso se deve às termelétricas movidas à carvão, pois o carvão mineral do RS é de baixa qualidade, de maneira que as termelétricas mais poluentes e menos eficientes do país encontram-se em solo gaúcho. Não apenas isso, mas a operação dos empreendimentos termelétricos necessitam do consumo de milhares de metros cúbicos de água para resfriar e viabilizar a sua produção de energia. Há, portanto, por meio dessa matriz energética, a contaminação das águas, do solo e do ar.

As termelétricas deveriam ser utilizadas em situações de emergência, quando há deficiência na produção de energia elétrica por outros meios. Ocorre, contudo, que o estado do Rio Grande do Sul passou por forte estiagem e crise hídrica que perdurou por mais de três anos, o que implicou na necessidade de utilização desenfreada dessa matriz energética extremamente poluente. A utilização das termelétricas, por consequência, contribui na emissão de Gases de Efeito Estufa, o que implica nas mudanças climáticas, permitindo a ocorrência de estiagens cada vez mais longas e mais severas, o que demanda, novamente, a utilização das termelétricas. Perpetua-se, assim, esse círculo vicioso.

Sul21: Como sair desse círculo vicioso?

Thales Miola: A execução e implementação da transição energética justa e socioambientalmente sustentável deveria ser uma ação prioritária para a alocação de recursos. Trata-se de medida que envolve não apenas o abandono de uma matriz energética altamente poluidora e ineficiente para outra com baixa emissão de GEE, mas que deve levar em consideração o amparo e a capacitação dos trabalhadores dessas usinas para se adequarem à nova realidade de geração de energia elétrica por meio de fontes renováveis, sem que incorra em desemprego.

Em síntese, a Transição Energética Justa, cuja implementação deveria ocorrer imediatamente, é medida fundamental para garantir a estabilidade socioeconômica desses trabalhadores, seus direitos trabalhistas e previdenciários, bem como políticas públicas de reinserção no mercado de trabalho, a proteção à saúde dos trabalhadores, visando, ainda, a redução da emissão de gases que contribuem diretamente para as mudanças climáticas, bem como a recuperação ambiental das áreas degradadas pelas matrizes energéticas poluidoras.

Miola diz que o RS está atrasado no trabalho de elaborar plano de adaptação climática. Foto: Mauricio Tonetto / Secom

Sul21: Considerando os eventos extremos de seca e enchentes que atingem o RS, o que o governo estadual deve levar em conta ao elaborar o orçamento?

Thales Miola: É inegável que os efeitos percebidos nos últimos meses foram impulsionados pelas mudanças climáticas. Não é normal a ocorrência de 6 ciclones extratropicais em um período de 4 meses. Mesmo com a ocorrência de fenômenos naturais como o El Niño. Aliás, estes fenômenos têm seus efeitos impulsionados e potencializados pelas mudanças do clima.

Quando se fala de mudanças climáticas e suas consequências, deve se ter como prioridade a prevenção e a precaução. Portanto, é notável que não podem ser pensadas medidas meramente remediadoras para responder ao caos causado pelos eventos climáticos. As políticas públicas devem ser pensadas por meio de medidas que evitem, em primeiro lugar, a ocorrência desses eventos climáticos desproporcionais.

Estamos em um estágio crítico. Caso não sejam adotadas medidas de forma imediata, podemos alcançar o que a comunidade científica chama de “ponto de não retorno” ou tipping point, em que qualquer providência emplacada pode não ter qualquer efeito para reverter o desastre climático.

Sul21: Onde investir imediatamente para evitar que isso aconteça?

Thales Miola: É de se considerar que, além da necessidade de medidas preventivas, a imposição de atuações no sentido de redução de danos aos efeitos já experimentados por todos nós. Assim, a adaptação e mitigação aos efeitos das mudanças climáticas passa por investimentos em ciência e tecnologia, bem como planejamento de infraestrutura que leve em conta os cenários climáticos, dada a atual situação do Rio Grande do Sul.

É necessário o investimento em obras de infraestrutura para evitar ou reduzir inundações, bem como mitigar os efeitos das secas. Efeitos estes que se tornarão cada vez mais comuns.

Além disso, investir em sistemas de alertas precoces e medidas de ação imediata em caso de desastres naturais é medida fundamental para garantir assistência aos atingidos e evitar a ocorrência de mortes, por meio da implementação de um efetivo Protocolo de Atuação Integrado, com a integração dos órgãos municipais e do Estado, como as secretarias de planejamento, Corpo de Bombeiros e Defesas Civis.

No mais, urge a necessidade de investimento em desenvolvimento econômico e social para diminuir a suscetibilidade das populações vulneráveis às mudanças climáticas, especialmente aquelas com moradias em zonas de risco e lugares isolados.


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