Entrevistas
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15 de setembro de 2023
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18:11

Plano de Ação da Bacia Taquari-Antas está parado há 10 anos: ‘Teríamos reduzido muitas perdas de vidas’

Por
Luciano Velleda
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Estragos da enchente no município de Roca Sales | Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Estragos da enchente no município de Roca Sales | Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Desde que a força das águas do rio Taquari-Antas inundou e devastou bairros inteiros de cidades no Vale do Taquari, muito tem se falado sobre o que poderia ter sido feito para minimizar a tragédia que matou, até o momento, 48 pessoas, com nove ainda desaparecidas. Maior atenção nas previsões meteorológicas, sistemas de alerta à população e evacuação nas áreas de maior risco são alguns dos temas debatidos no Rio Grande do Sul nos últimos dias.

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Um deles, entretanto, tem tido menos destaque, embora não seja de modo algum menos importante: a gestão das águas nas bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul. Pioneira no Brasil na criação de uma lei específica sobre o assunto, a Lei 10.350, aprovada em 1994, a chamada “lei das águas” nasceu na vanguarda, mas ficou nisso. Quase 30 anos depois, um dos atores que deveriam ter papel central na questão sequer foi criado: as agências de região hidrográfica. Junto com o Conselho de Recursos Hídricos do RS (CRH), o Departamento de Recursos Hídricos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (DRH/Sema), a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e os Comitês de Bacia Hidrográfica, são os atores que deveriam usar os instrumentos necessários para alcançar o objetivo da lei, ou seja, o RS ter água em quantidade e qualidade para todos, na atualidade e nas futuras gerações.

No arcabouço da lei, os 25 Comitês de Bacia Hidrográfica do Estado assumem o papel de gestão, a instância onde se tomam decisões regionais sobre os destinos das águas. Em evidência devido a tragédia recente, o Comitê da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas  está na área geográfica que chove e concentra a água na foz do rio Taquari, em Triunfo. São 119 cidades, o maior comitê de bacia hidrográfica em número de municípios do Brasil, com 27 mil km² e um milhão e 500 mil pessoas. Como “parlamento das águas”, é uma pequena Assembleia Legislativa para deliberar os usos que devem ser dado às águas.

Em 2012, o comitê aprovou as fases A e B do seu plano de ação, respectivamente, o diagnóstico e o prognóstico da situação da bacia hidrográfica Taquari-Antas. A fase seguinte, chamada de fase C, é a implementação do plano de ação propriamente. E tal fase está parada no Departamento de Recursos Hídricos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (DRH/Sema) desde 2013.

Julio Salecker. Foto: Divulgação

Nesta entrevista ao Sul21, Julio Salecker, vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas e presidente do Fórum dos Comitês de Bacia Hidrográfica do RS, afirma que se o plano de ação estivesse em vigor, a tragédia no Vale do Taquari poderia ter sido menor.

“Na quantidade de chuva que tivemos, beirando os 400 mm em quase todas as cabeceiras da nossa enorme bacia, nós não teríamos eliminado o problema, mas com certeza teríamos reduzido muitas perdas de vida, de infraestrutura, de meio ambiente, de animais, de produção agrícola. Nosso Vale perdeu rebanhos inteiros de suínos, de aves e de gado, com devastação muito grande da produção rural. Se tivéssemos a fase C, se tivéssemos a cobrança e a agência de bacia para dar base técnica para tudo, e se tivéssemos os planos sendo implantados, dentro das ações prognosticadas, como melhoria da mata ciliar, preservação de nascentes, pagamento por serviço ambiental, preservação dos banhados, tudo coisa que segura a água”, afirma Salecker.

Confira a entrevista a seguir:

Sul21: Qual a situação dos comitês de bacia hidrográfica do RS para executarem suas funções?

Julio Salecker: Nós temos os 25 comitês do Rio Grande do Sul instituídos, funcionando principalmente porque o povo se organiza, os usuários se organizam e você tem o comitê funcionando. O que nos tira grande parte da efetividade dos comitês é não ter os instrumentos da lei instalados. Você não tem o órgão técnico instalado, que é um dos atores. Quem faz os planos de bacia? É para ser o órgão técnico. Hoje o DRH faz às vezes da agência e, com muita dificuldade, conseguiu botar em pé nove planos das 25 bacias. Só nove planos de bacias estão completo até hoje, mas mesmo nesses comitês que têm o plano de bacia completo, não tem efetividade, porque não tem a cobrança pelo uso da água, não tem a outorga de lançamento. Hoje temos só a outorga de tomada de água funcionando, mas não temos o módulo de lançamento de efluentes, que atinge diretamente a qualidade da água. O comitê que tem plano de bacia já fica difícil de fazer gestão, porque não tem os demais instrumentos instalados, desde 1994, e o nosso Taquari-Antas ainda não tem o plano de bacia completo aprovado.

Sul21: Por que o plano da bacia Taquari-Antas ainda não foi aprovado?

Julio Salecker: Tivemos, em 2012, a aprovação das fases A e B, que é diagnóstico e prognóstico. A fase C é a implantação, os planos de ação. No Taquari-Antas, infelizmente, nós diagnosticamos quais são nossos problemas e prognosticamos o que teria que ser feito, mas essa lista de coisas que tem que ser feitas é a fase C, que vira plano de ação efetivo pra ser implantado. Então, a fase C do Taquari-Antas, infelizmente, está no ambiente do DRH e CRH desde 2013. São 10 anos sem solução.

Sul21: Quais ações já poderiam ter sido tomadas e que, talvez, tivessem minimizado essa cheia num volume tão extraordinário?

Julio Salecker: Importante deixar claro que, na quantidade de chuva que tivemos, beirando os 400 mm em quase todas as cabeceiras da nossa enorme bacia, nós não teríamos eliminado o problema, mas com certeza teríamos reduzido muitas perdas de vida, de infraestrutura, de meio ambiente, de animais, de produção agrícola. Nosso Vale perdeu rebanhos inteiros de suínos, de aves e de gado, com devastação muito grande da produção rural. Se tivéssemos a fase C, se tivéssemos a cobrança e a agência de bacia para dar base técnica para tudo, e se tivéssemos os planos sendo implantados, dentro das ações prognosticadas, como melhoria da mata ciliar, preservação de nascentes, pagamento por serviço ambiental, preservação dos banhados, tudo coisa que segura a água.

Deus despejou essa quantidade de água, o que cabe aos humanos é tentar reter. Obras de barragens nas cabeceiras para retenção de parte desse volume. A gente não ia conseguir segurar tudo, pela quantidade de água que veio, mas tem um monte de obras que podem ser feitas, tanto na via de preservação ambiental, como obras estruturantes, que são essas barragens de reservação de água e regularização de vazão. Elas têm duas grandes funções: diminui a enchente, em que tamanho teriam diminuído a gente ainda não pode diagnosticar, mas teriam diminuído; e ainda seguram essa água para ser usada na estiagem. Todo país desenvolvido já fez esse tipo de estrutura, são super bem estudadas no mundo. Então, tem um monte de atividade que já ficou elencada no nosso prognóstico, só não virou plano de ação.

Sul21: Isso poderia ter reduzido em quanto a cota de enchente?

Julio Salecker: Que fosse cinquenta centímetros para que muita gente não tivesse a casa sido destruída por 50 cm, ou não entrado água e barro dentro das suas coisas, do quarto da sua criança, da sua sala e até da demolição de muitas casas. Temos bairros inteiros destruídos na região. Roca Sales, Muçum, Lajeado, Estrela, Encantado, têm destruição de bairros inteiros, uma devastação, cenário de bombardeio de guerra. Todo mundo sabe que R$ 1 colocado em saneamento básico, reduz R$ 8 na saúde pública. Imagina o que poderíamos ter reduzido desse custo de demolição, se tivéssemos já implantado as nossas atividades de preservação de água. Segurar a água, diminuir a velocidade dela chegar.

Sul21: Qual a importância de manter a mata ciliar e as áreas de preservação permanente?

Julio Salecker: Elas reduzem a velocidade da água, amortecem, não deixam a água ser concentrada muito rápido lá embaixo. Nossa bacia começa em mais de 700 metros de altitude, em Cambará do Sul, Vacaria, Lagoa Vermelha e São Francisco de Paula, e quando chega em Santa Teresa, Roca Sales e Muçum, é 50 metros de altitude. São 600 metros de queda, é muita energia e é isso que houve.

Sul21: Essa tragédia pode agora colaborar para desengavetar a fase C do plano da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas?

Julio Salecker: Temos esperança e estamos depositando todas nossas forças nisso. Temos clareza de que não podemos culpar um governo específico, porque já se passaram sete governos desde que a lei foi promulgada, mas temos esperança que sensibiliza, sim. E que a gente consiga avançar não só com a fase C do plano de bacia do Taquari-Antas, mas no cuidado da população, da produção e a infraestrutura do Vale, para o qual já estão sendo direcionados muitos recursos, principalmente do governo federal.

Sul21: No horizonte imediato, o que deve e o que não deve ser feito?

Julio Salecker: Não podemos reconstruir residências abaixo da cota de risco. Agora é a hora, já que caiu. A gente fica muito sensibilizado com as pessoas, porque são suas casas, mas agora é hora de tomar essa decisão. São coisas rápidas de serem feitas. Não podemos botar mais dinheiro público na reconstrução de bairros e casas abaixo da cota de risco. Outra coisa rápida a ser feita é aprimorar o sistema de alerta e evacuação. Não temos um sistema de evacuação, temos um sistema de aviso. E quando você avisa uma comunidade, ela sai se ela quer. Isso não pode ser assim. Quando você tem morte de pessoas envolvida, de animais, de seja o que for, tem que ser evacuação. É ‘sai!’ Como o primeiro mundo nos mostra que isso acontece.


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