Opinião
|
27 de julho de 2022
|
14:09

Capitalismo mundial à deriva (por Marcelo Milan)

Foto:  Jon Tyson/Unsplash
Foto: Jon Tyson/Unsplash

Marcelo Milan (*)

O capitalismo mundial entra novamente em parafuso. Sem a COVID-19 como desculpa (real) e com a varíola dos macacos ainda em fase inicial de danos, seus epígonos devem sair correndo feito loucos para justificar mais um colapso. Confirma-se assim, com a renovação da crise, um movimento de declínio típico das fases contracionistas das ondas longas. Não é nenhuma novidade que o capitalismo mundial tenha de passar por longos períodos caracterizados por uma tendência estagnante. Alguns economistas pró-capital, como Robert Gordon, muitas vezes acabam tendo de encarar o mundo real, e se deparam com a grande estagnação ou estagnação secular. E assim suas reflexões reproduzem, inadvertidamente, as ideias de um(a) economista defunto, como já diria Keynes. Rosa Luxemburgo já havia identificado a necessidade de períodos persistentes de reduzido crescimento e crises frequentes como uma propriedade intrínseca do capitalismo avançado. Gordon argumenta que o problema da estagnação secular atual é a dificuldade de inovação na produção, posto que as novidades se concentrariam no consumo. De fato, o objetivo da produção no capitalismo não é satisfazer o consumo da mesma. O consumo é mero meio para validar um  consumo de trabalho produtivo anterior. Para evitar a estagnação, o capitalismo precisa de inovações acontecendo continuamente na produção, como Schumpeter aprendeu direitinho com Marx.

A estagnação então gera respostas míopes dos empresários e de seus governos, que permitem surtos rápidos de expansão via ganhos de curto prazo que acabam por recolocar o problema mais à frente. Este é o caso da atual hiper-financeirização, quando empresas não financeiras passam a adquirir ativos financeiros para recuperar os lucros que a estagnação reduz. E os ativos financeiros proporcionam maiores lucros porque as finanças seguem dando as cartas na economia mundial, impondo um padrão de política econômica, por exemplo, totalmente contrário ao crescimento (não que a política econômica seja fundamental para o crescimento, mas tem lá seus efeitos). O padrão moderno de atuação das finanças é o da rapinagem: como a renda cresce pouco, é preciso apropriar-se da maior parcela dela, no menor prazo possível. E distribuir bônus de legitimação. No capitalismo pós-Bretton Woods a volúpia especulativa se ampliou consideravelmente, praticamente selando o descolamento das finanças da economia real estagnada. A exceção à regra é a China e seus satélites asiáticos, que nunca embarcou na ladainha liberal (o que não quer dizer que o exemplo possa ser replicado na periferia, mesmo mudando as condições históricas, culturais e geográficas). Os chineses mantêm um sistema financeiro praticamente estatizado e logo sob forte controle, evitando uma economia financeirizada. É questão estrutural, de longo prazo, não de política ou administração de eventos de curto prazo. E muita mobilização de capacidades produtivas internas. A consequência? Crescem de forma rápida, sem grandes crises ou períodos de estagnação. Há hoje problemas localizados no financiamento do setor imobiliário que se desenvolveu às sombras, afastando-se do modelo central. Estas dificuldades podem se mostrar mais significativas em um futuro próximo, o que deveria gerar apreensão na economia mundial à deriva. 

São estes fatores, os surtos de curto prazo (voos de galinha) e o dinamismo chinês, que impedem uma deriva ainda maior. Pelo menos até o período antes da guerra entre EUA e Rússia, travada no teatro Ucraniano. Porém, o regime de acumulação financeira que permite ganhos rápidos é incompatível com o crescimento, fenômeno de longo prazo, contribuindo para a tendência estagnante. E a China se torna alvo geopolítico explícito dos EUA, situação acentuada com a perspectiva de visita de altos funcionários norte-americanos à província chinesa de Taiwan. Ou seja, a posição econômica de liderança da China não financeirizada só poderá ser desafiada militarmente. A diplomacia do dólar como arma política não se aplica neste caso, pela própria ausência da financeirização no país (e pelas volumosas reservas chinesas). As provocações norte-americanas, injustificadas, podem se transmutar no início dos ataques do imperialismo contra os chineses. A disputa militar também tem sido uma importante arma norte-americana de enfraquecimento de economias competidoras. A aposta que a guerra na Ucrânia enfraqueça o eixo Pequim-Moscou ao fragilizar a Rússia e ao mesmo tempo proporcionar o volume de gastos militares capazes de reverter a estagnação secular pode se mostrar arriscada demais. De qualquer forma, mesmo a manutenção de uma economia estagnada (excetuando os polos dinâmicos da Ásia) coloca por si só uma enorme pressão ecológica, com a destruição ambiental já irreversível e suas repercussões econômicas e sanitárias. A propósito, a OMS declarou emergência de saúde global no caso da varíola dos macacos (para o gáudio dos Anani – que poderão desfilar seu conhecimento da economia das pandemias mais uma vez!). Um dos principais paradoxos modernos é justamente a oposição entre crescimento econômico e preservação ambiental. A superação da estagnação pode ter como contrapartida a eclosão de mais  doenças até então desconhecidas. 

A guerra entre EUA e Rússia representa na atual conjuntura uma importante aceleração do tempo histórico e contribui para o surgimento de vácuos de poder que aumentam ainda mais a falta de rumo do capitalismo mundial. A dominação imperialista norte-americana, como toda dominação imperial exige um expansionismo desmedido. A organização escolhida para este avanço geopolítico é a OTAN, mas poderia ser qualquer outra. O expansionismo tem como resultado inevitável as guerras. E como todo império acaba pela sua expansão excessiva, os norte-americanos podem não suportar tantos malogros militares em pouco tempo, começando com a derrota no Afeganistão em 2020-2021. O fim da hegemonia norte-americana se acelera. Mas a indústria armamentista, embora por si só não permita dinamizar a economia mundial, será um dos setores da economia não financeira preservado da estagnação. Esta configuração projeta a formação ou consolidação de três grandes complexos. O já conhecido complexo militar, o novo complexo pseudo-verde (retórica da preservação ambiental dos novos investimentos em energia limpa) e um possível complexo da saúde (sic) ou das farmacêuticas, para responder à demanda criada pelas novas doenças (e pelas antigas). 

Isto em um quadro de desemprego, subutilização da força de trabalho e principalmente  precarização do emprego, respostas não financeirizadas do capital à estagnação. Tem-se desta forma um conjunto de fatores que apontam no sentido do aprofundamento da mesma. Num segundo momento, a combinação de estagnação ou crise econômica e guerra sinaliza um substancial fortalecimento do fascismo, cujas mangas foram postas de fora justamente pelo fracasso liberal em recuperar o crescimento da era dourada, dando centralidade à política como fonte inescapável da crise estrutural dos anos 1970. Os eventos recentes não deveriam criar muita esperança de reversão deste fenômeno, porém. Poderia o fascismo ser detido, por exemplo, simplesmente condenando Trump, Bannon ou o execrável como sinalização? Seria suficiente? É pouquíssimo provável. No caso dos dois primeiros, existe um sistema judiciário independente capaz de fazê-lo. No caso do inominável, não é preciso nem questionar as cortes e demais instituições oligárquicas. Mas não faz diferença. O fascismo hoje tem um simbolismo difuso e arraigado em partes da classe média e do empresariado que prescinde de um Duce. Ele tem um forte componente autopropulsor por meio de uma lógica sequencial mentira-ódio-loucura-mentira exposta-mais ódio-hospício (abrigo dos liberais que babam na gravata ou no colar de pérolas ao ouvir a palavra mercado). E as mentiras se disseminam por múltiplas fontes. É um processo difuso, não concentrado e personalizado. Além disso, o fascismo é altamente funcional ao capital, na medida em que existe como força reserva para repressão salarial quando o executivo civil ou o judiciário não cumprem este papel. Portanto, muito do que se vende como retórica antifascista é, na verdade, mero exercício de hipocrisia. 

E como fica a Bananilga no capitalismo mundial à deriva? O fascismo tupiniquim, incapaz de sustentar a dominação via instituições oligárquicas, esgarçadas diante de quem tem cérebro (vivo), não por não funcionarem, mas precisamente por funcionarem, descamba cada vez mais para o tudo ou nada. Se nos EUA a temporada de tiro ao público foi aberta em 1999 com o massacre de Columbine e desde então não parou mais, na Bananilga tende a ser bem pior, como não poderia deixar de ser. Quando o faroeste projetado pelo fascismo entrar em frenesi, serão cinco morros do Alemão, seis Jacarezinhos ou sete Vilas Cruzeiro por dia. E, é claro, não ficará restrito aos morros e às comunidades. Nem ao Rio de Janeiro. As chacinas, com as bênçãos dos militares e milicianos, farão parte do cotidiano de medo da população. E como o judiciário é ponta de lança da política na esfera legal, o medo será naturalizado na forma de jurisprudência. Aliás, parte da decadência do sistema de (in)justiça na Bananilga se explica justamente pelo esmagamento do único segmento que um dia já serviu à população trabalhadora de fato: a justiça do trabalho. Que teve como referência política justamente a Carta del Lavoro do Duce Mussolini. Porém, aqui o ciclo não se fecha com a formação de uma espiral de avanço, que passa pelas mesmas posições, mas em um nível acima. No nosso caso o círculo se dissolve para que o passado escravista não seja totalmente superado.  

Da perspectiva da produção, é claro que o setor fornecedor do complexo militar-miliciano terá sua acumulação ampliada. Toda a cadeia de saúde e dos serviços funerários será beneficiada. Mas será suficiente para compensar a perda nos setores em que as mercadorias circulam apenas se o índice de medo na população estiver baixo? É pouco provável. O Estado, formado pela tríade judiciário oligárquico, executivo afeito a uma liberalismo tosco e pelo orçamento secreto no legislativo das bancadas do boi, da bíblia e da bala, seguirá sem definir os parâmetros que acabaram por fazer parte, mas não por definir, a acumulação de capital doméstico. E como o capitalismo mundial está à deriva, nem mesmo ao movimento internacional de mercadorias e capitais a Bananilga se pode associar. Situação esta piorada pelo fracasso liberal que fomenta nacionalismos, refúgio cafona dos chauvinistas, e regionalismos, que proporcionam ímpetos localizados de dinamismo. A orquestração nacional na Bananilga se presta à sucessão das políticas dos grupelhos representantes do atraso atávico.

O sonho de FH “Boca de Sovaco” Cardoso se torna cada vez mais distante, com a fuga de capitais produtivos (e suas tecnologias) e a desarticulação dos elos produtivos construídos pelas estatais e pelo capital internacional, com o capital privado nacional sempre a reboque. O padrão tecnológico nacional, que já é de quarta ou quinta categoria, seguirá em trajetória de estropiação. A dependência, causa e consequência do subdesenvolvimento, segue plena. Mas a natureza associada deste subdesenvolvimento tende a desaparecer gradualmente, sobrando os enclaves operando na mesma lógica da financeirização (rapinagem). O agronegócio e sua correspondente destruição ambiental, somado à finança, seguirão dando a tônica da estagnação do resto da Bananilga. Mas a manutenção do agro na orientação do padrão de acumulação depende, em parte, da própria manutenção da China como principal economia dinâmica do mundo. Se o imperialismo triunfar, o que não deve acontecer nos próximos anos, a economia bananeira (ou seja, a renda da maioria e os empregos não precarizados por ventura existentes) entra em rota ainda mais acelerada de decomposição. 

A implosão só não será abrupta em função do mercado interno ainda significativo em termos absolutos, e que não se tornará cada vez mais insolvente no curto prazo apenas em razão das políticas de concentração de renda impostas manu militari, pelo Banco Central ou pelo arranjo oligárquico legislativo-juridiciário. Este quadro é compatível com a estagnação secular, mas uma estagnação de tipo agravado. Assim, o fechamento de vários programas de pós-graduação da Unisinos, instituição de ensino e pesquisa séria, não deveria causar surpresa. Muitos outros se seguirão, no RS e no restante do país, mesmo que com idas e vindas. O agronegócio que dá as cartas na Bananilga representa atraso econômico (de uma perspectiva dinâmica, não de eventuais ganhos de curto prazo, sempre muito concentrados em pouquíssimas mãos), ambiental, cultural, político e tecnológico (não inova, mas absorve inovação dos setores secundário e terciário ou, mais provável, do exterior). Um país com uma estrutura produtiva simples e arcaica (exportador de produtos primários e importador de tecnologias que apenas acentuam dualidades estruturais) não precisa de cérebros, pessoas pensando, refletindo, aprendendo, investigando. A desagregação da ciência e do conhecimento é um passo necessário da destruição dos espaços de acumulação criativa que sobraram ao ataque concentrado ao “entulho varguista” (industrialista) desde os anos 1990 e logo aos meios de sobrevivência de uma boa parte da população. Enquanto o capitalismo mundial está à deriva, o capitalismo nacional segue empantanado. E assim seguirá.

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora