Opinião
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25 de maio de 2022
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18:07

Rotinas de tiros nos Estados Unidos e no Brasil (por Milton Pomar)

Imagem publicada pelo autor do massacre em Uvalde (Texas) em uma rede social (Reprodução/Instagram)
Imagem publicada pelo autor do massacre em Uvalde (Texas) em uma rede social (Reprodução/Instagram)

Milton Pomar (*)

Mais um massacre de estudantes nos Estados Unidos (EUA), dessa vez em Uvalde, pequena cidade do Texas, próxima à fronteira com o México. Mais um massacre cometido por estudante, com recém-completados 18 anos, idade que lhe permitiu comprar legalmente as armas que utilizou para matar a tiros 19 crianças e uma professora. Mais um discurso do presidente dos EUA, indignado com a legislação do seu país que permite acesso a armas e munições como se fossem roupas ou brinquedos. Mais as tradicionais estatísticas de mortos e feridos em tiroteios nos EUA e as inevitáveis comparações trágicas – o massacre de 2012, com 28 mortos, ainda continua o maior em número de vítimas em escolas, e o de Las Vegas, em 1º de outubro de 2017, durante um festival de música country, o maior de todos – 59 pessoas foram mortas e mais de 500 feridas, baleadas em campo aberto, por um atirador que estava no 32º andar de um hotel, com vinte armas(!). Esse superou o de junho de 2016, em Orlando, Florida, no qual 49 pessoas foram mortas em uma discoteca, por um atirador com um fuzil.

Após o massacre na escola de Columbine, no Colorado, em abril de 1999, com 15 vítimas fatais (12 estudantes, um professor, e os dois assassinos), houve grande comoção no país, como se fosse desconhecida a sua cultura de armas, tiroteios, massacres, guerras e centenas de filmes exaltando tudo isso. O documentário “Bowling for Columbine”, produzido por Michael Moore em 2002, e premiado com o Oscar em 2003, denuncia a violência com armas nos EUA e busca uma explicação para essa rotina de tiroteios (e massacres) que vá além das teorias tradicionais.

Massacres e tiroteios nos EUA são rotina, desde seu surgimento enquanto nação. Lá qualquer pessoa tem acesso a armas muito letais, com grande capacidade de disparos e longo alcance. Estima-se que 40% das armas de uso civil no mundo estão nos EUA, apesar de sua população equivaler a apenas 4% do total mundial. Escolas, igrejas, lanchonetes, cinemas, supermercados, praças, parques, e espetáculos ao ar livre: qualquer lugar é lugar para um desajustado armado atirar e matar dezenas de pessoas. Um dos primeiros casos assim ocorreu também no Texas, na cidade de Austin, em 1º de agosto de 1966, quando um ex-atirador da Marinha entrincheirou-se no 28º andar do prédio da universidade, matou 16 pessoas e feriu outras 31. Essa tragédia virou filme (“The Deadly Tower”, de 1975, com o ator Kurt Russel no papel principal), o que talvez tenha até contribuído para incentivar mais ações desse tipo. 

Temos no Brasil um paradoxo em relação a homicídios por armas de fogo, comparando-se sua situação com a norte-americana: os EUA têm 50% a mais de habitantes; cerca de 350 milhões de armas nas mãos de civis; a sua legislação é absurdamente liberal no tocante à compra e porte de armas; quase todos os dias há um tiroteio com mortos e feridos, e de tempos em tempos uma pessoa resolve que vai matar muitas outras em uma escola. Apesar de tudo isso, a quantidade de homicídios por armas de fogo é menor nos EUA do que no Brasil (Mortes por arma de fogo nos EUA: 10 perguntas-chave respondidas | Centro de Pesquisa Pew (pewresearch.org), tanto em números absolutos como relativos. 

Com o agravante de que no Brasil há ainda a inacreditável cifra de cinco a seis mil pessoas mortas pelas polícias (a maior parte delas por policiais militares) todos os anos.

Enquanto o recorde de mortes por armas de fogo no Brasil ocorreu em 2017 (47,5 mil), nos EUA foi em 2020: 45 mil, 54% das quais suicídios. Comparando-se as proporções de mortes por 100 mil habitantes, temos 13,6 nos EUA, para 14,7 no Brasil em 2019, após uma década (2009 a 2018) na faixa de 19,1 a 22,9 (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes). 

Algumas médias caíram muito, de 2017 para 2019, sem que se saiba o real motivo de melhora tão significativa: de 22,9 por 100 mil habitantes, para 14,7, no Brasil; de 5,6 para 3,8 em São Paulo, e de 26,4 para 13,4 no Rio de Janeiro. Em 2017, em alguns estados, as proporções eram muito maiores: 40 no Pará; 47 em Pernambuco; 52 no Ceará e 55 no Rio Grande do Norte. 

Considerando-se que os totais de homicídios – por armas de fogo e outras causas – no Brasil, de 2017 a 2021, atingiram valores decrescentes (65,6 mil, 58 mil, 45,5 mil, 43,9 mil, 41 mil), e que, em média, 70% dos homicídios no Brasil são por arma de fogo, fica evidente que a redução nos últimos cinco anos contradiz o que se sabe dos efeitos da liberação de armas e munições. Nosso desafio agora é descobrir o que aconteceu realmente nesse período no Brasil, se os números divulgados sobre homicídios são todos confiáveis, se a crise econômica dificultou aumento expressivo da compra legal de armas, e quais impactos esperar para os próximos anos com os estímulos do desgoverno federal para que a população se arme.

Uma coisa é certa: com mais pessoas possuindo armas de fogo no Brasil, o prognóstico só pode ser trágico, porque o que antes se resolvia no tapa e no xingamento, agora será cada vez mais na bala, literalmente. Besteiras cometidas por pessoas sob efeito de drogas (de todos os tipos), agora resultarão em tragédias como a que o Fantástico mostrou domingo à noite: um policial federal, aparentemente bêbado, atirou 15 vezes em pessoas caídas no chão de uma lanchonete em Curitiba, matando uma e ferindo várias. 

Seguindo a lógica da argumentação a favor das pessoas se armarem, se mais pessoas naquela lanchonete estivessem com armas, teria resultado um tiroteio e tanto com o policial federal, com muito mais balas em todas as direções, e provavelmente mais mortos e feridos. Sobre hipóteses absurdas, é sempre bom lembrarmos das cenas nos EUA, nos últimos dias de Trump no governo, de dezenas de civis armados com fuzis-metralhadoras – que são armas de guerra – desfilando nas ruas como se estivessem somente enfeitados. Talvez seja exatamente isso que pretende o ex-capitão, ao incentivar com tanta ênfase seus seguidores(as) a se armarem: milicianos nas ruas para tentar intimidar o processo eleitoral. Nos EUA não funcionou. 

(*) Geógrafo e mestre em Políticas Públicas

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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