Opinião
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27 de maio de 2022
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14:52

Porque as sanções contra a Rússia fracassam (por Marcelo Milan)

Foto: Agência Tass
Foto: Agência Tass

Marcelo Milan (*)

Evito tratar de guerras, pelo menos aquelas envolvendo combates militares, quando elas eclodem. Ou seja, quase sempre. Interessam-me mais as guerras de classes e suas trincheiras semoventes. O intuito é esquivar-me de modismos. Sobre o tema da hora, todo mundo quer dar pitaco. Hoje o que tem de falso especialista falando da economia da guerra entre Rússia e EUA (A Ucrânia é apenas marionete do último, sofrendo pesados custos) não está no gibi (sim, eu sei…). Muita gente quer pegar carona nos assuntos candentes nesta sociedade do espetáculo e da busca desmesurada por atenção. Tanto é assim que, embora os EUA tenham travado guerras continuamente antes da atual, os Anani (Analistas Anitta – deixa a onda te levar) não fizeram um mísero comentário sobre as consequências de pelo menos algumas delas. O mesmo se deu durante a pandemia, com pseudo-especialistas em economia da epidemiologia, virologia e infectologia surgindo às baciadas. O paroxismo foi alcançado em recente relatório com a perspectiva da burguesia industrial decadente sobre ambos os temas (na verdade uma compilação de estudos de organizações internacionais, como não poderia deixar de ser). A próxima modinha deverá ser a economia da varíola dos macacos. Aguardem.

Deixo assim a guerra militar entre EUA e Rússia aos verdadeiros especialistas. Temos muito(a)s pesquisadore(a)s de qualidade sobre o tema. Mas, como diria o velho e bom Terêncio, nihil humani a me alienum puto. A análise das guerras estatais modernas, na verdade, é um estudo do capitalismo avançado. E não há dúvida de que a guerra, embora pré-capitalista, ganha uma renovação e um impulso sem precedentes com a sociedade produtora de mercadorias, pois o desenvolvimento das forças produtivas (o verdadeiro desenvolvimento) alcança um patamar muito superior ao dos modos de produção pretéritos, transformando-se em forças destrutivas. Tudo que é moderno e avançado deve excluir o Bananil, que prefere manter o seu capitalismo escravista colonial e o uso da guerra pelo Estado contra a própria população civil, inclusive câmaras de gás, em especial os negros e os pobres… Aliás, se a base industrial de defesa bananeira fosse autóctone, o país (ops) ainda estaria no equivalente à época das catapultas e aríetes, ou talvez até das pedras lançadas por fundas, tipo intifada, e das mamonas. 

Portanto, qualquer análise séria do capitalismo avançado precisa tratar das suas guerras permanentes. Uma das ilusões do idealismo economicista é acreditar que o comércio externo torna a guerra menos provável. Esta crença, limitada, considera que a guerra só é guerra se for militar, se houver aumento da produção de bens militares e redução da produção de bens civis. E mesmo assim estaria errada, para variar. Ou seja, a economia burguesa vulgar, em seus típicos exercícios estáticos ou a-históricos, abstratos e irrealistas, sem papel para o poder, coloca a questão em termos de escolhas livres: mais manteiga (bens civis) ou mais canhões (bens militares) em um quadro de pleno emprego, tecnologia livre e escambo. Mas, no mundo real, a economia (e dentro dela o comércio) é inseparável da história, da verdadeira política e da sociedade. No capitalismo, a guerra pode ser entendida como a realização do valor da produção de mercadorias cujo valor de uso é de capacidade de destruição. Inclusive com a exportação e importação de armamentos. A guerra sempre alimentou o comércio externo e o comércio externo sempre facilitou a guerra. 

A guerra é sobretudo política por meios militares, já dizia Clausewitz. Assim como a economia é política por meios monetários. Portanto, as lições das guerras são mais políticas do que econômicas. Por exemplo, a censura na prática, com o discurso de liberdade de imprensa; a mentira ou a oclusão da verdade; a proibição pura e simples (tem energúmeno excluindo estrogonofe do cardápio…) na prática, mas com a retórica da democracia liberal. Uma grande hipocrisia ocidental. Sendo a economia e a guerra manifestações da política, elas necessariamente se sobrepõem. Assim, Rosa Luxemburgo foi uma das pioneiras em tratar do papel da guerra e dos gastos militares que a acompanham para a realização do valor ao evitar um aprofundamento das crises capitalistas em economias limitadas pelos mercados geograficamente disponíveis. Michael Kidron examinou, nos anos 1960, o papel econômico da guerra permanente. Recentemente um novo livro foi lançado por Adem Yavuz Elveren trazendo à tona a questão dos gastos militares e sua relação com a taxa de lucro como central para o capitalismo avançado. Assim, historicamente as guerras não causam crises, pelo contrário. No capitalismo, a guerra tem sido historicamente a solução para as crises, não da humanidade, mas do próprio sistema. Isso não quer dizer que não haja efeitos colaterais. Talvez o ponto central seja que estes efeitos não são facilmente previsíveis, pois o futuro é incerto.

É assim impossível conhecer os impactos desta guerra, até porque o próprio fenômeno está se desenrolando. Análise de impacto de guerra é exercício pretérito. O problema é isolar todos os efeitos relevantes, pois as economias capitalistas que sofrem efeitos colaterais das guerras não precisam das mesmas para entrar em parafuso. Pelo contrário, o exercício de olhar para situações parecidas no passado em busca de analogias ou homologias sugere que a guerra é de fato uma forma de estimular os gastos, como em Luxemburgo, e tirar as economias de situações de recessão ou depressão, como na II Guerra, posto que a realização possível é em geral insuficiente para absorver todo o valor e mais-valor gerado. Pano rápido, para lembrar o saudoso Paulo Henrique Amorim: uma guerra contra a pobreza teria efeitos parecidos ou até melhores em termos de estímulo econômico, mas tentar acabar com a pobreza em um sistema que gera desigualdade endemicamente, e logo pobreza, equivale a enxugar gelo, tal como querer reindustrializar o Bananil com base na burguesia industrial decadente, parte da qual acredita que acabar com a pobreza significa matar os pobres. 

Um exemplo dos benefícios da guerra para o capitalismo avançado: ela permite introduzir novas tecnologias. A ideia de que as inovações vem apenas da motivação pelo lucro, do empreendedor individual e heroico que vende as calças ou um rim para financiar suas invenções… é uma bazófia. O livro A Guerra é Boa para o Crescimento [Econômico]?, de Vernon Smith, mostra que as principais inovações tecnológicas das últimas décadas, inclusive a internet, surgem de gastos militares, isto é, do Estado malvadão… Isso não é surpreendente para quem estuda a realidade, mas não cabe nas cabeças de planilha.

Não sem razão, nos EUA se desenvolveu um Complexo Militar Industrial (CMI). Se a guerra trouxesse apenas efeitos negativos para o país, o CMI já teria sido desativado ou relocalizado para  países pobres, assim como fazem com os armamentos ultrapassados. A análise classista permite entender porque existe um CMI em primeiro lugar e principalmente porque ele é vantajoso em segundo. Se o CIM se volta contra a própria sociedade que o criou, onde ele estaria localizado? Em Marte (deus romano da guerra)? Ou seria gerido por robôs e máquinas, como em Matrix? O CMI faz parte da sociedade, e há quem ganhe com ele. Assim como é incorreto afirmar que o Brasil está em crise, pois há uma enorme fila de espera entre os ricos para comprar jatinhos e aeronaves particulares em geral (eu sei porque estou esperando há quarenta e sete anos). Os ricos não estão em crise. Logo, não fazem parte do Brasil? 

No caso do CMI, não é preciso invocar uma suposta racionalidade econômica de que a sociedade não daria literalmente um tiro no próprio pé ao criar um CMI contra ela. O importante é notar que há lógicas de poder dentro da sociedade. Há efeitos colaterais para algumas frações do capital com o CMI e a guerra (via aumento de custos, perda de subsídios e de mercados). Mas o capital que lucra com as guerras intermináveis, além de fazer parte da sociedade produtora de mercadorias, se impõe sobre as frações não belicistas sem qualquer inserção nos elos das cadeiras produtivas militares. Da mesma forma, os trabalhadores do CMI são beneficiados pela guerra, mantendo seus empregos e salários. Não fariam estes trabalhadores parte da sociedade? Bernie Sanders, o candidato presidencial da esquerda nos Estados Unidos, levou a produção de um jato da Lockheed Martin para seu estado, Vermont. Às vezes, mesmo a contragosto, é preciso ler e estudar Marx, o eterno

Enfim, há elementos de economia política para se refletir sobre as guerras e suas cadeias produtivas e de distribuição. E muitos elementos interessantes também na economia política internacional, principalmente ao enfatizar as armas não militares, aquelas que dão um nó na cabeça do economista burguês vulgar, que vê a economia, resumida ao mercado e nas trocas, como espaço de harmonização de interesses antagônicos. Por exemplo, Riccardo Parboni escrevia na New Left Review, nos anos 1980, sobre a arma do dólar. A moeda pode ser um instrumento de violência. E não apenas. É ferramenta de estadismo. As sanções, ataques econômicos coordenados por um Estado, diferem do comportamento de manada típico dos ataques por instituições financeiras. Há diferenças entre confisco (roubo) de reservas por potências amedrontadas e a perda de reservas por fuga de capitais amedrontados. As sanções têm sido utilizadas como instrumento econômico de agressão política, principalmente na atual guerra entre EUA e Rússia. Aliás, a própria URSS fora alvo de embargos dos EUA nos anos 1980 após a invasão do Afeganistão (depois invadido pelos próprios estadunidenses…) e a declaração de Lei Marcial pelos soviéticos (sic) na Polônia. E novas sanções após a retomada da Crimeia não impediram a reação militar Russa contra a OTAN. Mas as sanções têm sido efetivas? 

Uma enorme quantidade de pesquisas sugere que não. Pesquisadores como Klaus Knorr, Harry Stracks, Garry Hufbauer, Jeffrey Schott e especialmente Robert Pape mostram que as sanções geralmente não funcionam. Uma das razões é a reorientação dos fluxos para outros parceiros. Outra é a deflexão ou desvio dos custos para outros países, podendo as sanções inclusive se voltarem contra os impetradores. Há também a dificuldade de focar em alvos precisos. Assim, as sanções (embargo) de décadas contra Cuba não debilitaram em nada o exercício do poder político pela burocracia. Pelo contrário, geraram dificuldades para a população em geral e maior coesão social contra o imperialismo. Na Venezuela, idem. Falando em Venezuela, antes parte dos “eixos autoritários” ou “troika da tirania”, agora é cortejada para complementar os fluxos de petróleo e ter as sanções oportunisticamente suspensas… O mundo dá voltas…E no caso da Rússia em guerra contra os EUA? As sanções do mundo ocidental não parecem ter movido um milímetro na disposição de Putin de manter suas táticas e estratégia. 

A revista Foreign Policy mostra que a Rússia exportou mais recursos energéticos em Abril do que em Março, principalmente para a própria Europa, além de Índia e Turquia. As contas externas estão enormemente superavitárias. E recebendo em rublos, o que reposiciona a moeda e tende a enfraquecer ainda mais o dólar estadunidense. O rublo vale 30% mais hoje do que antes da guerra, em parte pela imposição de controles de capitais, medida sempre aconselhável. A Europa está de joelhos após a patacoada de que poderia viver sem os recursos energéticos russos. Patavina! Quantas semanas podem as indústrias e lares da Polônia, Bulgária e Finlândia ficar sem o fornecimento da Gazprom, agora redirecionado para outros países? A Áustria já pediu arrego e vai pagar direitinho em rublos. A Alemanha avalia os impactos industriais profundos de problemas com o abastecimento de recursos energéticos russos. A lorota da independência vem desde o primeiro choque do Petróleo nos anos 1970, quando se acreditava que alternativas energéticas estariam disponíveis em breve, pelo progresso inevitável da tecnologia. Tanto não aconteceu que um dos eixos da política imperialista dos EUA passa por invadir constantemente países fracos que possuem petróleo e outros recursos energéticos.

Isso não quer dizer que os dados econômicos russos disponíveis não possam sofrer uma deterioração. Quer dizer apenas que, caso ocorra, a deterioração não será provavelmente causada pelas sanções, ou pela guerra. Há outros exemplos de reorientação que neutralizam as sanções. Ao excluir os bancos da Rússia do sistema SWIFT, que o economista burguês vulgar acredita ser apenas uma rede bancária de mensagens promovida pela tecnologia e pelas comunicações, a partir da Bélgica, isto é, um instrumento de mercado sem qualquer influência política, os EUA acabam por prejudicar o seu dólar. A Rússia tem um sistema desenvolvido desde 2014, o sistema para transferência de mensagens financeiras (SPFS). E há também o sistema chinês, o sistema de pagamentos interbancários transfronteiriço (CIPS). A realidade dá vários tabefes nos economistas idealistas, mas este tipo de altismo é impérvio ao mundo real.

As sanções provavelmente continuarão fracassando. A única hipótese de que funcionem é que as defesas contra sua imposição sejam neutralizadas com a formação de um império mundial, em que todos os países e regiões estariam submetidos na forma de províncias ao poder do imperador estadunidense. Mas Biden não serve nem para Heliogábalo, quanto mais para Caio Júlio César… E dado que Trump seria no máximo um Nero a tocar fogo no Capitólio, não há condições humanas para a formação de um império. Para não mencionar as condições geopolíticas, com China, Índia e Rússia não podendo ser conquistadas nem submetidas sem uma derrota militar nuclear acachapante. A saída é seguir com as inúteis sanções e a hipocrisia da liberdade, da democracia e do direito internacional. 

O artigo está se tornando muito sério. Não consegui inserir muitos comentários sardônicos nem exercer meu lado satírico de forma satisfatória. Portanto, melhor finalizar. Ou podem se iludir que eu entendo alguma coisa de guerra.

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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