Opinião
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27 de julho de 2023
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13:53

A irrelevância da queda da taxa de juros – parte II (por Marcelo Milan)

Governo estadual calcula perda de R$ 811 milhões de ICMS em relação a 2022.  Foto: Arquivo/Agência Brasil
Governo estadual calcula perda de R$ 811 milhões de ICMS em relação a 2022. Foto: Arquivo/Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

As expectativas de uma queda na meta para a taxa SELIC fixada pelo colegiado operando para o ‘mercado’ (copom), liderado por Bob ‘tenho conta em paraíso fiscal’ Fields, na próxima semana, convergiram para quase que um consenso. O IPCA-15 registrou deflação! Agora vai! Mas, como em muitas reuniões anteriores, pode haver frustração. E quanto maior a pressão social, inclusive de grupos capitalistas não totalmente financeirizados, maior a propensão do colegiado em se mostrar, ao rentismo, independente da maioria da sociedade (a decisão é técnica! Os capitalistas deveriam baixar os preços, não reclamar de decisões tomadas com base no Evangelho de São Wicksell!). A gurizada do copom olha para o futuro, diferente dos reclamões que não entendem nada de economia e só olham para o presente. De qualquer forma, teriam os ‘principais’ (rentistas) autorizado seus agentes a baixar a meta para a SELIC? Já teriam ganho o suficiente na atual janela? A fome do rentismo é insaciável. Mas sempre pode haver indigestão. 

Quanto o parasitismo ganhou na atual temporada de transferência de renda? Segue um cálculo simples: suponha um único rentista que tem R$ 1 bilhão aplicado no Tesouro SELIC (antiga Letra Financeira do Tesouro dos Rentistas) e portanto recebe uma taxa correspondente à meta atual para a SELIC (13,75% ao ano). Este é apenas um piso (por isso é chamada de taxa básica). Assuma que a aplicação foi feita sem alavancagem, isto é, sem empréstimos a um custo menor que o da SELIC, como em operações de carry trade – empresta-se a taxas baixas lá fora e se aplica em títulos na Bananilga. E ignore questões como duração e convexidade. Se a taxa cai para 13,5% ao ano, o magano deixa de ganhar pelo menos o equivalente a R$ 2,5 milhões anuais. Dinheiro de pinga, pois segue ganhando o equivalente anual a R$ 135 milhões sem levantar da sua Aresline Xten. Visto de outra forma, apenas desde Agosto de 2022, quando o fluxo de transferência alcançou seu ápice, a conta de juros do governo e dos devedores privados (a taxa usurária do cartão de crédito fica acima de 400% ao ano – quase 30 vezes mais que o piso) tem proporcionado rendas extraordinárias para os rentistas. E cada mês a mais é um outro rio de dinheiro que se ganha (e se paga pela maioria). Não houve até aqui pressa para reduzir o acréscimo ao tesouro dos bacanas, portanto. Mas muita renda já foi transferida e os glutões podem entrar na fase de digestão/ruminação…

Nas próximas confrarias de Agosto, Setembro, Outubro/Novembro e Dezembro, se a meta cair 25 pontos-base em cada uma, ainda assim chegará ao final do ano em 12,75%. Um paraíso para o rentismo. Segundo o picolé de chuchu, para cada 1% de SELIC a viúva paga R$ 38 bilhões ao rentismo. Não é difícil entender porque Bob Fields e a molecada a mantêm tão alta. Mas, de novo, quanto o governo pagou de juros de fato nos últimos 12 meses? R$ 660 bilhões… Ele vai gastar com juros, neste ano, para um punhado de parasitas, mais que o orçamento esperado somado dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Saúde e da Educação para milhões de cidadãos. Baixar 100 pontos-base aqui ou ali não fará muita diferença no grande esquemão de expropriação do governo e dos credores pelo rentismo. O rentismo está à espreita. O problema não é conjuntural.

E a inflação, suposto objetivo do copom? Aqui se tem, além de outros mecanismos de transferência, problemas para a dinâmica de preços com os juros explosivos. A taxa de juros elevada tem efeitos sobre a elevação dos preços. Por exemplo: ela causa alguma redução na aquisição financiada de imóveis. Como as pessoas precisando adquirir moradia em geral não podem simplesmente ir morar na rua, elas só conseguem alugar um imóvel. Isso aumenta o poder de barganha dos proprietários, que encontram uma oportunidade para ‘arrancar o couro’ dos inquilinos sem opção. O valor do aluguel sobe (e esse serviço compõe os índices de preços utilizados para medir a inflação…). O economista vulgar vitupera: mas e o efeito substituição? Se algo fica caro, é possível substituir por algo barato. Não precisa alugar um imóvel decente. As pessoas podem ir morar em habitações precárias, em cortiços e favelas! Ou então encontrar taxas de juros menores entre os agiotas! 

E aqui entra um aspecto cultural, que é normal para a economia comportamental mas uma barreira intransponível para quem foi doutrinado nos modelinhos ortodoxos: se os juros e a amortização cabem no orçamento, então não há nenhum problema em pagar três ou quatro vezes o valor do bem em juros, desde que com prestações diluídas em vários meses. O horizonte relevante, novamente. Ou seja, pode haver uma certa anestesia social que não deixa sentir a abocanhada dos juros na renda não-financeira, pois não vem de uma vez. Ou seja, que diferença faz para quem paga 400% ao ano no cartão pagar 399%, 395% ou 350% ao ano? Se a SELIC cai 0,25 pontos-base para 13,50%, isso pode não se refletir proporcionalmente nas taxas de juros das operações de financiamento em geral em um primeiro momento, para postergar a operação ‘esfola o devedor’ sancionada pelo copom. O rentismo vive em permanente estado de embriaguez na Bananilga. Mas estes aspectos culturais permitem transformar o pagamento de juros escorchantes (viva Efeagácê!) em norma aceitável. A vontade política dos rentistas e seus economistas/consultores é naturalizada.

E mesmo se houver queda proporcional nas taxas na ponta, ela pode não afetar decisões de gasto na magnitude esperada. O crescimento econômico surpreendente no primeiro trimestre (surpresa para os picaretas que não conseguem prever nem se o sol nascerá novamente no dia seguinte) sugere, em parte, que o objetivo do copom de destruir renda monetária pode não funcionar na velocidade esperada. O patamar da taxa de transferência, de tão alto, se tornou irrelevante. As vendas no comércio aumentaram. Qual porção desta expansão foi financiada por crédito a taxas de juros aviltantes? E estes movimentos podem até ser utilizados pelo copom para manter a política de transferências excessivas: afinal, a taxa de juros não está tão elevada assim… é preciso elevar a tributação dos devedores gastadores, anestesiados e acomodados aos atuais patamares…

Mas o que é a destruição de renda pretendida pelo copom? A política monetária, no atual estágio de disfuncionalidade, não transfere apenas renda. Um outro objetivo de qualquer política (sim, política!) monetária contracionista é a destruição de rendas não-financeira, posto que as financeiras são preservadas e valorizadas por definição. Voltando ao exemplo da habitação: a intenção não é apenas que as pessoas com crédito não financiem seus imóveis sem deixar o triplo do valor do mesmo para o agente financeiro. É que a construção civil produza menos imóveis (novos imóveis são renda real, metamorfoseados em produtos). Como isso opera? As construtoras existentes simplesmente reduzem o fluxo de novos imóveis (investimento)? Sim. Reduzem os dividendos (lucros)? Sim. Potenciais construtoras não se concretizam (ops)? Sim. Mas principalmente: algumas construtoras existentes são lavajatizadas, deltanhadas ou moradas (ops). São destruídas. 

E os trabalhadores da construção civil? Doa a quem doer, como argumentado na primeira parte deste artigo. O desemprego tem um efeito purificador, ao reduzir o poder de barganha dos trabalhadores e colocar pressão de baixa sobre os salários e logo sobre os preços das construtoras que não foram lavajatizadas e das empresas em geral. Esse é o objetivo do copom político legado pelo proto-fascismo, posto que sua ‘autonomia’ preserva e amplia o patrimônio dos parasitas do ponto de vista econômico, ao mesmo tempo em que busca politicamente sabotar um governo que pode redistribuir uma módica parcela de possíveis acréscimos de renda para os mais pobres e para a classe trabalhadora. Eis a luta de classes e o conflito distributivo.

A política monetária supostamente, na teologia, só responde a choques que se refletem na dinâmica de preços, isto é, não é ela própria uma fonte de disfuncionalidades. E se estes ‘choques’ (porque na análise irrelevante do equilíbrio, a instabilidade intrínseca do capitalismo é substituída pelo termo anódino ‘choque’, mas cada vez mais restrito às decisões políticas) se transmitem ao longo da cadeia produtiva (simplificada como ‘oferta’ porque os papagaios só conseguem repetir oferta e demanda para retirar a complexidade a que o termo cadeia de valor remete). A inflação se combate única e exclusivamente pelo copom, por meio de recessão, mesmo que seja um problema de conflitos intracapitalistas ao longo da cadeia (disputa entre fornecedores e processadores). Isso se não houver uma combinação com ‘choque’ positivo de ‘demanda’ (outra simplificação para gastos planejados a partir de níveis de preços hipotéticos, tudo mais constante…), sinônimo para expansão fiscal. Esse segundo reverte o efeito recessivo almejado pela política monetária sobre a produção, mas acentua o efeito sobre a inflação. É preciso aumentar, ainda mais, a taxa de juros.

E mesmo que não haja aumentos líquidos nos níveis de despesa (e a renda de juros gera despesa líquida pelos rentistas), o copom almeja dar um ‘choque’ negativo no gasto não-financeiro, para anular o efeito do ‘choque’ sobre a inflação e reforçar o efeito sobre a atividade econômica, isto é, destruir renda não-financeira (assumindo que a despesa responda à taxa SELIC como nos manuais e não haja anestesia e acomodação…). Assim, para a política monetária rentista, não importa se uma alta de preços se origina na produção ou na circulação. É preciso promover a destruição de rendas monetárias ou destruição de valores monetários, que incluem preços e quantidades. Se a quantidade desaparece, o preço não tem sobre o que incidir para formar o valor monetário. Menos decisões potenciais de elevação de preços. Há menos propriedade a ser precificada para cima. 

Nos modelitos abstratos e irrelevantes, essa destruição consegue, assim, abaixar os preços médios  (melhor baixar o preço que fechar o negócio – pausa para gargalhar). Se houvesse coordenação perfeita das decisões, como nos modelitos, todos os agentes abaixariam os próprios preços e ninguém quebraria ou perderia o emprego. Mas no capitalismo tem sempre empresas quebrando, pela busca concorrencial por lucros ou pela transferência de renda incompatível com a própria manutenção dos fluxos de renda necessários para sobreviver. A quebradeira tem um efeito Andrew Mellon (secretário do Tesouro dos EUA durante a Grande Depressão): liquidar empresas (e principalmente empregos) para que as demais não elevem seus preços. No mundo real, há concentração e inter-relações técnicas, econômicas, jurídicas etc. que articulam as empresas. Com a quebra das empresas mais débeis, as mais fortes ganham poder de mercado, e, por mais que tenham habilidades produtivas ou comerciais que permitam trabalhar com preços baixos sem quebrar, operam para elevar os preços. Outra consequência da transferência ao rentismo.

A única forma de reverter essa configuração socioeconômica é pela eutanásia do rentista. Mas por que ela não acontecerá? Fernando Ferreiro já está totalmente doutrinado na cartilha do copom, instrumento institucional do rentismo (cadeia de comando: Faria Lima manda, copom obedece e exige da Fazenda que obedeça prontamente). Tudo o que ele faz é para acomodar a visão do copom de que o país está a beira do caos-hiperinflacionário-das-expectativas-desancoradas e que só as maiores taxas de juros reais do planeta podem redimi-lo se não houver restrição fiscal. Se a Fazenda fizer algo positivo, será taxada de irresponsável, de amante da inflação, de causadora de pobreza, de criar incerteza jurídica, de aniquilar a credibilidade da política econômica frente aos detentores de riqueza financeira etc. E isso funciona. Se alguém sem riqueza rotular o ministro de Ferreiro, tudo bem. Se a banca chama de irresponsável, aí a coisa muda de figura. Típico. Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo, com bem sabe o diretor de política monetária do playground da banca.

Em suma, siga o dinheiro. Siga o Bob Fields e a molecada do copom, depois de defenestrados, mantendo suas remunerações sustentadas pela viúva por mais seis meses, E veja a quem eles servem (se não quiser esperar, veja a quem serviram antes e continuam a servir). Defenestre-os e veja que o problema não é individual. É estrutural e institucional. E aqui tem que ter coragem para mudar. Mas essa não há.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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