Opinião
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27 de junho de 2023
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09:49

A irrelevância da queda da taxa de juros – Parte I (por Marcelo Milan)

Integrantes de centrais sindicais fazem protesto contra os juros altos em frente à sede do Banco Central.  Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Integrantes de centrais sindicais fazem protesto contra os juros altos em frente à sede do Banco Central. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

O volume do chororô sobre a esperada decisão dos garotos de recado do parasitismo rentista (também conhecidos como copom – colegiado operando para o ‘mercado’ – Bob Fields não é o único problema…) de manter a meta da taxa SELIC na estratosfera por mais 45 dias aumentou bastante nos últimos dias. Mas não deveria ser surpreendente para quem conhece o capitalismo de rapina brasileiro. O mais importante é entender que, dada a atual configuração dos mecanismos de política monetária, movimentos decrementais graduais na meta, por mais prolongados que a finança permita, não fazem tanta diferença para a expansão sustentada das rendas não financeiras. O principal impacto é nas despesas públicas e no butim potencial do centrão-direitão que assola o País. 

A sociedade escolheu (nem sempre de forma livre) os representantes oligárquicos que atuavam nas instituições oligárquicas do congresso nacional (sic) e legitimaram este barbarismo. A parte da sociedade cuja principal fonte de renda não são os juros não pode reclamar, pois tudo feito dentro das regras do jogo de cartas marcadas (cara o rentismo ganha, coroa a maioria perde) referendadas pelo voto e que não se tem coragem de tentar mudar. Um BC autônomo é autônomo da maioria sociedade justamente para transferir renda para uma minoria no andar de cima sem questionamentos. Independência é independência das necessidades da economia real para uma imersão no parasitismo financeiro, ampliando o conflito intracapitalista e interclassista. Prestação de contas (para quem? Para o centrão-direitão…) sobre a diferença entre a meta e a inflação efetiva é ato meramente protocolar, sem qualquer relevância (compare com as propostas de punições impostas aos responsáveis pela política fiscal no caso do calabouço em tramitação). 

Quando a meta e a taxa de juros vão cair? Quando o copom quiser, oras! E neste caso se cairá, quando cair, para 13,74% (ops) ou 13,51% pouco importa. O intervalo de alta (gordura rentista para ser ‘queimada’) é elástico e depende de vários fatores, principalmente da própria inflação no caso da taxa real, que não depende apenas da taxa de juros (se é que depende). Como o processo de redução é lento por desenho, seguindo o ritmo de necessidade de acumulação e ganhos financeiros (‘horizonte relevante’), não se alcançarão patamares civilizados até a 283ª reunião. Isso se o copom quiser e baixar continuamente a meta no ritmo de decrescimento ditado pelo rentismo (o que depende da evolução do estoque de dívidas – se cair o indicador de fluxo, tem que aumentar o indicador de estoque para manter o fluxo de transferências). E como até chegar esse futuro indefinido a materialização dos entrelaçamentos estruturais de dominação financeira e conjunturais de conflitos intracapitalistas e interclassistas, para não mencionar a mediação política de ambas, não permanecerão estáticas, o exercício de futurologia se torna irrelevante. Previsão econômica não tem serventia nem quando motivada por boas intenções. O foco da crítica deve ser outro. 

Por exemplo, por que o copom pode não querer baixar ou iniciar uma trajetória de reduções, mesmo que em um movimento gravissimo? Apelando a um dos truques favoritos de caixa de aboizes dos economistas vulgares. Sem ser exaustivo, esta inclui o longo prazo que nunca chega (pois condicionado a condições irreais e sem referência ao tempo-calendário), invariância de aspectos variáveis importantes (ceteris paribus), equilíbrio emprestado da ciência (física) como situação normal (equilíbrio é o que o economista vulgar diz que é), e, mais importante para o ponto em questão, expectativas compatíveis com qualquer situação que se queira para justificar qualquer argumento (ou decisão) que se queira. O truque das expectativas (de quem, mesmo?) pode sempre ser mobilizado para justificar a manutenção de taxas de juros escorchantes. Por exemplo, as expectativas estão desancoradas (o truque da âncora também é mobilizado com frequência – sem âncoras – na verdade amarras às políticas discricionárias – o país – na verdade os ganhos dos ricos – afunda!).

É assim um erro acreditar que a desinflação ora em curso é condição necessária ou suficiente para os colegiais operando para o mercado reduzirem a meta para a taxa selic. O modelo irrealista utilizado pelo copom, uma versão de uma tonteria chamada de Regra de Taylor, considera as projeções futuras (truque das expectativas), não o passado ou o presente, para fixar a meta para a taxa selic. Se o passado entra no cálculo do futuro nos modelos de formação de expectativas da turma da bufunfa (Valei-me São Batista Jr.!), então pode haver alguma influência. Mas não é considerado racional se comportar desta forma, pois o passado é um custo afundado. Melhor olhar para a frente. Assim, sempre se pode apelar ao truque das expectativas para justificar a transferência excessiva de recursos do Tesouro para o rentismo. Bob Fields apela à desancoragem das expectativas dos especuladores para justificar a mamata. O que isso quer dizer? Nada. É uma tentativa de justificar de forma supostamente ‘técnica’ a meta elevada para a taxa de juros (outro nome para a decisão política de transferir rendas de baixo para cima).

E mesmo se decidir baixar a meta para a selic porque as expectativas ‘convergiram’ (isto é, já transferimos rendas dos contribuintes o bastante para o rentismo nesta janela temporal), ainda há uma segunda barreira. Trata-se da liturgia a ser observada nas alterações da meta: o copom tem um compromisso comunicacional tácito com o rentismo e com a comunidade financeira (não devem ser confundidos). Tem que obedecer ao catecismo. Ou seja, está voluntariamente aprisionado em amarras autoimpostas. Como o copom não havia indicado nas entrelinhas (comunicação “secreta” entre a seita – e eles defendem que o regime de metas de inflação é o paraíso da transparência… claro…) uma redução, então não pode reduzir. Tem que avisar, de forma secreta e antecipadamente, para os especuladores se prepararem. Ou seja, o copom não havia pedido a bênção e então não pode fazer nada. O rentismo vai ganhando com a inércia que impõe aos mecanismos de implementação da política (sim!) monetária. 

Essa regra não escrita que os movimentos na meta para a taxa SELIC devem ser “suaves” prolonga a agonia dos credores (principalmente a viúva). Mas ela precisa ser entendida como condicionante estrutural da política monetária. O dinheiro, em grandes quantidades, é bicho covarde. Se assusta por qualquer motivo ou movimento nos valores econômicos não antecipados ou anunciados nas entrelinhas. Para quem vive do parasitismo, qualquer variação não ‘comunicada’ implica redução potencial de ganhos. E é esse ponto que deixa claro que não tem questão técnica em matéria de política monetária. Política é política. São as regras do poder financeiro. Há uma relação entre o valor da riqueza ao longo do tempo e a taxa de juros, quase sempre unidirecional: vai da última para a primeira. Quando as metas das taxas de juros da desautoridade monetária mudam e são adotadas ações para que as taxas mudem também (na mesma direção e para o mesmo patamar), as condições de acumulação real e financeira são afetadas. Principalmente a financeira, mesmo de ativos cuja ‘remuneração’ não vem do juro mas cujo valor no tempo é descontado pela taxa de juros. Então o copom precisa moderar o passo. Não mudar se a mamata está boa, e mudar lentamente se for necessário (pressão intracapitalista em função do descompasso na valorização dos diferentes capitais). Se fosse apenas técnico, seria assim: se a taxa tiver que cair, que caia. Doa a quem doer. Mas doer no bolso dos ricos e poderosos é proibido. Aos pesquisadores e pesquisadoras sem incumbências burocráticas imbecis cabe investigar se a liturgia é observada também para elevações da meta.

De qualquer forma, a política monetária é desenhada de forma que os momentos de transferência de rendas excessivas, de devedores em geral e do governo em particular, para o rentismo, sejam prolongados (‘horizonte relevante’). É importante notar que a renda não fica no mesmo nível e nem com a mesma composição a partir desta dinâmica. A renda nacional inclui renda de juros por definição. Em condições normais, algumas decisões de gasto dependem da taxa de juros, pois neste caso são um custo para quem tem que pagar tributos ao rentismo ou ao sistema financeiro, indiretamente via Estado. Como se argumentará na segunda parte deste artigo no próximo mês (e neste intervalo o rentismo seguirá tungando bilhões da viúva), um possível resultado de se manter a política de transferência de renda por longos períodos é que isso gera também uma queda na participação das outras rendas nominais e reais (salários, lucros e alugueis) na renda agregada. É claro, a financeirização complica o quadro, pois permite que a renda de juros e os ganhos de capital (aumento de valor dos ativos) se combinem com outras rendas (renda funcional e renda financeira compondo a renda total).

Vivemos assim uma potencial quase eutanásia do não-rentista. Que se apresenta como possibilidade mas nunca se efetiva totalmente por razões que serão apresentadas na segunda parte. O rentismo promove uma tendência à estagnação das demais rendas, tanto da classe que vive do próprio trabalho como daquela fração que vive do trabalho alheio, mas, pelo menos, o mobiliza para produzir mercadorias. A tendência não é determinística, porém. Enquanto isso, cabe retomar um velho adágio: Assim como no caso das saúvas (que tinham uma vantagem frente ao ogronegócio – formiga não dá golpe), ou a maioria na Bananilga acaba com o rentismo ou o rentismo seguirá prejudicando a participação da renda da maioria da Bananilga. Reduzir a taxa selic nos moldes atuais da política monetária não é o meio, porém. Civilizar a política monetária pela eutanásia do rentismo é o ponto. E isso não acontecerá. 

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


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