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27 de maio de 2021
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12:27

A economia política das reformas liberais sem fim (por Marcelo Milan)

Por
Sul 21
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“A proposta liberal é na realidade uma fraude intelectual”. (Wikimedia cc 2.0)

Marcelo Milan (*)

Existe uma anedota muito conhecida entre os estudiosos (e alguns nem tanto) de economia, segundo a qual até um papagaio poderia aprender a “ciência” lúgubre, pois bastaria repetir, mecanicamente, ‘oferta e demanda’ para qualquer tipo de pergunta (mesmo aquelas sem relação com a economia). A missão da inteligente ave seria muito facilitada no Brasil de hoje. A pobreza da sabedoria econômica convencional se reflete na indigência vocabular de seus praticantes. Troquem-se dois substantivos e uma conjunção por um único substantivo. Bastaria agora repetir ‘reformas’ e qualquer louro teria a legitimação do establishment para ser considerado um mestre nupérrimo da “ciência” da riqueza nas terras tupiniquins. A necessidade permanente de reformas liberais ganhou status de mantra, cuja entoação traria uma suposta cura, uma promessa declarada, e logo ex ante, de resolução para os problemas econômicos crônicos da maior parte da população. Como se o País não tivesse implementado reformas liberais quase que ininterruptamente nas últimas três décadas e meia. Na verdade, as propostas atuais de reformas liberais são defendidas principalmente para esconder os fracassos das reformas liberais anteriores, em uma fuga permanente da prestação de contas pela falta de resultados.

O excelente Dani Rodrik, um exemplo de luminar cuja inteligência não tem espaço nos atuais departamentos ornitológicos de economia, nos quais, além de papagaios, proliferam tucanos, marrecos e abutres, proporcionou tempos atrás uma explicação convincente para este movimento reformista liberal perene, mostrando não se tratar de fenômeno unicamente nacional. Em artigo publicado há cerca de duas décadas na Foreign Affairs, Rodrik mostrou que as reformas voltadas para a rápida liberalização comercial e financeira, por meio de cortes nas tarifas protecionistas e abertura aos capitais internacionais, fracassaram em entregar seus resultados prometidos de rápido crescimento e prosperidade naqueles países subdesenvolvidos que as implementaram. Rodrik argumenta que os defensores da reforma liberal jamais admitem que a abertura propugnada não promoveu o crescimento sustentado prometido e que, portanto, fracassou em alcançar seus objetivos declarados. E o que é ainda pior para os repetidores do mantra reformador: o desempenho econômico pós-reformas liberais geralmente é inferior quando comparado com o período protecionista que as mudanças buscavam superar. A solução retórica para fugir da explicação do fracasso, como bem explicita Rodrik, é defender novas reformas liberais. O alvo sempre móvel (não é esta a reforma fundamental, mas as próximas!) faz com que, na visão dos reformistas inveterados, as transformações sejam sempre consideradas insuficientes, não importa o quanto se reformem as instituições estatais. O reformismo liberal acaba virando um fim, já que o crescimento, que seria necessário para justificar a retórica que lastreia as promessas, não se verifica.

Este é um truque que na verdade carateriza a desfaçatez e a desonestidade intelectual liberal. Diante do fracasso de cada reforma liberal em promover o crescimento, os reformadores apelam para a necessidade mais reformas liberais, um movimento perpétuo de mudanças, uma lista praticamente interminável e inexequível de transformações institucionais, em que as próximas reformas se tornam repentinamente necessárias, em substituição às reformas atuais no plano retórico, para promover o crescimento econômico. As 95 teses do reformador (sério) Martinho Lutero despontam como uma lista até muito modesta diante do frenesi reformista liberal. Ao se defrontar com falta do crescimento prometido após qualquer mudança institucional, os liberais recorrem à seguinte tergiversação retórica ex post facto. Passam a defender que, na verdade, são tantas as mudanças com o status de necessidade emergencial-urgente-premente que nenhuma reforma tomada individualmente pode contribuir, mesmo parcialmente, para o crescimento.

Na retórica reformista liberal, a desregulamentação, a privatização e a liberalização têm que ser amplas, gerais, simultâneas e irrestritas, em algumas raras circunstâncias combinadas com medidas protetivas focadas (parciais) e temporárias que proporcionarão combustível para alguma rodada futura de reformas. Rodrik identifica essa tática ou truque de sempre elencar hoje a necessidade de mais reformas liberais como uma ação preventiva diante do fracasso das mudanças passadas. Há, segundo o autor, a proliferação de meras ‘desculpas, desculpas’. Ele menciona, por exemplo, a incerteza política como uma escusa predileta dos liberais pelos insucessos de suas políticas. Contudo, ela é intrínseca a sociedades com um mínimo de democracia, e não pode ser resolvida com reformas liberais, mesmo que se torne o Estado inteiro, não apenas o Banco Central, independente da vontade da maioria, geralmente por métodos autoritários. O movimento reformista liberal no Brasil sempre tem, inclusive, a sua própria incerteza política: ela é chamada de ‘insegurança jurídica’. Mas, na verdade, até a unha encravada do pé esquerdo do Ministro escolhido como preposto para encaminhar uma reforma liberal já se mostraria suficiente para explicar o fracasso da mesma em ir além dos benefícios para uma minoria. Se a reforma cambial proposta pelo Ministro falhou em proporcionar crescimento, então se torna imperativo desregulamentar e liberalizar a atuação dos podólogos, sufocados por 1.244 diferentes leis e normas municipais, estaduais e federais e protegidos da concorrência dos eficientes podólogos do Nepal.

Desta forma, os economistas dublês de papagaio nunca precisam parar de propor novas reformas e explicar porque os resultados prometidos de uma reforma liberal anterior qualquer (existem às dezenas) foram frustrados. Isso porque os insucessos verificados só podem ser alcançados, na ideologia reformista perene, com o pacote liberal completo, em si interminável, de mudanças institucionais. A ausência de crescimento nunca é entendida pelos liberais, nem mesmo em tese, como possível resultante ou mesmo um aprofundamento, das próprias mudanças implementadas. Na visão deles, as reformas liberais sempre seriam parciais e o resultado só se materializaria em definitivo com o fim das mesmas, que se confunde com o fim da história da  própria humanidade. Ora, se as reformas liberais são introduzidas em sequência, seria razoável, até mesmo para um papagaio, esperar que os resultados prometidos ex ante, a não ser que sejam meramente declarativos, possam ser alcançados gradualmente. Isto é, o crescimento deveria aumentar incrementalmente conforme as reformas liberais forem se acumulando. Mas as mudanças institucionais fracassam em sua promessa, e a situação de uma parcela considerável da população, não infrequentemente, pode ficar pior que aquela existente antes da introdução das reformas liberais, como parece ser o caso do Brasil atual. A desculpa prêt-à-porter é então acionada: que aquela reforma em particular já era sabidamente insuficiente, e que mais mudanças, desta vez liberais para valer, são imprescindíveis e currupaco e etc.

Contudo, se o fraco desempenho na forma de baixo crescimento ou estagnação diz respeito às próprias condições econômicas produzidas com relevante contribuição das reformas liberais, o objetivo declarativo ou ex ante do crescimento sustentado não poderia jamais se verificar na realidade, em nenhum intervalo mais longo da trajetória de mudanças liberais contínuas e cumulativas. A proposta liberal é na realidade uma fraude intelectual. Os parâmetros comportamentais agregados que a reforma busca modificar não respondem, ou respondem na direção contrária às mudanças institucionais introduzidas. Mas os reformadores liberais jamais poderiam admitir o fracasso da sua ideologia. O problema, do ponto de vista do discurso e da retórica ex ante, é que na ideologia pró-reforma permanente existe apenas uma única explicação ex post para o fracasso concreto: a necessidade de mais reformas liberais, voltando assim ao início do círculo: uma reiteração da mesma promessa de crescimento futuro com base em novas reformas. Para escapar da falácia “sem as reformas liberais não haverá crescimento – ainda não houve crescimento mesmo com as reformas liberais – logo, precisamos de mais reformas liberais”, as causas da frustração da declaração de propósitos ex ante devem ser buscadas em outros elementos, não da retórica, mas dos interesses materiais, da economia política. As reformas liberais são feitas para atender aos interesses do capital, isto é, para o crescimento do capital e suas rendas, não para o crescimento em geral de todas as rendas, principalmente a do trabalho. Eis aqui o objetivo real, e nunca declarado, das mudanças liberais implementadas.

No Brasil, as atuais reformas pró-capital liberais fazem parte de uma lista de várias mudanças que vêm ocorrendo desde o fim dos anos 1980, sem modificar de forma sustentada a trajetória de estagnação econômica estrutural, mas garantindo a eterna iniquidade de renda e riqueza, ilustrando assim a verdadeira papagaiada liberal. As reformas são basicamente alterações legislativas, estatutárias e na estrutura da propriedade da riqueza para reverter as instituições formais e as estruturas econômicas pró-capital, mas com algum conteúdo pró-trabalho, erigidas em três momentos históricos nos séculos XX e XXI: aquelas criadas de Getúlio Vargas até João Goulart, as erigidas com base na Constituição Federal de 1988 e aquelas do período de concessão oligárquica à social-democracia (2003-2014). As primeiras foram elas mesmas fruto de reformas não liberais para suplantar as heranças, institucionais mas não culturais, do modelo escravista e primário-exportador. Ironicamente, as reformas pró-capital liberais buscam reverter as instituições e estruturas que propiciaram o único período que alcançou o objetivo liberal declarado de crescimento sustentado (ainda que concentrador e nesse propósito as duas vertentes, liberal e desenvolvimentista oligárquica, por serem pró-capital, convergem). Mesmo as reformas pró-capital do início da ditadura cívico-militar, que não eram liberais exceto pelas medidas de repressão salarial do PAEG, não lograram manter as elevadas taxas de crescimento (ainda mais concentrado) por pouco mais de um lustro (1968-1973).

Ou seja, o objetivoex ante, meramente declaratório (as eternas promessas) das atuais reformais liberais é o de proporcionar ‘a retomada’ do crescimento econômico. Porém, o último período de crescimento sustentado que poderia ser retomado aconteceu sem o liberalismo… Em outras palavras, observando-se a característica histórica estilizada mais geral, nos períodos em que houve crescimento econômico prolongado no Brasil, as matrizes institucionais não eram exclusivamente pró-capital, mas definitivamente contrárias aos propósitos reformistas liberais, com fortes elementos de protecionismo, intervencionismo, propriedade estatal, regulação das relações de trabalho, etc. Isso por si só já deveria suscitar dúvidas sobre o impacto potencial das reformas liberais pró-capital no crescimento da renda total e não apenas das rendas do capital.

O Brasil, portanto, está neste processo mais recente de reformas liberais permanentes desde o Plano Brasil Novo, com a Política Industrial e de Comércio Exterior (PICE) e a privatização estimulada pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), além das PECs 55/91 e 56/91, no período de Fernando I (1990-1992). As desculpas para o fracasso destas reformas liberais em retomar o crescimento do período desenvolvimentista foi por não conterem a elevada inflação, cujo elemento central era a indexação dos contratos, consolidada durante as reformas pró-capital da ditadura (Lei nº 4.357/1964), sob Campos e Bulhões. As reformas pró-capital liberais continuaram com Itamar (1992-1995), como auxiliares ao programa desinflacionário, que introduziu mais uma reforma monetária, depois de inúmeras outras nos anos anteriores, promovendo a desindexação parcial dos contratos e principalmente dos salários. Em particular, a austeridade fiscal via Emenda Constitucional de Revisão (ECR) 1/94 ganhou o nome emplumado de Fundo Social de Emergência. O programa liberal adotado por Fernando II (1995-2002) também acelerou as privatizações, pagas muitas vezes com papagaios ou moedas podres, promoveu a desregulamentação de vários setores, principalmente o de petróleo, introduziu a reforma da previdência (PEC 20/1998) e aprofundou as aberturas comercial e financeira iniciadas por Fernando I. Em 1995, a ‘reforma do Estado’ de Bresser-Pereira já prenunciava a atual proposta liberal de reforma administrativa como mecanismo de transferência de renda de parte da burocracia civil para o capital via modificações na composição do orçamento dos governos. No melhor estilo tucano, era chamada retoricamente de ‘reforma gerencial’.

Apesar de todas essas reformas liberais, o crescimento sustentado que fora perdido no período intervencionista e de alta inflação teimava em não se deixar encontrar. Em 1999, houve novo fracasso da política monetária dos tucanos, baseada em uma âncora que efetivamente impedia a economia de alcançar o crescimento prometido, apesar da queda na inflação dos tempos de Fernando I. A âncora literalmente afundou as contas externas em um quadro de maior liberalização comercial e financeira, conduzindo a uma fuga de capitais e crise cambial. A resposta típica não tardou, e novas reformas liberais foram introduzidas. Desta vez as mudanças liberais importantes para o capital foram diretamente impostas pelo FMI em contrapartida à ajuda financeira e à reforma do regime cambial. Ressalte-se a Lei de “Responsabilidade” Fiscal (LRF), pela qual o moralismo substituiu a macroeconomia na avaliação da política fiscal discricionária, considerada intrinsecamente irresponsável pelos reformistas indomados.

Na visão liberal, é preciso amarrar as mãos ineficientes do governo para que não se implementem políticas macroeconômicas que possam contribuir para o crescimento ‘artificial’ das rendas do trabalho, e assim liberar as mãos virtuosas do capital para o verdadeiro crescimento dos lucros e dos juros. Como o tesão pelo grilhão fracassou com a âncora monetária, partiu-se então para as políticas liberais de austeridade para a maioria da população. E, na melhor tradição do círculo vicioso liberal, como não houve crescimento das rendas em geral após esta mudança, aprofundou-se o diagnóstico e a terapia de choque. O problema não era a LRF, mas sua timidez em agrilhoar as mãos dos governos de forma verdadeiramente austera. Então, em vez de uma âncora, coloca-se o próprio Titanic fiscal acorrentado às mãos dos governos com o teto de gastos (EC 95/2016) ou velho-novo regime fiscal liberal. Afundar grande parte da economia junto com o Titanic não é um problema, desde que as rendas do capital sigam amarradas em um Foners.

Como não se pode deixar que a política macroeconômica se torne minimamente discricionária, introduziu-se também o regime de metas de inflação para aferrar novamente as mãos do Banco Central, desta vez pelas expectativas dos especuladores da Faria Lima e seus congêneres no resto do País. E não contentes em atar as mãos do Banco Central, a mais recente reforma liberal o tornou independente das necessidades da sociedade em geral para que sirva apenas aos interesses do capital. As taxas de juros ‘escorchantes’ (démesurés, bien sur) podem desta forma proporcionar o verdadeiro crescimento buscado, à época como agora: os fluxos crescentes de despesas orçamentárias para o rentismo, sempre fora de cogitação quando se discute contenção fiscal.

O tripé macroeconômico, que na verdade, nas comunidades Brasil afora encontraria melhor metáfora no tridente do cramunhão, não trouxe o crescimento sustentado para a maioria. E nem poderia. Seguiram-se então novas rodadas de redução dos ativos estatais como política de transferência de estoques para o capital, sugerindo que as transferências de fluxos não bastavam. Em que medida os ganhos de ‘eficiência’ de todas as privatizações feitas, desde Fernando I até agora, se reverteram em crescimento econômico sustentado para a maioria da população, os economistas pró-capital liberais não conseguem explicar. E nem precisam. Basta repetir o mantra perpetuamente: se não houver novas reformas liberais, o País não crescerá (ou quebrará).

O período com um pouco mais de crescimento médio e, de forma inédita, com alguma redistribuição funcional e pessoal da renda, durante o intervalo de concessão oligárquica à social-democracia, teve, paradoxalmente pela ótica do reformismo liberal sem fim, um ímpeto menos pronunciado em termos de novas mudanças institucionais. Mas elas existiram. A mais relevante foi a reforma da previdência (PEC 40/2003), uma das favoritas dos reformadores indômitos e cuja infrequência figura sempre na lista de desculpas pela falta de crescimento. A manutenção da matriz liberal anticrescimento das rendas que não aquelas do capital impediu, como se poderia esperar, um crescimento robusto e sustentado. Por outro lado, mesmo sem a reforma liberal trabalhista escravagista, e com uma política de aumento do salário mínimo real, medida sempre fortemente resistida por frações do capital por supostamente aumentar o custo real do trabalho e causar desemprego, o período apresentou tendência significativa de queda na taxa de desemprego. A retirada dos elementos pró-trabalho ainda presentes em algumas instituições foi tentada por Fernando II, tendo, conduto, sido sancionada apenas alguns lustros depois, já no período pós-golpe de 2016, e aparentemente sem impacto na criação de emprego (mas favorecendo o capital na barganha salarial). Se na retórica liberal a reforma trabalhista escravista ainda não induziu a um maior dinamismo do emprego (contratações e demissões), entre outros pelo enfraquecimento dos sindicatos que ‘sufocam o empreendedorismo’, é porque esta reforma não foi suficiente, sendo necessárias a abolição da Lei nº 3.353 e também as reformas liberais tributária e administrativa.

Mas poderia a ideologia liberal estar correta, sendo o desempenho atípico no período de Luiz Inácio-Dilma, com algum crescimento, expansão do emprego e redistribuição parcial da renda o resultado cumulativo das reformas anteriores, desde Fernando I? Isto é, os efeitos das reformas pró-capital liberais seriam defasados, e neste caso convergindo coincidentemente para o período de mudança da gestão política? Mas por que então teria havido uma nova interrupção do crescimento durante todo o período da volta forçada dos governos pró-capital liberais, com a retomada das reformas no Brasil pós-golpe, já que não houve ‘desacumulação’ ou reversão de reformas? Seriam falhas da gestão macroeconômica liberal destes governos? Seria esta também a explicação, alternativa àquela da defasagem, no caso dos períodos curto sob Fernando I mas longo sob Fernando II?

A política macroeconômica sofreu uma profunda reversão no sentido pró-capital liberal em 2014, com austeridade, e mais ainda no período 2015-2021, abertamente liberal com o Titanic do teto de gastos, as reformas (sempre no plural) da previdência e escravista, e mais recentemente a independência do Banco Central. Todavia, o crescimento geral não se verificou, pelo contrário, fazendo os liberais dobrarem as apostas nas reformas pró-capital. Contudo, se havia defasagens no período 2003-2013, por que elas desapareceram subitamente depois de 2014, ou mesmo depois da plena reorientação liberal da gestão em 2016-2021? As reformas pró-capital liberais seriam estruturalmente débeis, tendo prazo de validade e por isso precisariam ser refeitas continuamente? De qualquer forma, a volúpia das novas reformas liberais sugere que as anteriores não deram resultados sustentáveis para a maioria, sendo portanto o desempenho estrutural e logo invariável com a política macroeconômica. Et pour cause, já que a política e a matriz liberais são anticrescimento da renda como um todo.

O fato de o crescimento geral do período atípico de concessão oligárquica ter sido baseado sobretudo no mercado interno, mostrando a falsa interpretação de golpe de sorte com a rápida expansão de exportações de produtos com baixo valor agregado, principalmente pela mobilização dos instrumentos que as reformas liberais ainda não conseguiram expurgar, apenas reverter (transferências fiscais também para a população pobre e aumentos reais do salário mínimo), já sugeria que seria apenas temporário. De fato, durou pouco mais de uma década. Mas proporciona um indicativo do tipo de programa que não tem como prosperar perante as leis de ferro do reformismo pró-capital liberal, que encontra na necessidade de manutenção da desigualdade selvagem na distribuição da renda e dos ativos econômicos, mesmo que por métodos não democráticos, sua maior expressão. As reformas pró-capital liberais são invariavelmente concentradoras de renda e riqueza ao objetivarem aumentar excclusivamente as rendas do capital. E promovem então o círculo vicioso: a dificuldade de fazer crescer a renda geral pela concentração da renda no capital leva a reformas que garantem o crescimento da renda do capital mas dificultam o crescimento da renda geral, reforçando o discurso pró-reforma liberal. As reformas liberais iniciadas e aprofundadas durante o triunvirato de Fernando I-Itamar-Fernando II, adotadas sem muita convicção sob Luiz Inácio e Dilma, retomadas pelo beneficiário direto do golpe de 2016 e intensificadas pelo regime neofascista em curso, já têm, portanto, mais trinta anos. E não lograram proporcionar crescimento sustentado da renda geral, apenas da renda do capital, exceto no período em que foram desaceleradas.

E, novamente, não há nenhuma surpresa aqui. O professor de economia em Cambridge, Ha-Joon Chang, em seu ótimo livro Os Maus Samaritanos, enfatiza o que Rodrik já tinha descoberto e o que Paulo Gala, da FGV-SP, tem demonstrado com métodos mais sofisticados: o livre comércio, característica quintessencial do neoliberalismo segundo Chang, não promove o crescimento dos países pobres que o adotam por meio de reformas liberais. Assim, a abertura comercial iniciada com Fernando I e aprofundada com Fernando II representaria apenas uma ilustração do imperialismo de livre comércio, com os países pobres se especializando nas exportações de produtos de baixo valor agregado e sem criar as condições para transformar sua estrutura produtiva no sentido do crescimento sustentado, baseado em tecnologias avançadas e não simplesmente no fluxo desimpedido de mercadorias primárias. No Brasil o resultado mais importante foi sobretudo um efeito composição: a reprimarização da pauta de exportações, com todas as implicações que isto apresenta em termos de dinamismo econômico. Ou seja, a reforma comercial liberal aprofunda a divisão internacional do trabalho que amarra a estrutura produtiva dos países subdesenvolvidos na trilha do… subdesenvolvimento, típico das lúmpen burguesias. Ela favorece apenas uma parcela minúscula da população, que utiliza então seu poder econômico para impor a agenda política das reformas liberais que impeçam qualquer aprofundamento democrático político e econômico. Não que a senda do desenvolvimento necessariamente exista para todos os povos e, em existindo, possa ser trilhada, e menos ainda pelo liberalismo, como sugere a história econômica. Mas essa é outra questão.

O fraco crescimento macroeconômico recente, principalmente das rendas que (ainda) não gravitam em torno do capital induz, como não poderia deixar de ser, à continuidade das rodadas de reformas liberais. Segundo a lógica do general que ocupa o Palácio do Jaburu, é preciso inclusive reduzir a frequência das reformas previdenciárias. Depois de a nova reforma previdenciária liberal (PEC 6/2019) ter acontecido apenas três anos após a anterior, já na presidência do beneficiário do golpe de 2016 (PEC 287), é preciso reduzir ainda mais o intervalo. Sugere-se assim a novíssima ou n-ésima reforma da previdência, que deixará os militares e a juristocracia de fora. Supõe-se que a última foi insuficiente para garantir que o capital seguirá pagando somente impostos simbólicos, mas recebendo transferências generosas do orçamento na forma de juros, isenções e subsídios. E mantêm-se os privilegiados no aparelho de Estado, com refeições à base de picanha custando R$ 1.800/kg e sobremesas à base de leite condensado, enquanto a renda da população mais pobre não cresce e recoloca a pátria armada novamente no mapa da fome. As reformas liberais nada mais são que isto: programas de transferência de renda e riqueza entre as classes sociais, e mesmo entre frações de classes, dado que não podem gerar crescimento sustentado. Trata-se de um grande projeto permanente de profunda exclusão social combinada com a inclusão pelo trabalho quase-escravo. Sem crescimento, a única forma de aumentar a renda do capital é via transferências baseadas na diminuição, de forma míope, da renda do trabalho e das frações menos poderosas do próprio capital, que aceitam o pacto político apenas pelo fato de as reformas liberais, que no fundo também as acabam prejudicando, prejudicarem ainda mais o trabalho.

Ou seja, a economia política das reformas liberais sem fim fica mais clara, no caso do Brasil, quando se pode verificar que o objetivo implícito é, de fato, proporcionar crescimento… das rendas do capital, ao mesmo tempo em que diminuem os proprietários, num movimento concentrador e reforçador da concentração estrutural de renda e riqueza. As bolas da vez na lista interminável de reformas liberais são a reforma administrativa e a tributária. A primeira busca, mantendo os privilégios das castas fardadas e togadas, cujos persistentes privilégios se comparam apenas ao contínuo ímpeto reformador liberal, e sempre se mostra limitado em seu alcance na pirâmide invertida da renda, redirecionar vencimentos do restante do funcionalismo público civil para o capital via orçamento e cortes nos serviços para a população. A segunda tem por objetivo implícito deslocar a já reduzida incidência tributária do capital para o trabalho e o consumo. Assim, no âmbito tributário, a reforma pró-capital liberal para aliviar a praticamente inexistente carga tributária sobre os estratos de maior renda e riqueza é uma contrarreforma. Quando o que o Brasil precisa, há mais de 60 anos, é de uma revolução fiscal.

Assim, o projeto político não declarado das reformas pró-capital liberais avança no sentido da compressão da classe média brasileira, nos moldes do que vem acontecendo nos países desenvolvidos desde os anos 1970 e 1980. Não se trata aqui da suposta ‘nova’ classe média surgida na pausa social-democrática, cuja insustentabilidade posicional ficou clara com o golpe de 2016 e a barbárie que se seguiu. A classe média tradicional, ligada ao Estado, vem perdendo espaço com o desmonte da tecnoburocracia a partir das privatizações e da burocracia civil com as reformas do Estado iniciadas por Bresser-Pereira e que o governo neofascista busca soterrar de uma vez por todas.

No setor privado, a classe média também perde força com a reforma trabalhista escravista, a última mas não definitiva reforma da previdência, com o desmanche da tecnoburocracia a partir da aceleração da saída de grupos multinacionais do País, a perda irreversível de importância da indústria, a expansão do agronegócio concentrador e a hipertrofia do setor de serviços precarizados. Conforme estes movimentos forem se acentuando, inclusive com a substancial contribuição das, ou mesmo em razão das, reformas liberais em curso, e convergindo para a perda de dinamismo cada vez maior do consumo interno, a classe média tenderá a seguir sendo empobrecida e encolhendo. Poder-se-ia, no imaginário liberal, até replicar a experiência excludente e concentradora, mas não liberal, da ditadura civil-militar. Naquela, a parcela solvente e consumidora da população, embora minoritária em termos relativos mas relevante do ponto de vista da massa absoluta de dispêndio, permitia um volume de vendas capaz de proporcionar lucros substanciais via altas margens sobre custos elevados, em função da reduzida escala de produção. Alternativamente, pode-se substituir o departamento que produz e circula bens de salário pelo setor exportador. Mas o primeiro é parcialmente urbano, enquanto o último depende crescentemente de exportações agrícolas pelo perfil tecnologicamente inapto do País. Essa substituição se mostra estruturalmente ainda mais insustentável no longo prazo do que o modelo da ditadura cívico-militar. Mesmo que se possa seguir por estas linhas, portanto, o atual experimento liberal seria apenas mais um episódio temporário, como aquele. E este círculo vicioso da economia encontra seu reflexo temporal na política. A resposta da classe média empobrecida pelas reformas liberais e logo pela ausência de crescimento é o apoio ao neofascismo, que só pode aprofundar as reformas liberais com base no autoritarismo, o fascismo de mercado dos fãs de Pinochet.

A saída de grandes empresas que estruturam suas estratégias de longo prazo na expansão das vendas internas sugere que o crescimento exclusivo das rendas do capital promovido pelo liberalismo não é de fato sustentável, tendo como resultado esperado a necessidade de repetir a cantilena das reformas. A substancial concentração de renda e riqueza proporcionada pelas reformas liberais permite no máximo o desenvolvimento temporário de nichos de produção interna, geralmente com algum apoio do capital externo. E isso principalmente pela característica demográfica do País, com uma grande população em que uma parcela pequena em termos relativos representa um mercado consumidor relevante em termos estáticos. Mas elas são insuficientes para proporcionar um crescimento baseado no mercado interno potencial, em termos dinâmicos, posto que contribuem para diminuí-lo ao concentrar a renda no capital. E não contribuem para uma maior competição do capital nacional nos mercados externos, mesmo com uma moeda muito depreciada, pois não promove a inovação tecnológica. Promove-se então a ficção ou chorumela do custo trabalhista (já atacado pela reforma liberal escravista), tributário (a ser atacado pela nova reforma), logístico (já atacado n vezes pela privatização e desregulamentação), etc., para não mencionar a eterna insegurança jurídica. E na medida em que a falta de crescimento pode deslegitimar o projeto concentrador, principalmente frente à classe média que se transformou no mais recente alvo das reformas liberais, precisa manter-se o discurso da necessidade de mais reformas liberais para retomar o crescimento econômico das décadas desenvolvimentistas, e com pendor crescentemente autoritário. O máximo que estas reformas liberais conseguem atrair são os investimentos estrangeiros voltados para busca por recursos naturais, com a probabilidade de formação de enclaves.

O movimento da reformas que nunca bastam, contudo, não pode avançar no sentido das mudanças que teriam provavelmente um impacto muito maior na consecução dos objetivos ex ante ou meramente declaratórios dos próprios liberais. Esta seria a agenda de reformas democráticas interrompida pelo golpe civil e militar de 1964 e que continha uma agenda maior que aquelas voltadas apenas para os interesses particulares do capital. Naquela época, a reforma agrária, a reforma universitária, a reforma fiscal e a reforma bancária. Hoje, a revolução fiscal, reforma dos meios de comunicação, reforma política democrática, reforma educacional, reforma tecnológica e reforma agrária. Portanto, o problema não é a proposta reformadora em si. A dificuldade estrutural está na natureza dos interesses por trás das reformas liberais, que se refletem nos objetivos não declarados das reformas a la Lampedusa: mudar as instituições com algum conteúdo trabalhista para deixar os privilegiados do capital como sempre estiveram, mesmo ao preço de manter a economia semi-estagnada. O que importa, portanto, são as forças sociais que qualificam as mudanças no Estado do ponto de vista dos interesses materiais (rendas) a que servem. As reformas pró-capital liberais não lograram alcançar o mesmo desempenho que as reformas pró-capital desenvolvimentistas porque são estruturalmente restritivas do ponto de vista do crescimento das rendas no plural e não apenas da renda no singular. Enquanto isso não for entendido pela sociedade, os papagaios seguirão dando pretensas lições de economia, sem história, e repetindo ad nauseam a falsa promessa de que sem reformas o País não avança.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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