De Poa
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10 de agosto de 2023
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14:18

Ubirajara Toledo: ‘Nunca se fala de Porto Alegre como uma cidade negra’

Por
Luís Gomes
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Ubirajara Toledo Carvalho é o convidado desta semana do De Poa | Foto: Reprodução
Ubirajara Toledo Carvalho é o convidado desta semana do De Poa | Foto: Reprodução

O episódio desta semana do De Poa, podcast do Sul21 em parceria com a Cubo Play, recebe Ubirajara Carvalho Toledo, metroviário e integrante do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ). Toledo conversa com Luís Eduardo Gomes e com Duda Romagna sobre a situação das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul e as perspectivas abertas pelo Censo de 2022, o primeiro levantamento sobre a população quilombola residente no Brasil.

Ao longo da conversa, ele aborda a importância do trabalho de identificação das comunidades, o que inclui terem aparecido pela primeira vez no Censo de 2022. “Após o 13 de maio, não teve uma discussão do ponto de vista e inserção dessas pessoas. Nós éramos, até 1888, arrolados em testamentos como o bens semoventes. Nós éramos coisas. Apesar da queima de documentos que foram feitos da vinda, como é que nós levantamos a presença negra? É através dos testamentos. O que acontece? Essa questão é importante. O trabalho da professora Ilka Boaventura Leite, lá de 96, a partir do contato dos movimentos sociais. Porque todo mundo conhece, vamos dizer assim, nas cidades do interior. ‘Lá tem uma comunidade de morenos, que estão lá desde sempre’. Esse trabalho, no Rio Grande do Sul, apontou, em 96, 43 comunidades rurais, comunidades negras no Estado do Rio Grande do Sul, a partir até da própria identificação”, diz.

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O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

Confira a seguir alguns trechos da conversa com Ubirajara Carvalho Toledo.

Duda Romagna: Ubirajara, no Censo de 2022, a gente teve o primeiro levantamento da população quilombola no Brasil. Ele foi feito a partir dos territórios oficiais que são reconhecidos pelo Incra. No Rio Grande do Sul, a gente tem alguns, mas o mais importante é que a maioria das populações quilombolas vive fora desse territórios. Como que é a relação disso com Porto Alegre? A gente sabe que tem várias comunidades quilombolas por aqui, como que funciona essa saída desses territórios para ocupar outros lugares?

Ubirajara Carvalho Toledo: Sim, até pelo pelo modelo econômico que se dá na metade sul e a concentração que o Censo também aponta, uma concentração muito grande de comunidades quilombolas na metade sul. A questão de Porto Alegre, a cidade é conhecida como Porto Alegre dos Açorianos, dos casais, mas na realidade eram os casais açorianos e os negros que eram escravos que construíram essa cidade. Nunca se fala de Porto Alegre como uma cidade negra. A mão de obra que construiu essa cidade, que construiu esse País, é uma mão de obra negra, é a contribuição cultural muito forte. A questão da importância do Censo, a Constituição de 1988 tem o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT 68), que diz: ‘as comunidades remanescentes de quilombo que ocupam o seu território, o estado devem emitir o título definitivo de posse’. Então, sujeitos de direito, apesar de que na história que a gente aprende no colégio o quilombo é lugar de negro fugido. Sendo que quilombo vem do Kimbundu, que pode ter uma interpretação de acampamento na selva, um acampamento guerreiro. Mas já foi criminalizado em 1740 pelo Conselho Ultramarino. É o que a gente aprende na escola e está muito presente até hoje. Então, nós levamos, de 1740 até 1988, mais de 200 anos, para descriminalizar uma forma de resistência ao modelo imposto que era a colonização. E que sempre existiu e se reproduziu, e nós vamos ter aqui em Porto Alegre também a Ilhota, onde o a comunidade negra se encontrava, a Colônia Africana na Auxiliadora. O Censo Quilombola é uma possibilidade de mostrar essa comunidade, essa porção negra que sempre foi invisibilizada no processo de colonização, e dar importância daquilo que a gente tem, para dizer o seguinte: ‘olha, nós somos um país pluriétnico’. Que vivamos essa plurietnicidade, mas que possamos celebrar a vida e a diversidade, não a eliminação, a ocultação, os negros, os indígenas, com a contribuição que cada um desses grupos traz para o processo civilizacional.

Luís Gomes: O Censo apontou que são 1.327.802 pessoas que se identificam como quilombolas no País, o que corresponde a 0,65% população. No Rio Grande do Sul, são 17.496 pessoas, o décimo terceiro estado com maior população quilombola do País. Mas, na verdade, esses números são subestimados em relação à quantidade de quilombos que existiam antigamente no período da escravidão, foi tendo todo esse pagamento, que tu vem falando, nos últimos séculos. Em Porto Alegre, especialmente, a gente tem uma situação de apagamento da memória do negro, como tu também falou. Eles foram excluídos da história de formação da cidade. Eu queria te perguntar, quantos são os quilombos que são hoje reconhecidos em Porto Alegre, quantos mais estão em processos de reconhecimento e de reivindicação?

Ubirajara Carvalho Toledo: A questão da ADCT sempre foi uma discussão política em que alguns setores conservadores sempre contestavam a aplicação. Os setores do movimento social sempre discutiram auto aplicabilidade desse artigo, mas sempre houve a necessidade e era uma imposição ‘ah, tem que ter uma regulamentação’. Isso se arrastou por muitos anos. Tivemos iniciativas de deputados na elaboração de leis que pudessem aplicar isso. Já no governo Fernando Henrique, quando já havia sido feita a lei para regulamentar, ela foi vetada e foi implementado o Decreto 3.912, que era contrário aos interesses. Então, houve a necessidade, até se arguiu a inconstitucionalidade desse decreto porque ele ia contra aquilo que eram os interesses das comunidades quilombolas.

Com a ascensão do governo Lula, ele escutou os movimentos quilombolas. É importante dizer que a luta quilombola há mais de 25 anos tem uma entidade nacional, que é a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq). E aqui no Rio Grande do Sul, em 2007, foi fundada a Federação das Associações das Comunidades Quilombolas. Nós somos militantes. Tem um professor que usou uma expressão no Fórum Social Mundial de 2002 de que nós somos ‘atores coadjuvantes’. Nós, militantes, pesquisadores e os demais. Os protagonistas desse processo são os quilombolas. Então, atuamos nesse processo como mediadores sociais. O Iacoreq é uma organização que procura apoiar e fomentar o protagonismo daquelas pessoas.

Em 2003, foi discutido com os movimentos sociais, com a Conaq e com as demais entidades, junto com o primeiro governo Lula, e foi sancionado o decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que foi o resultado de todo um esforço de escuta que o governo fez e é o que nós temos hoje. Aquelas mesmas forças conservadoras defenderam a inconstitucionalidade desse decreto, que depois foi ratificado pelo STF a constitucionalidade.

Esse decreto tem todo o regramento de quais os órgãos. O Incra faz a parte que tem conhecimento, da questão do levantamento territorial, cartorial. A Fundação Cultural Palmares, mesmo sob protesto, eles fazem a emissão da certidão de auto reconhecimento das comunidades quilombolas. O movimento quilombola e as organizações entendem que a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) — sobre os Povos Indígenas e Tribais –, da qual o Brasil é signatário, independe de ter uma certificação pelo Estado. Mas, hoje, as leis são: a Fundação Cultural Palmares emite a certidão, a partir da portaria 98, as comunidades enviam um ofício contando a sua história, aí a Fundação Cultural Palmares acolhe, muitas vezes faz visita e emite a certidão. Posteriormente, as comunidades, de posse da certidão, entram no Incra para que seja feito o processo da regularização territorial, que é a Instrução Normativa número 57, de 2009. Ali vai ter toda uma construção de um relatório técnico de identificação e demarcação das comunidades quilombolas.

Porto Alegre, hoje, se eu não estou enganado, o site da Fundação Cultural Palmares deve estar indicando oito ou nove comunidade certificadas [são 8]. Em via de certificação, deve ter mais umas três ou quatro. Então, Porto Alegre deve estar hoje, com comunidade certificadas ou em vias de certificação, com umas 11 comunidades quilombolas.

Luís Gomes: E tem mais outras que solicitaram certificação?

Ubirajara Carvalho Toledo: No Estado do Rio Grande do Sul, segundo o site da Fundação Cultural Palmares, deve ser 136, quase 140 comunidades já certificadas desde 2003. Aquilo que diz o artigo 68, nós temos apenas, desde 2003, 20 anos, quatro comunidades parcialmente certificadas. Família Silva, em Porto Alegre, Chácara das Rosas, em Canoas, a Comunidade da Casca, que é o quilombo que fica em Mostardas, e Rincão dos Martinianos, no município de Restinga Seca. Se em 23 anos, nós temos apenas quatro comunidades e nós temos 102 processos abertos no Incra de solicitação, que a condição para tu ter processo no Incra é ter a certidão, nessa velocidade, vamos precisar de mais 500 anos. Claro, também há um desmonte da política.

Luís Gomes: Mas, só para a gente entender, temos então quatro comunidades quilombolas com a titulação definitiva?

Ubirajara Carvalho Toledo: Definitiva parcialmente, ainda tem algumas questões, mas hoje essas comunidades não são mais alvo da especulação imobiliária. Elas são donas da terra.

Luís Gomes: As outras 102 estão em processo ainda?

Ubirajara Carvalho Toledo: Estão em processo. Aí, dentro dessa Instrução Normativa número 57, tem todo um processo de construção, de análise de título, se os títulos são verdadeiros, a perspectiva de indenização a preço de mercado daquelas situações que são verificadas. Nada é feito a mano militare, tudo tem todo o amplo direito ao contraditório. Todas as partes têm o direito administrativo, eles podem se manifestar. E também, como o estado democrático de direito que felizmente nós vivemos, se uma das partes se sentir lesada, não contemplada, busca o Poder Judiciário. Então, é um processo que a gente não vai garantir o direito de algum grupo suprimindo de outro.

Luís Gomes: Qual é a principal dificuldade que as comunidades têm hoje na questão do laudo antropológico, que é o primeiro passo, dizendo que se reconhece como quilombola?

Ubirajara Carvalho Toledo: Dá para se dizer que, hoje, as comunidades dentro desse processo de expansão terminaram ficaram ficando em pequeníssimos territórios. Esse já é um dos problemas. Muitas vezes pelo fato de serem uma comunidade quilombola, não terem condições de fazer um processo. Tem um testamento, que nem goza a comunidade Osório Marques, tem aqui em Mostardas, nos Teixeiras também, testamentos que foram deixadas aos ex-escravos da Comunidade de Casca, outras formas de aquisição e de compra também. A grande dificuldade é como, diante dessa situação, ter a perspectiva de tu poder assumir, buscar recursos para trabalhar na tua terra. Porque já é diminuta, houve uma expropriação, como é que tu consegue essa questão.

A questão dos laudos antropológicos também é uma outra discussão que se tem, feita através de profissionais, de antropólogos e historiadores, que vão recontar essa história dessa comunidade negra. Como é que ela vivia, como é que ela relacionava a sua produção, os usos do território. É muito difícil, porque as comunidades precisam de profissionais de várias áreas, então muitas vezes têm que se contratar. O Incra faz uma licitação para especialistas. Aqui nós tivemos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul professores que elaboraram esses laudos, fruto de convênios do Incra com as universidades para elaboração desses laudos, desses relatórios técnicos de identificação e de demarcação.

Luís Gomes: Esse pessoal conservador ao qual tu já te referiu, tem essa discussão ‘ah, não é quilombola nada’, ‘nunca foi’, ‘aqui era outra coisa’. Enfim, tem um processo também que envolve um retorno para um território. Como tu disse, tem territórios que têm um testamento lá do século retrasado, as famílias, por algum motivo ou outro, se desmembraram, acabaram ficando poucos remanescentes. Como é esse trabalho das próprias instituições de dar o suporte para as famílias e dizer ‘vocês têm direito a esse território’?

Ubirajara Carvalho Toledo: Isso é interessante, porque o Brasil, após o 13 de maio, não teve uma discussão do ponto de vista e inserção dessas pessoas. Nós éramos, até 1888, arrolados em testamentos como bens semoventes. Nós éramos coisas. Apesar da queima de documentos que foram feitos da vinda, como é que nós levantamos a presença negra? É através dos testamentos. O que acontece? Essa questão é importante. O trabalho da professora Ilka Boaventura Leite, lá de 96, a partir do contato dos movimentos sociais. Porque todo mundo conhece, vamos dizer assim, nas cidades do interior. ‘Lá tem uma comunidade de morenos, que estão lá desde sempre’. Esse trabalho, no Rio Grande do Sul, apontou, em 96, 43 comunidades rurais, comunidades negras no Estado do Rio Grande do Sul, a partir até da própria identificação.

Luís Gomes: Quase num boca a boca, artesanal.

Ubirajara Carvalho Toledo: Exatamente. ‘Olha, mas lá tem uma comunidade’. Aí essas comunidades, muitas vezes, pela sua iniciativa iam buscar o seu direito. Mas o que é o Brasil? A nós negros, foi negada a nossa dimensão humana. Então, nós éramos bicho, nós não éramos pessoas. Então, essa questão do reconhecimento, mesmo tendo um testamento, a primeira lei de terras vedou. O Brasil nunca teve essa sua concertação com esse processo da escravidão. Nunca houve um processo em dizer o seguinte: ‘olha, terminou, temos que ter uma política de inclusão, de reparação, de cidadania’. Não, nós éramos durante todo o período, por um conjunto de leis, impedidos de frequentar as escolas públicas. O que garantiu a nossa sobrevivência ao longo desse processo foi a questão resiliência, a questão das comunidades quilombolas.

Luís Gomes: Que nem sabiam que eram quilombolas naquela época.

Ubirajara Carvalho Toledo: Que nem sabiam que eram quilombolas. E aí, quando tu vai na Constituição e faz essa ressignificação, nós somos um País em que para a gente é negado direito, é tão atual porque todo mundo diz: ‘ah, todo mundo tem direito’. Mas é claro que nós temos que reivindicar, esse País sempre foi daqueles poderosos. ‘Ah, mas todo mundo tem direito’. Mas, é claro, um País incompleto, nós temos que reclamar dos nossos direitos.

Luís Gomes: E não dá para dizer que o direito começa de hoje para frente.

Ubirajara Carvalho Toledo: É o Marco Temporal, essa que é a discussão também muito importante. ‘Ah, não, é a terra ocupada a partir da promulgação da Constituição’. Mas quem é que estava aqui antes? Se for do ponto de vista de quem estava aqui, toda a Terra Brasilis pertence à comunidade indígena que foi massacrada, que foi dizimada. Mas, dados os interesses, eles estabeleceram a Marco Temporal.


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