De Poa
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8 de junho de 2023
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13:35

Eber Marzulo: grandes empreendimentos servem para investimento, não são para as pessoas

Por
Luís Gomes
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Professor Eber Marzulo é o convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução
Professor Eber Marzulo é o convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

O novo episódio do De Poa recebe o professor Eber Marzulo, do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS. Ele conversa com Luís Eduardo Gomes sobre os rumos que a cidade de Porto Alegre tomou nos últimos anos sob a ótica do planejamento urbano.

Marzulo aborda o impacto provocado pelos grandes empreendimentos que se espalham pela cidade e as consequências de um mercado da construção civil que prioriza produtos voltados para a população de alta e altíssima renda. Integrante do movimento Cais Cultural Já, ele também avalia o histórico dos projetos de revitalização do Cais Mauá de Porto Alegre e o estágio da atual proposta do governo do Estado.

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O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

Confira a seguir trechos do episódio.

Luís Gomes: Nos últimos anos, a gente viu um processo de desenvolvimento em que, aparentemente, a Prefeitura terceirizou para as grandes construtoras a definição dos rumos da cidade. Como tu vês os rumos que a cidade vem tomando nos últimos anos, especialmente na questão dos grandes projetos?

Eber Marzulo: A primeira coisa que eu fico tentando pensar na conversa com o cidadão, que não é o especialista, que não atua no Legislativo ou no Executivo, que não é acadêmico, que também não está ligado ao ativismo urbano, a pergunta que eu imagino que deva surgir é: ‘ok, se tem essa produção, é porque tem demanda. Então, quando se critica, teria outro modelo e que modelo seria esse?’. Aí me parece importante pensar que a cidade tem tido um decréscimo do crescimento populacional, cada vez mais intenso. Há bairros em que a população tem diminuído, particularmente alguns bairros de área central, mesmo os mais densos.

Luís Gomes: O senhor pode dar alguns exemplos?

Eber Marzulo: O bairro São Geraldo, eu tenho impressão de que tem passado por um processo de diminuição da população. Há quase uma estabilidade no Bom Fim. E isso contando com um movimento demográfico de envelhecimento da população. Ou seja, mesmo caindo os nascimentos, a manutenção de mais pessoas vivendo mais tempo poderia não ter esse impacto de diminuição do crescimento, mas tem. Essa é uma primeira questão.

A produção é desproporcional no seu ritmo e quantidade. Parece ter uma dinâmica de produção de unidades num número maior do que o crescimento da população. Isso por um lado. Por outro lado, alguém pode dizer que tem problema de habitação na cidade. Tem muita gente que mora mal, que mora na periferia distante e etc. Certo. E essa produção que a gente enxerga na cidade não é para essa faixa da população. Então, aí nós temos duas questões que nos remetem a pensar o seguinte: para quem é essa produção fundiária e imobiliária? Ela valoriza áreas em termos de valor da terra e produz edifícios para escritórios, para áreas de trabalho ou para unidades domésticas?

A explicação que as análises têm colocado sobre esses processos urbanos em grande parte das cidades do mundo é que eles funcionam, fundamentalmente, como portfólio, como investimento. Tanto do grande investidor, dos fundos de pensão que entram nas operações financiando a operação, quanto lá na ponta final, dos compradores. Na maior parte das vezes, os compradores finais compram o imóvel como investimento. O sujeito tem um portfólio de investimento e para ele pode ser interessante colocar R$ 2 milhões num loft no Golden Lake, por exemplo, R$ 1 milhão.

Luís Gomes: Acho que com um R$ 1 milhão nem te recebem ali.

Eber Marzulo: (risadas) Não tem tanta gente com demandas de escritórios e unidades domésticas com essa capacidade.

Luís Gomes: Pois é, essa é a pergunta que eu tenho feito há muitos anos. Porto Alegre tem tanto milionário assim para comprar essa quantidade de apartamentos de um, dois, três milhões ou mais? Porque a gente só vê esses projetos para milionários.

Eber Marzulo: Não. Por isso é importante que o liberalismo clássico, que não é o neoliberalismo que tem algo de anarcoliberal, esse atual, ao qual parece que o prefeito e grande parte do seu governo está filiado, não sei com qual grau de elaboração sobre tal filiação ideológica. Mas o liberalismo clássico, lá dos séculos 18 e 19, que influencia a organização do Estado no chamado mundo ocidental, pressupõe o Estado como central, exatamente para ser capaz de proteger o movimento dos agentes privados.

Não tem um privado construído e pensando se vai ter gente para comprar. Ele investe e pressupõe que na ponta final vai realizar. Ele não está preocupado se alguém vai morar ou não, ele precisa vender. Não existe um cálculo, não existe um comitê central dos capitalistas fazendo o cálculo ‘não vou construir mais porque tem tantos milionários para comprar’. Vai estar todo mundo concorrendo na ideia da livre concorrência, que tem esse problema de necessitar de uma espécie de consertador, que a princípio é a figura do Estado. Não é a troco de nada que Marx, na leitura crítica, vai chamar de escritório de negócios da burguesia, da classe dominante.

A tua pergunta é ‘não tem tantos’. Eu te diria, sim, não tem tantos, mas tem alguns que têm muito. Essa é a ideia que o Thomas Piketty vai falar que, no século 21, há uma concentração de capital muito grande. São cada vez menos, muito ricos. Esses podem comprar várias unidades, podem pagar R$ 3 milhões no condomínio em Xangri-lá. O sujeito vai botar US$ 700 em Xangri-lá, poderia comprar alguma coisa em qualquer lugar do mundo, provavelmente em boas condições, mesmo nas cidades caras. Ele está investindo, é um investimento desse comprador final. Mas a grande operação é antes disso.

Antes disso, são fundos de investimento, fundos de pensão, etc e tal, que estão interessados em comprar um portfólio vasto, cuja realização final não é uma questão para eles. Por isso que depois a gente vai vendo nas grandes cidades os edifícios de vidro fumê e aço com muito pouco movimento, muitas unidades e pouco movimento. A Barra da Tijuca (Rio de Janeiro), que talvez no Brasil seja um paradigma desse tipo de operação — e não vou fazer uma alusão aos moradores que, quando eles aparecem na imprensa, não é por nada muito relevante socialmente –, tem muitos imóveis fechados e muito pouca coisa para vender ou alugar. Ou seja, eles não estão disponíveis ao mercado, são investimentos e ficam fechados.

Luís Gomes: Deixa eu fazer um contraponto de um leigo, digamos assim. Faz sentido alguém ter um apartamento parado de dois ou três milhões no Menino Deus, no Bom Fim ou ali no Parque Germânia?

Eber Marzulo: Faz porque é um portfólio desse agente econômico. Na hora que ele for fazer uma negociação para resgatar recursos para novos investimentos, ele vai dizer: ‘olha, eu tenho tanto na Bolsa, tenho uma fazenda no Mato Grosso do Sul de tantos hectares, tenho um apartamento em Porto Alegre — vamos supor que é um empresário gaúcho –, tenho uma casa em Xangri-lá de R$ 2 milhões’. Enfim, ele mostra o portfólio e isso sustenta a captação de recursos. É assim que o capital funciona hoje. Por isso que muitas vezes problemas em relação à demanda de infraestrutura não são tão graves quanto poderiam ser, por um problema que é mais grave ainda, por uma produção imobiliária que tem efeitos, porque interfere na circulação do vento…

Luís Gomes: Isso que eu iria perguntar, quais as consequências disso para uma cidade?

Eber Marzulo: Imediatamente, o que me parecer ser a grande questão contemporânea, onde as cidades cumprem um papel, seja na produção, seja como quem sofre mais os efeitos, são os eventos climáticos extremos. E essa produção cria ilhas de calor, pavimenta mais as cidades. Além de criar mais ilhas de calor e assim aumentar a força e intensidade, particularmente no caso do nosso clima tropical, de chuvas, ela tira camadas de absorção, através da pavimentação do solo. Isso faz com que as águas das chuvas corram mais rapidamente, porque elas não estão sendo absorvidas, e isso vai gerar o represamento em algum lugar e inundações. Então, vai gerar mais inundação porque gera mais calor, vai alterar o ciclo dos ventos. Isso na Zona Sul já é nítido para quem circula pela Diário de Notícias, pela Beira-Rio e pela Padre Cacique depois das torres no Barra Shopping e, agora, pela operação do Pontal, que criou um nó de vento. Antes, ali no Pontal tu sabia se estava entrando o vento oeste, tá entrando o sul. Tu tinha uma noção muito clara, por causa da proximidade com o Guaíba, te permitia sentir isso. E agora tu não sabe de onde vem o vento, porque tem um anteparo numa área que era bem importante. Então, tu vai dificultando algo que seria fundamental para a cidade enfrentar a crise climática, que gera efeitos climáticos extremos, e, ao mesmo tempo, tu está, numa escala mais de microclima, alimentando crise ambiental e crise climática, porque tu está aumentando o calor. Aumentando o calor, tu vai aumentar a frequência e a quantidade das chuvas. Com a área pavimentada, que gera o calor, que gera o aumento das chuvas, tu vai aumentar o nível de inundação, porque não há absorção das águas. Tu vai tirando iluminação natural da cidade, então tu dificulta a manutenção de áreas aprazíveis, seja vegetação, animais ou seres humanos. Então, assim, tu vai gerando o caos. O ápice caricatural disso talvez seja o exemplo de Camboriú, que sombreou a praia construindo edifícios para altíssima renda e teve que fazer uma intervenção para aumentar a praia, o que vai ter uma resposta da natureza, já está tendo e tende a se intensificar pela crise geral.

As cidades cumprem esse papel no Brasil. Parece que 40% da participação do Brasil no aquecimento global vem do campo, os outros 60% são urbanos. E estamos vendo aí o conjunto de tragédias urbanas, tragédias humanas e ambientais derivadas, no nosso caso, das inundações, pelas condições geoclimáticas da nossa região e algumas de tornados, tufões, numa frequência muito maior do que se tinha notícia há 30 ou 40 anos, não tem uma diferença de meio século.

Luís Gomes: Professor, eu te perguntei se tínhamos milionários para comprar os imóveis que estão sendo construídos e agora queria te perguntar algo por outro lado. Que impacto esses grandes projetos têm na questão do déficit de moradia? Ainda temos centenas, quem sabe milhares, de vilas que não estão regularizadas e as pessoas moram em situações muito precárias, sob risco de uma série de tragédias. O desenvolvimento recente da cidade contribui para piorar o déficit habitacional ou tem ajudado a amenizar?

Eber Marzulo: A resposta é não, em absoluto. Eu não vejo que esteja sendo lançado pelo mercado imobiliário, produzido pelo mercado, e tendo as condições de produção facilitadas pelo agente público, ou seja, parlamentares da Câmara de Vereadores e as propostas do Executivo, algum projeto relevante. Eu não vou dizer nem bom, não vejo notícia nenhuma de projetos interessantes. A não ser alguns pontuais levados adiante por organizações sociais, muitas vezes ligadas a práticas antigas de ocupação de edifícios desocupados em área central, que fazem um serviço que deveria ser orientado e viabilizado pelo agente público. Edifícios esses que, ao estarem em áreas centrais ou pericentrais, em volta da região central, não têm ocupação ou são subutilizados, geram um custo para toda a sociedade, porque está todo mundo, em alguma medida, pagando aquela infraestrutura disponível e não utilizada. Quando ocorre esse tipo de ação de ocupação, a cidade ganha. Deveria ter política que viabilizasse isso, procedimentos jurídicos que facilitassem a normatização e normalização das condições desse tipo de prática. Mas isso é o mais avançado que a gente encontra. Fora isso, as notícias são sempre de remoção, são sempre de resistência.

Aí tem uma coisa de um domínio de um discurso dos grupos dominantes que não permitem que as pessoas sequer pensem que, se estão produzindo esses edifícios fantásticos que não são para pobres e estão removendo a população histórica do 4º Distrito, estão produzindo mais gente sem local de moradia e, logo, terão que ocupar moradias em áreas periféricas, criando condições de maior dificuldades para essa população e trazendo prejuízos geral para a cidade. Porque essa ocupação em áreas precárias, sem urbanização ou com urbanização precária, vai ter um efeito de encarecimento da rede de infraestrutura geral da cidade. Então, é duplo o aumento do custo urbano quando tu tem uma política cujo efeito é perifericizar uma parte da população e não produzir habitação em áreas centrais e pericentrais, ou não permitir a ocupação através da conversão de edifícios que eram para serviços e outros tipos de atividade como residência, buscando dar conta do problema do déficit habitacional, assim diminuir a periferização da cidade. Isso é meio curioso na nossa elite, porque adoram ter como referência Nova York e Paris, mas é uma referência do que essas cidades fizeram há 40 anos e as políticas atuais são para desfazer o que foi feito. É impedir o uso do carro com a melhoria do transporte coletivo. Aqui, não, aqui é facilitar. Porto Alegre tem esse caso fantástico do Parque Marinha que, em pleno século 21, um grande parque urbano, de orla, cedeu parte de seu espaço para a construção de duas, três ou quatro pistas para automóvel, e sequer para o transporte coletivo, porque não passa ônibus ali. E estacionamento, tem um estacionamento ali. É um absurdo.


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