De Poa
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22 de junho de 2023
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13:49

Karen Santos: ‘O negro sempre foi objeto de denúncia, mas não era sujeito para falar em 1ª pessoa’

Por
Luís Gomes
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Karen Santos é a convidada desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução
Karen Santos é a convidada desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

O novo episódio do De Poa recebe a vereadora Karen Santos (Psol). Mais votada da cidade em 2020, Karen conversa com Luís Eduardo Gomes sobre a vida em Porto Alegre na atualidade, a situação das periferias da cidade e o cenário para as eleições de 2024.

 

O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
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Confira a seguir trechos da conversa.

Luís Gomes: Como é que tu vês a situação das periferias hoje do ponto de vista de acesso a políticas públicas. A gente vê muita discussão na Porto Alegre dos últimos anos de uma modernização, de uma revitalização de espaços, mas tudo isso está sendo voltado para uma área central. Como tu vês a a situação das políticas públicas para periferia? Isso melhorou de alguma forma ou piorou?

Karen Santos: Olha, pegar o exemplo lá da comunidade da MAPA, lá que iniciou essa ideia da gente ter uma candidatura para disputar as eleições, em 2016 ainda, quando eu fiquei com a primeira suplência do PSOL. Lá, a gente se reunia na Rua Ayrton Senna, que é uma rua que ironicamente não tem asfalto. E desde então não tem asfalto, já não tinha há 20 anos. Para mim, ali é bem característico de como dentro da comunidade, como a iniciativa privada não tem interesse de fazer esses investimentos, não vê aquele nicho ali enquanto nicho de possíveis consumidores de seus produtos. Eles escolhem determinadas espaços da cidade para investir. Hoje, a menina dos olhos é a Orla, é o Centro Histórico, é o Quarto Distrito. Tem todo um incentivo fiscal por parte do governo Melo para as empresas e os estabelecimentos irem para essas regiões. E a periferia, por toda sua característica social, por serem bairros de trabalhadores com pouco poder aquisitivo, áreas irregulares que precisam de regularização fundiária, as políticas não chegam. Na lógica do governo Melo de tu parcializar, terceirizar todos os direitos, a gestão das prioridades da cidade acaba ficando compartilhada com esse setor que não olha para a periferia enquanto um possível nicho consumidor dos seus produtos,. Então, a gente fica meio que em segundo plano. E aí tu vê bairros como Ponta Grossa, Restinga, Mário Quintana, a própria é Bom Jesus aqui onde a gente está, há 20, 30 anos com os mesmos problemas. Drenagem, instalação de rede de esgoto, asfaltamento, calçadas, iluminação pública, espaços públicos de lazer. Ponta Grossa, tu não tem uma praça pra ti tomar um chimarrão, para as crianças brincarem no final de semana. Mariante, lá no Rincão, também não tem uma praça pras crianças, uma quadra poliesportiva. Ironicamente, agora também descobriram um depósito da SMED [Secretaria Municipal de Educação] cheio de material de Educação Física parado, né? Então, tu vê que não tem a mesma prioridade. Eu sempre coloco que o tempo para o pobre, o tempo pro trabalhador, em relação a essas demandas, para as instituições públicas é outro. O tempo da Justiça demora mais pra ti conseguir uma ação trabalhista, para reivindicar algum direito teu. Eu estou há mais de um ano acompanhando junto com os moradores, inclusive alguns já se mudaram da rua, 400 metros de rua que precisam de uma ligação de esgoto, que hoje todo esgoto vai pra rua no Acesso 1 da Estrada do Barro Vermelho, no bairro da Restinga, há mais de um ano a gente tá acompanhando e reivindicando um projeto de instalação de uma rede de esgoto e da rede pluvial, para depois ter o asfaltamento. Porque eu não aguentava mais ter que ligar para os funcionários da Secretaria de Serviços Urbanos para pedir para eles passarem a patrola na rua. Agora, com essa chuvas, esburaca tudo de novo. Então, como é que a gente tem projetos arquitetônicos, projetos assinados por engenheiros que permitam a gente pensar o desenvolvimento dos bairros?

E aí a gente cai num outro lugar que é o desmonte da máquina pública. Para o município ter iniciativa e não ficar refém da iniciativa privada, a gente precisa urgentemente ter concurso público, a gente precisa de arquiteto, a gente precisa de engenheiro, a gente precisa de analistas, a gente precisa de RH. E hoje nós não temos. Eu sou a presidenta da Comissão de Transporte e Habitação na Câmara, às vezes a gente fica até constrangida de convidar servidores e os funcionários das secretarias e dos departamentos, porque a gente sabe que eles já estão sobrecarregados de trabalho. Então, é um problema que vai remetendo a outro. Ao não ter concurso, terceiriza. Ao não ter concurso, faz uma parceria público-privada. E aí quem é que fiscaliza todos esses contratos? Quem é que fiscaliza a execução de serviço? Quem é que cobra? Porque são empresas que hoje existem, amanhã já deram baixa no CNPJ.

Luís Gomes: E isso a gente vê muito em terceirizações na área de saúde, que foram muito aceleradas durante o governo Marchezan em razão de todo o problema do Imesf. Como é que tu vê o impacto disso na prática?

Karen Santos: Olha, a gente tem muita dificuldade, enquanto vereadores, de fiscalizar todos esses locais. Recentemente, eu fui chamada por uma denúncia de um morador para fiscalizar o Hospital Veterinário da Lomba do Pinheiro. A nossa equipe foi impedida de entrar dentro do estabelecimento, disseram que eu teria que marcar uma reunião com o Gabinete da Causa Animal. Eu já estava tentando há mais de um mês essa reunião e também não consegui fazer a vistoria dentro do local de atendimento de uma empresa que usa um equipamento público para prestar um serviço público. Então, a terceirização ela tem dessas. Tem algumas empresas que deixam tu acessar o local para conseguir, minimamente, ver o que que está sendo oferecido para a população, conhecer a dinâmica do trabalho, os Protocolos de atendimento, e tem outras em que tu não consegue acessar.

Luís Gomes: Mesmo sendo vereadora?

Karen Santos: Mesmo seno vereadora. Então, são situações que se repetem. As empresas terceirizadas, por exemplo, da cozinha, da limpeza e da higienização das escolas, que antes era Multiclean, hoje são nove empresas diferentes que prestam esse serviço. Uma delas está saindo do contrato, que é CLP, deixando as trabalhadoras novamente com atraso do salários. Antes, ficava muito difícil a gente fiscalizar uma empresa, que era a Multiclean. Chegava sempre no final do ano e não pagava direitos trabalhistas, no final do contrato também declarava falência, era toda uma disputa judicial para conseguir garantir os direitos dos trabalhadores. Aí, a Prefeitura achou de bom tom, em vez de contratar uma empresa, abrir uma licitação para nove empresas. Então, agora a gente tem que fiscalizar nove empresas. Hoje é a CLP, amanhã é outra empresa, sempre tem algum problema, porque a terceirização ela permite isso. Permite ao poder público se isentar da execução dos serviços, se isentar da garantia dos direitos trabalhistas, e isso é um erro, porque o estudante lá na ponta ficou sem merenda e as trabalhadoras tiveram seus direitos violados.

Luís Gomes: Karen, tu falou no início da nossa conversa de Porto Alegre ser a capital mais segregada do País e eu queria voltar a essa questão e fazer um gancho com a bancada negra. Porto Alegre ficou quase duas décadas sem eleger uma mulher negra e tivemos pouquíssimos homens negros eleitos nesse período também. A bancada negra foi talvez o primeiro momento na história de Porto Alegre em que as periferias conseguiram ter uma representação, ainda longe de ser paritária, mas relevante na Câmara. Como é que tu vês essa questão da segregação política da população negra de Porto Alegre?

Karen Santos: Olha, Porto Alegre carrega essas contradições. Assim, é a cidade mais segregada racialmente do Brasil, ao mesmo tempo sempre foi pioneira na luta do movimento social negro. A gente tem aqui o Floresta Aurora, que é o clube negro mais antigo do Brasil. Nós temos os Bambas da Orgia, que é a segunda escola de samba mais antiga do Estado, se eu não me engano também do nosso País. Nós temos aqui o Oliveira Silveira e o grupo Palmares, que foram precursores do 20 de novembro. Nós temos a UFRGS, que cinco anos antes das ações afirmativas serem lei já estava fazendo o seu processo de implementação, com luta e mobilização do movimento negro, quilombola e indígena. Então, Porto Alegre e o Sul, por terem esse racismo velado e sutil, mas ao mesmo tempo atuando ativamente para o silenciamento e para a exclusão de pessoas negras, eu acho que aqui a gente tem uma resistência, uma tradição, muito forte, tanto cultural, quanto política, de intervenção. Alvorada é a cidade com maior quantidade de terreiros e Porto Alegre está em segundo lugar, do Batuque no Rio Grande do Sul, das Nações, da Umbanda. Então, acho que a gente tem elementos que existem e fazem com que a comunidade negra tenha uma consciência racial desenvolvida no sentido desse pertencimento, deste orgulho, e por sentir na pele, no cotidiano, esse racismo que é sutil. Aqui, no Sul, a gente não tem, por exemplo, como no Rio de Janeiro, as grandes favelas como grandes guetos militarizados. A gente tem aqui a guerra às drogas, a gente tem aqui as nossas periferias, mas pelo nosso Índice de Desenvolvimento Humano ser superior às outras capitais, a pobreza aqui é diferente, a guerra às drogas se dá de uma maneira diferente aqui na nossa capital. Isso tudo faz com que o negro aqui tenha condições de vida, de acesso, de estudo, que também permitem a ele se localizar na disputa política de forma diferente do que no resto do nosso País. Uma consciência em relação a esse racismo e a como ele atua aqui.

A sub-representação dentro dos espaços parlamentares foi transgredida muito pelo debate das cotas, das políticas de ações afirmativas nos fundos partidários. Ali que a gente conseguiu intervir enquanto movimento social negro, enquanto movimento de mulheres, para conseguir ter as mesmas condições de disputa. Porque campanha eleitoral é muito dinheiro. Para tu conseguir ser reconhecido na cidade, para conseguir ter os teus materiais impressos, para conseguir ter equipes que consigam levar as ideias adiante, tudo isso é dinheiro e o nosso povo historicamente foi alijado de ter propriedade, de conseguir ter as condições concretas materiais para ter os seus próprios candidatos. E os partidos de esquerda sempre nos utilizavam como estatística. ‘As mulheres negras, as mulheres, os negros, os últimos depois de ninguém’. A gente sempre foi objeto de denúncia, mas a gente nunca conseguiu ser sujeito para falar em primeira pessoa, porque há um aparelhamento dos partidos políticos também, por uma branquitude que não quer compartilhar esse poder. Então, para nós, eu acho que esse movimento da bancada negra tem a ver com isso, tanto um ascenso da consciência negra em âmbito de Brasil, porque também não foi só aqui. Eu me elegi primeira suplente em 2016, assumi em 2017. Foi a mesma eleição que elegeu a Marielle Franco, que elegeu a Talíria Petroni, que elegeu outras mulheres parlamentares negras da bancada do PSOL.

Luís Gomes: Mas essa foi uma campanha com pouco recurso, né?

Karen Santos: Nossa, o PSOL me deu mil panfletos. Em 2016, eles nos deram mil panfletos e a gente conseguiu 2.700 votos, na militância, na garra e na unha para sermos reconhecidos. E aí depois a situação mudou, né, porque as pessoas estão tendo que nos respeitar.

Luís Gomes: Isso que eu queria te perguntar, qual é a diferença de fazer uma campanha com mil panfletos e uma campanha, que ainda tá longe de ser das mais caras, mas é uma campanha que tem mais estrutura?

Karen Santos: Dividir o trabalho, dividir equipe, ter mais tempo para pensar a política, até mais tempo para conseguir fazer as visitas, conversar com os trabalhadores, que é uma coisa que eu acho que é muito característica da nossa campanha. Ir nas casas, ir conversar com as pessoas, porque a gente não quer só o voto. A gente quer um compromisso com a política no seu bairro, no seu local de trabalho, no seu local de estudo, isso é o mais difícil de desenvolver. As pessoas, normalmente, votam, te dão dois tapinhas nas costas, vai lá e me representa e tchau. Tu não muda a cidade assim, então tu precisa de um engajamento, tu precisa de uma mobilização abaixo-assinado, protesto, pessoas lá na Câmara acompanhando a sessão, acompanhando as reuniões, nos ajudando a movimentar essa estrutura. Porque a gente não tem o poder econômico da máfia das empresas de ônibus, do setor dos clubes de futebol, da construção civil, da Ambev, das igrejas, esses setores têm os seus representantes na Câmara de Vereadores. Nós queremos ser a representação do povo que batalha. O que o povo que batalha tem? Olha, não tem muito capital, mas a gente é a maioria que trabalha, que sustenta essa cidade, que carrega essa cidade nas costas. Mas, para isso, a gente tem que ser visto enquanto a maioria. O que eu digo é que esse respeito que a casta política, o Poder Judiciário, não tem pelo seu próprio povo. Não respeitam as pessoas que trabalham na cidade, que vivem na cidade, que dão vida à cidade, tratam as pessoas mal. Então, essa conversa tem que ser desenvolvida com a população e a gente usa do período da campanha eleitoral para ter estrutura, porque tu vai tu ter aquele entendimento de que ‘ó, tá tendo panfletagem no Centro, tá tendo panfletagem nos bairros’, me dá mais liberdade para conseguir constituir esses espaços de formação, de propaganda política. Porque na primeira campanha em 2016 era isso, era eu 6h30 da manhã, no Centro, panfletando, à tarde fazendo duas ou três agendas, voltando para o Centro para panfletar. 2016 foi uma campanha muito precária, a equipe eram cinco pessoas panfletando fisicamente na chuva, no sol, de manhã cedão, eu me desdobrando tanto que no último dia de campanha eu tava sem voz, completamente esgotada. Não precisa ser tão desumano assim, isso eu venho pensando. Não precisa ser tão desumano. Então, com o recurso, a gente consegue dividir, contratar pessoas, qualificar o nosso trabalho, dá salto de qualidade na nossa organização, qualificar a nossa sede para ser um espaço que acolha também, que as pessoas possam vir reunir, tomar um café. Isso é uma vida política de uma organização.

Luís Gomes: A gente já esta quase às portas de uma eleição municipal, em que se acredita que o perfeito Sebastião Melo vai reunir de novo aquele grande condomínio de partidos que já governa a cidade há 20 anos, e a esquerda terá o desafio de apresentar uma oposição. Como é que tu estás vendo esse cenário dentro dessa perspectiva que tu falou da dificuldade de renovação e mesmo da dificuldade de apresentação de um projeto diferente?

Karen Santos: Olha, infelizmente, a discussão sempre fica em torno de nomes, em cima da discussão de quem é que vai pagar essa conta toda. Como te coloquei, uma campanha eleitoral para ser grande, para ser forte, para incendiar essa cidade, para encantar mentes e corações, tem que ter dinheiro. Hoje, o principal partido político é o PT, então o PT tem que estar na chapa porque a gente precisa dos recursos do fundo partidário, do tempo de TV, do tempo de rádio. Isso é um pressuposto para conseguir ter um instrumento, como eu coloquei, política, ainda mais naqueles 45 dias, tem que ter um um plano que seja viável. Para ter um plano viável para ganhar, a gente vai precisar dos recursos vindos do PT. O PSOL já lançou o Pedro Ruas enquanto o nosso pré-candidato dentro de uma chapa em unidade com o PSOL, PT e PCdoB, seriam esses os partidos para compor unidade. Acho muito difícil construir unidade com partidos que hoje fazem parte da base do Melo ou não se posicionam em relação aos problemas da cidade, não estão junto na luta, nas greves e nas mobilizações que estão tendo. As poucas que estão tendo, a gente não pode contar. Então, são esses hoje os partidos que a gente pode contar nesse sentido de uma disputa da consciência do nosso povo, da mobilização e da organização para o processo eleitoral. Pedro Ruas tem experiência, tá preparado caso precise falar da memória dessa cidade, dessa Porto Alegre cindida, segregada, tem a memória, tem a experiência e pode contribuir nesse sentido. A gente tem candidatos bons da bancada negra, o Matheus, a Bruna, a Laura, a Daiana.

Luís Gomes: Tu não pensa em ser candidata?

Karen Santos: Se for candidata, aí é um problema para mim, porque daí é o seguinte, a gente tem uma organização política que hoje tem um mandato só. A gente não conseguiu se eleger pra pra deputado estadual. Ao ser candidata, eu teria que abrir mão da continuidade da nossa política na Câmara de Vereadores. E aí vai ser eu e o Pedro Ruas abrindo mão? Por exemplo, caso a gente não consiga ter uma unidade da esquerda para disputar esse processo, aí vai ser eu e o Pedro Ruas, os mais votados da cidade, aí a gente não vai conseguir ter os puxadores de votos do PSOL.

Luís Gomes: A tendência, então, é tu tentar voltar à Câmara?

Karen Santos: Exato, a tendência é a gente fazer de novo a campanha porque para nós é importante. A campanha para nós é um momento de mobilização.


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