De Poa
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11 de maio de 2023
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13:29

De Poa com Lucia Pellanda: ‘Não foi decretado o fim da pandemia’

Por
Luís Gomes
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Reitora Lucia Pellanda é a convidada do De Poa desta semana | Foto: Reprodução
Reitora Lucia Pellanda é a convidada do De Poa desta semana | Foto: Reprodução

O segundo episódio da nova temporada do podcast De Poa, que vai ao ar nesta quinta-feira (4), recebe a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Lucia Pellanda. Ela bate um papo com os jornalistas Luís Eduardo Gomes e Luciano Velleda, do Sul21, em programa gravado na sede da Cubo Play.

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Formada em Medicina pela UFRGS, a professora é especialista em Pediatria e Cardiologia e também atua na área de Epidemiologia, tendo sido uma das referências sobre a pandemia de covid-19 no Rio Grande do Sul. Ao longo da conversa, ela explica o que significa o anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS), que declarou que a covid-19 não representa mais uma emergência de saúde pública internacional. Ela também avalia o que aprendemos e deixamos de aprender com a pandemia.

A conversa aborda ainda o papel das universidades públicas e os impactos da recomposição de seus orçamentos, anunciada recentemente pelo governo federal.

Confira a seguir trechos do entrevista com Lucia Pellanda.

Luís Eduardo Gomes: No dia que a gente grava esse programa, tivemos uma notícia importante vinda da OMS, de que mudou a classificação da covid-19, que passa a não ser mais uma emergência de saúde pública de importância internacional. Como é que a senhora avalia essa mudança de classificação e o que ela significa na prática?

Lucia Pellanda: É uma boa notícia, claro. Significa que não tem mais aquela pressão que tinha sobre os sistemas de saúde, não está mais aumentando mundialmente. Quando a gente declara que é uma emergência, significa que todo mundo tem que parar o que está fazendo e olhar para isso, a questão de controle de fronteiras e uma série de problemas que, agora, a gente fica um pouco mais tranquilo porque está mais sob controle. Agora, não quer dizer que a pandemia acabou, não foi decretado o fim da pandemia. Ainda tem o vírus em transmissão sustentada em vários lugares do mundo e a gente ainda precisa cuidar.

Luciano Velleda: Mas qual é o efeito prático desse anúncio nos países e no Brasil?

Lucia: No Brasil, já tinha sido decretado final da emergência. Mas, na prática, podem ser mais questões legais, de controle de fronteiras, de exigência de vacinação, outras questões mais da questão burocrática e legal. Mas, na prática, na prática, a gente tem que continuar os cuidados, a gente vai continuar com atendimento, então é muito mais de definições de políticas públicas e, na nossa vida prática, eu acho que não muda muito.

Na verdade, o que mais me preocupa é do ponto de vista da comunicação. ‘Ah, agora não existe mais emergência’. As pessoas imaginarem que não é mais um problema. É um problema grave, então acho que a gente tem que ter muito cuidado de como a gente vai comunicar isso.

Luciano: Eu acho, inclusive, que o fim de emergência é quase quase um sinônimo de fim da pandemia. A pergunta que todo mundo se faz é: quando que a pandemia acaba? Então, essa questão da comunicação que tu citas, é que possa chegar nas pessoas como o fim da pandemia.

Lucia: Acho que a gente tem razão de estar otimista, porque, sim, nós sobrevivemos. Muitas pessoas, muita gente querida, perderam a vida ou ficaram severamente afetados, mas isso tá tendendo a melhorar por causa da vacina, principalmente, a vacina nos deixou mais fortes. Esses dias, eu estava falando com um motorista de Uber antivacina, que não tomou a vacina. Ele disse: ‘agora que o vírus está mais fraco, não preciso me preocupar, né?’ E eu queria dizer que não, o vírus não tá mais fraco, a gente que ficou mais forte por causa da vacina. Então, quem tá vacinado, obviamente vai ter uma doença mais leve, mas ainda pessoas mais vulneráveis, e principalmente aquelas pessoas que não se vacinaram, podem ter doença grave sim. Assim como a gripe, que para a maioria das pessoas é muito leve, mas alguma pessoa mais vulnerável, ou que pegou no momento ruim, pode ter uma doença mais grave. Então, não é que acabou o problema. Acho que para quem trabalha com comunicação é bem importante a gente poder dizer isso: vamos continuar cuidando e vamos continuar cuidando coletivamente.

Luís Eduardo: A gente sabe que, além das pessoas que são contra a vacina ou acham que não funciona, tem muita gente que tomou a primeira e a segunda dose e depois não tomou novas doses. Hoje já temos a vacina bivalente, feita com base nas variantes. Qual a importância de continuar tomando as novas vacinas? É perigosa a situação para aquela pessoa que daqui a pouco tem só as duas doses iniciais?

Lucia: O vírus vai mudando muito rápido, então é claro que a vacina sempre vai conferir uma imunidade melhor do que não ter se vacinado, mas a atualização da vacina ajuda muito a não pegar as novas variantes. É possível fazer uma analogia com a gripe, todo ano a gente toma vacina da gripe porque a gente vai vendo quais foram as cepas que circularam no hemisfério norte no inverno anterior e a gente pode se preparar melhor, ficar mais preparado. Toda a vacina ajuda, e se a gente puder se manter atualizado, é melhor.

O que tem se visto é que a imunidade relacionada à vacina da covid vai diminuindo com o tempo. É melhor a gente poder estar sempre atualizado. Claro, a gente entende, é uma vacina nova, tem muitas dúvidas, teve toda essa desinformação que aconteceu, que eu acho que foi um saldo bem negativo da pandemia, mas eu acho que é importante reforçar. Às vezes até a gente brinca, na epidemiologia, que as vacinas são vítimas do próprio sucesso. O que acontece quando uma vacina é muito boa? A doença desaparece, as pessoas param de ter medo daquela doença, aí depois acaba não precisando mais tanto daquela necessidade de vacinar. Quando a gente não tinha vacina, todo mundo estava desesperado para vacinar. Quando começou a ter uma cobertura vacinal maior, a doença começou a ficar menos grave, as pessoas deixam de ter aquela preocupação. Foi o que aconteceu com o sarampo, com a pólio, aconteceu com todas as doenças que a vacina é muito efetiva. A pessoa nunca mais viu um caso de pólio, ela não tem mais medo da pólio, como a gente tinha, por exemplo, quando eu era criança. Então, a vacina às vezes é vítima da sua própria eficácia.

Luís: A tendência é que o vírus permaneça na sociedade?

Lucia: Sim, não conseguimos eliminar e ele é muito esperto, ele vai mudando. Então, acho que é muito provável que a gente vá conviver com ele mesmo.

Luís: O que a gente aprendeu com essa pandemia e para futuras pandemias?

Lucia: Tem muitas lições, mas acho que a principal é a da interconexão. Como a nossa saúde está ligada com a saúde do planeta e como a nossa saúde está ligada com a saúde do próximo. Não existe eu estar bem enquanto existe uma pandemia, não existe eu estar bem enquanto o meu vizinho está doente e não existe eu estar bem enquanto o planeta está doente. Muito provavelmente a pandemia veio de um desequilíbrio ecológico, de animais silvestres terem mais contato com o ser humano, por destruição do seu bioma natural, e é bem possível que outras pandemias surjam daí também. Então, se a gente não cuida do planeta, a gente também está se descuidando da nossa saúde. Então, a primeira lição eu acho que é interconexão. E assim como foi possível fazer um esforço coletivo, tem coisas como a vacina ter sido desenvolvida muito rapidamente por um esforço coletivo dos cientistas em todo mundo, da ciência ter sido muito eficaz, então também mostra que tem uma solução aí, que a solução é o esforço coletivo. Então, acho que o valor da ciência, nós aprendemos o valor da colaboração, o valor de fazer um esforço. Se a gente tivesse realmente conseguido fazer esse esforço mundial ao mesmo tempo, a gente teria eliminado vírus. Essa era a nossa visão naquela época. E, no Brasil especialmente, eu acho bem importante a lição de que o SUS é fundamental. Se não fosse o SUS, teria sido uma tragédia muito maior do que foi, o quanto foi importante a gente ter um sistema único de saúde. E acho que também a questão de o quanto a desigualdade afeta a saúde, o quanto o acesso à informação é importante. Então, todas essas interconexões. No fim, acho que dá para ser resumido em como a gente está interconectado.

Luciano: Quais foram as as oportunidades que nós tivemos de aprender e fracassamos, falhamos? A senhora já falou do problema das fake news, quais outros destacaria?

Lucia: Eu acho também, por exemplo, a questão da economia. Nós falamos várias vezes, não existe economia que sobreviva a um vírus descontrolado. Então, se a gente tivesse controlado, teria sido muito melhor. Se a gente quer pensar primeiro na economia, acaba perdendo a saúde e a economia. Se a gente pensa na saúde primeiro, pensa nas pessoas primeiro, isso acaba sendo melhor. Os países que lidaram melhor com a pandemia, acabaram tendo menos consequências econômicas. E agora a gente tem que lidar com várias consequências de covid longa, de saúde mental, de perda de emprego, questões que eu acho que foram lições que se apresentaram logo ali no começo e a gente podia ter aprendido e não aprendemos tão bem. Eu espero que a gente não precise passar por outra pandemia para aprender.

Mas eu queria voltar nessa questão da informação, eu acho que talvez esse seja um um legado negativo que a gente tem, que é a infodemia. A OMS definiu como infodemia esse excesso de informação inadequada, uma desinformação, uma informação fraudulenta mesmo também. Às vezes ela é passada errada, mas às vezes com má intenção também. E isso vai afetar para além da pandemia, além da covid-19, já tá afetando, por exemplo, a cobertura vacinal das doenças da infância que é uma tragédia para para o país se isso acontecer, é uma tragédia pro mundo se isso acontecer. Então, acho que é uma lição que a gente não aprendeu e que a gente precisa lidar.

Luciano: A gente gravou o primeiro programa do De Poa com o Hique Gomes e, na ocasião, ele comentou como a cultura, nos últimos anos, esteve no centro do debate político, numa verdadeira guerra cultural, e a universidade viveu algo parecido no Brasil. A senhora acabou de dizer que a produção científica da universidade se mostrou muito relevante para quem não conhecia, para quem não conseguia visualizar o que a universidade faz, durante o período da pandemia. Como foi ter visto a universidade brasileira, assim como a cultura, no centro desse debate político tão conflagrado do Brasil dos últimos anos?

Lucia: Vou dizer que, pessoalmente, foi muito difícil. Foi um momento de muita tensão, de muita luta, de necessidade de defesa da universidade. No começo, eu não entendia, eu tinha dificuldade de entender porque a gente está virando alvo. Porque que a gente, que tá fazendo tudo isso que nós fazemos, estamos virando alvo? Logo que a gente assumiu o mandato, antes da pandemia, já teve um início de uma campanha contra as universidades. Primeiro que as universidades eram muito caras. Depois tinha aquela coisa dos alunos pelados, naquelas fake news. Casualmente tem estudos que monitoram grupos de WhatsApp, essas fotos, por exemplo, de balburdia na universidade apareceram dias antes do primeiro corte grande de orçamento das universidades. E a gente ficava pensando porque nós viramos alvo, depois a gente se deu conta que a ciência, a educação, as universidades com a sua autonomia garantida pela constituição são fundamentais para a democracia, são fundamentais para o futuro do país, para um projeto que a gente tem de nação, então é claro que a gente ia virar alvo. Nós agora fomos convidados pela OMS para um evento, em que 20 universidades do mundo inteiro foram convidadas, para pensar em currículos para o enfrentamento da infodemia. A UFSCPA foi a única universidade brasileira que estava nesse encontro que aconteceu em Belgrado, em março, e uma das coisas, quando eu falei sobre a nossa experiência na universidade, em uma nota pessoal, eu como reitora mulher, como epidemiologista, como professora de Epidemiologia, eu ainda sofri pessoalmente e eu vejo que as minhas colegas mulheres, muitas das divulgadoras científicas, tiveram ataques mais pessoais e, posso dizer, mais virulentos, já que a gente estava falando de vírus. Logo em seguida, várias mulheres vieram falar comigo nesse encontro, uma professora da Holanda, uma professora da Grécia, vieram falar sobre essa questão de como foi difícil o enfrentamento por sermos cientistas, por sermos mulheres. No nosso caso aqui, específico, por ser universidade, por estar representando a ciência.

Por outro lado, hoje de manhã estava no Hospital Conceição, na posse da nova diretoria, e quando citaram ali nas autoridades o nome da UFCSPA, as pessoas começaram a gritar ‘Viva a ciência’. Então, por um lado, a gente ficou identificado com a defesa da ciência, então acho que também isso nos orgulha de termos feito o nosso papel como universidade e a universidade resistiu. Há mais de mil anos que a universidade resiste e vamos continuar resistindo.

Luís: A gente teve agora no mês de abril, o governo federal e o Ministério da Educação anunciaram uma recomposição orçamentária que vai ampliar em R$ 2,44 bilhões o orçamento de custeio e de investimento das universidades federais e institutos federais em todo o Brasil para esse ano. Isso significa um aporte mínimo de 4,3% para todas as instituições federais de ensino. No caso da UCSPA, isso representa R$ 7,5 milhões a mais nesse ano de 2023. É uma retomada ao patamar de 2019 ainda, quando começaram os cortes mais severos do governo Bolsonaro, mas também já tinham ocorrido cortes orçamentários no governo Temer. Qual é o impacto dessa recomposição para a universidade?

Lucia: O impacto foi muito grande, foi uma notícia muito boa, eu brinquei que foi o melhor ofício que eu recebi nos últimos seis anos. Foi realmente bem importante para nós. A UFCSPA, por ser pequena, sempre se organizou muito, sempre fez um planejamento muito cuidadoso para poder cumprir com todas as obrigações, mas teve alguns momentos que foram muito difíceis, a gente achou que não ia conseguir mais segurar a qualidade. Nós somos a segunda melhor graduação do Brasil entre todas as universidades na avaliação do MEC, isso significa que a gente tem um cuidado muito grande com todas essas questões.

Luís: Dá para a senhora nos dar um exemplo do que não dava mais para custear?

Lucia: Por exemplo, a Clínica da Saúda da Família que eu estava te falando, a gente acabou adiando o projeto porque priorizamos manter o custeio do dia a dia, os insumos para as aulas. Acabamos fazendo um investimento bom em algumas coisas que eram muito importantes, mas deixamos os grandes para depois. E agora, principalmente nesse ano, esse aumento foi fundamental para nós para aumentar as bolsas dos estudantes, para acompanhar os aumentos das agências de fomento, porque a UCSPA nesse tempo investiu muito em bolsa institucional. Como CAPES e CNPq tinham diminuído muito o financiamento, a gente aumentou o nosso interno. Então, a gente tem muita bolsa interna em proporção com as outras universidades. E os auxílios estudantis, a nossa universidade é a única ou uma das poucas — a única que a gente conhece — que consegue contemplar todos os estudantes que preenchem os critérios do programa nacional de assistência estudantil. As outras têm que fazer um ranqueamento e a gente consegue contemplar todo mundo. Mas precisava muito aumentar esse auxílio, porque houve uma inflação muito grande, tem estudantes com muita vulnerabilidade para poder permanecer na universidade, então, para nós, esse aumento foi fundamental para aumentar as bolsas e os auxílios estudantis e para poder garantir o nosso RU, que é um sonho bem longo da nossa comunidade, que demorou muito também, por todas essas dificuldades, e que agora a gente vai conseguir garantir com um preço menor do que se não tivesse essa complementação.


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