Meio Ambiente
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14 de março de 2024
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11:46

Entidade diz que projeto de irrigação aprovado na AL é a ‘destruição ambiental’ do RS

Por
Luciano Velleda
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Fenômenos climáticos extremos colocam na ordem do dia a gestão do uso da água pela sociedade. Foto: Sema/RS
Fenômenos climáticos extremos colocam na ordem do dia a gestão do uso da água pela sociedade. Foto: Sema/RS

Após a aprovação pela Assembleia Legislativa do Projeto de Lei 151/2023, que flexibiliza o Código Estadual de Meio Ambiente para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP) do Rio Grande do Sul, a Associação Gaúcha  de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) emitiu nota denunciando o que define como a “destruição ambiental” que está sendo incentivada e legalizada no estado.

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De autoria do deputado estadual delegado Zucco (Republicanos), o projeto aprovado na última terça-feira (12) argumenta que o objetivo é garantir alternativas de armazenamento de água para agricultura e pecuária enfrentarem as secas agravadas pela crise climática.

A entidade ambientalista destaca haver muitas provas científicas sobre o impacto das atividades humanas no planeta, com enormes danos ao meio ambiente. E neste contexto de crise ambiental intensificada pelas mudanças climáticas, diz a nova lei aprovada no parlamento gaúcho é “antiecológica” e “irresponsável”.

“A finalidade das Áreas de Preservação Permanente (APP) é preservar a biodiversidade. Os recursos hídricos são elementos de preservação dessa biodiversidade. As APPs são os nascedouros de água. Como pode ser razoável pensar em interferir nesse sistema natural complexo e já tão escasso para criar reservatórios artificiais? Trata-se de uma intervenção antrópica destrutiva e mal posicionada em um local que deve ser entendido com um santuário ecológico de maior valor”, defenda a Agapan.

“As APPs existentes já são insuficientes para manter a preservação da biodiversidade, que estamos perdendo ao longo do tempo. Com isso, também fragilizamos nossos sistemas de recursos hídricos (águas). Qualquer impacto negativo nessas áreas de inestimável valor ecológico é sinônimo de aumento da degradação ambiental com sérios reflexos na crise climática. As APPs regulam seus microclimas e, no seu conjunto, os macroclimas de regiões inteiras”, afirma a tradicional entidade ambientalista do RS e uma das mais antigas do Brasil.

Segundo a Agapan, os reservatórios artificiais podem ser aceitos em áreas antropizadas, ou seja, já alteradas pela ação humana e utilizadas para a produção agrícola. Esses reservatórios, se necessários em função do inicial cenário de aquecimento global, devem ser feitos fora das Áreas de Preservação Ambiental (APP). A entidade enfatiza que as APPs devem ser mantidas como “espaços de incomensurável valor ecológico, ou seja, que servem à preservação da vida de todas as espécies”.

Ainda conforme a análise da Agapan, a criação de reservatórios d’água dentro de APPs irá impactar na diminuição da biodiversidade, na inversão do processo evolutivo do ecossistema e seu serviço ambiental, no grau de umidade equilibrada da área preservada, no sistema de transporte e locomoção de fauna (corredores ecológicos) e na polinização que é essencial à agricultura. “Enfim, no trabalho milenar da natureza, que só ela pode fazer por nós”, pondera.

“Se o objetivo for estocar água das chuvas, é preciso que se garanta todas as condições necessárias para que as chuvas aconteçam. As APPs têm grande papel nesse processo. É pouco inteligente, e até perverso, recorrer a essa sistemática proposta pelo projeto aprovado na Assembleia Legislativa do RS. Esses reservatórios artificiais são antiecológicos, portanto, não podem estar dentro de Áreas de Preservação Permanente. Não devemos permitir, principalmente através de leis, que se ameace a biodiversidade capaz de nos proporcionar a produção necessária à vida”, critica a entidade.

Por fim, a Agapan enfatiza que o desequilíbrio ambiental proporcionado pelo modelo de produção “predatório” adotado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos no solo, águas e atmosfera, não deve continuar pautando as leis e nem ser aceito pela Justiça.

Os rumos dos recursos hídricos foi um dos principais focos de tensão no recente debate sobre a seca no RS. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O projeto de lei que autoriza a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP) do Rio Grande do Sul foi aprovado em meio a desconfiança de que poderá ser barrado judicialmente. A análise foi feita tanto por deputados mais alinhados com a defesa do meio ambiente quanto por parlamentares ligados ao agronegócio. Isso porque há o entendimento de que uma legislação estadual não pode mudar regras de uso de APPs, que seria função de lei federal.

Durante a votação, o deputado Miguel Rossetto (PT) definou o projeto como “claramente ilegal”, destacando que o Ministério Público do Rio Grande do Sul emitiu posicionamento neste sentido ao analisar a alteração do uso das águas. “Esse projeto é uma desmoralização do parlamento gaúcho. Esse projeto permite a utilização ilegal do nosso bem maior que são as águas, os arroios e as nascentes, sem respeitar os planos de bacia hidrográfica”, diz.

Na mesma linha, o deputado Matheus Gomes (PSOL) avaliou que o projeto se choca com a legislação federal. “Não cabe uma legislação estadual fazer uma flexibilização sobre o que é interesse social ou utilidade pública nessa questão do código ambiental. Penso que é um projeto ilegal que foi aprovado, mas vai ser contestado. O que está sendo proposto é perigoso porque cria a ideia de que as áreas de preservação do RS não têm que ser preservadas”, disse.

Por sua vez, o deputado Zé Nunes (PT) reforçou que, apesar do tema da irrigação merecer atenção, a proposta conflita com a legislação federal. “Quando se fala em irrigação, se parte do pressuposto de que é só reservar e que a água está disponível. Temos sofrido muito com a estiagem e é legítimo que se tenha todo esse debate e se busque algo mais eficiente nesse sentido. O problema é haver conflito com a legislação federal, com o Código Nacional do Meio Ambiente, com a Lei dos Biomas e de intervenção nas áreas de preservação ambiental, que não é uma decisão que o Estado pode tomar, porque isso é uma legislação federal. Me parece que é uma lei que o governador vai vetar, porque ela é flagrantemente inconstitucional e o governador irá se expor se sancionar”, afirmou.

Com ligações políticas próximas ao agronegócio, o presidente da Assembleia, deputado Adolfo Brito (PP), também é autor de um projeto de lei que prevê alterações mais profundas no Código Ambiental Estadual, mas que também trata da reserva de água em áreas de APPs. O PL 204/2023 também esteve para ser votado na terça-feira (12), mas foi retirado do debate após a aprovação do projeto do deputado Zucco.

Brito deixou claro que o partido não desistiu do tema e, embora tenha votado a favor, manifestou certa descrença com o impasse legal que o projeto de Zucco deve enfrentar. “A nossa intenção é fazer com que o Estado tenha condições jurídicas pro agricultor poder investir, fazer seu barramento, sua açudagem, onde ele possa tranquilamente não ter problema com a Justiça. Nosso texto vai obedecer também a legislação federal. A APP é uma legislação federal, não é uma legislação do estado do Rio Grande do Sul. Então, estamos aguardando a consulta pública que está sendo realizada pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente pra aproveitar todas as opiniões que vierem”, explicou.

O presidente da Assembleia fez ainda menção ao alinhamento que espera vir de Brasília. O senador Luis Carlos Heinze (PP) aprovou no fim do ano passado projeto que versa sobre o mesmo tema e que seguiu para a Câmara dos Deputados, onde ainda não foi analisado. Um avanço na capital federal traria mais segurança para a proposta estadual.

“Temos uma parceria com os municípios, que são quem vai implementar os projetos de irrigação. Mas, para fazer essas mudanças, vamos precisar também da aprovação em Brasília, no que diz respeito às áreas de preservação ambiental. Então, depois de ser aprovado em Brasília, que a gente possa complementar aqui esse trabalho junto com o governo do Estado e o Ministério Público. Esperamos fazer um projeto robusto, onde possa ser oferecido ao agricultor a possibilidade de investir no barramento, na açudagem, na reserva de água, sem ter medo de responder depois na Justiça”, afirmou.


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