Geral
|
28 de dezembro de 2021
|
07:41

Retrospectiva 2021: crônicas de destruição e de resistências para viver após o ‘fim do mundo’

Por
Marco Weissheimer
[email protected]
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Fazer uma retrospectiva do que foi o ano de 2021 no Brasil é sinônimo de escrever uma crônica de um desastre. Tantas foram as violações de direitos, ataques à vida, à democracia, à ciência e ao bom senso que fica difícil fazer escolhas e sistematizá-las. Por outro lado, 2021 também foi um ano de muita resistência e solidariedade, apontando caminhos e possibilidades para a reconstrução – ou construção, talvez seja melhor dizer – de um outro país. As chagas mais profundas e estruturais do Estado brasileiro – como o racismo, o colonialismo e o patriarcalismo – afloraram à superfície da sociedade e das instituições, sem disfarces nem sutilezas, expondo todo seu caráter violento, macabro e destrutivo.

Uma importante parte do trabalho da equipe do Sul21, ao longo desse ano, foi tentar escrever essa crônica, que é de desastres, mas também de resistências. Os textos de retrospectivas que apresentamos para nossas leitoras e leitores neste final de 2021 procuram sistematizar alguns dos capítulos mais importantes dessa história. Este, especificamente, procurará destacar, para além das destruições e violações de direitos e da vida, ideias e formas de resistência que indicam a possibilidade de retomadas, recomeços e construções de novos caminhos. Parafraseando Ailton Krenak, ideias e práticas não para adiar o fim do mundo, mas para começar a construir outro mundo depois de um que já se acabou e do qual restaram escombros, dos quais tentamos começar a sair agora.

Chegamos ao final de 2021, com a aprovação relâmpago, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, um dia após a decisão de um desembargador, de um projeto que autoriza a construção de um megaempreendimento imobiliário na Fazenda do Arado, no extremo sul da capital. Em fevereiro, o Sul21 já registrava em uma live, que contou com a participação do geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS, e de Eduardo Osório integrante da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no Rio Grande do Sul (MTST-RS), o avanço do extrativismo predatório do solo urbano de Porto Alegre. O território de Porto Alegre, alertaram os dois debatedores, está sendo alvo de um processo de ocupação e exploração predatório que está levando a um esgotamento dos ecossistemas que sustentam a cidade e desprezando a qualidade de vida do conjunto das comunidades que vivem nesta região.

Em 2020, 182 indígenas foram assassinados no Brasil, um número 61% maior que o do ano anterior. (Foto: Relatório Cimi 2020/Divulgação)

Falar em violência e violação de direitos dos povos indígenas é contar a história do massacre dos povos originários desde que o Brasil foi “descoberto”. Com o governo Bolsonaro, também nesta área, as sutilezas foram abandonadas e os ataques se aprofundaram, relembrando práticas do período da ditadura militar. Em março deste ano, o Fórum Justiça no Rio Grande do Sul encaminhou nesta segunda-feira (15) ao Ministério Público Federal documentos sobre violações de direitos sofridas por integrantes de povos indígenas no Estado, durante o período da ditadura civil-militar instaurada no País com o golpe de 1964.

Os documentos encaminhados ao MP Federal retratam um ambiente do cerceamento do direito de ir e vir, do direito de reunião, de impedimento do uso da língua, entre outras violações de direitos. O período em questão também foi marcado pela introdução do cultivo de soja em terras indígenas no Rio Grande do Sul, que é causa de conflitos até hoje. Após décadas de exploração econômica em suas terras e pela perda da terra para muitas comunidades, realidade dos povos indígenas no RS é marcada por exclusão e pobreza. 

No início de agosto, ocorreu um dos crimes mais chocantes do ano no Rio Grande Sul, que foi o assassinato de Daiane Griá Sales, jovem indígena kaingang, de 14 anos. O corpo de Daiane, quase todo dilacerado da cintura para baixo, foi encontrado, na tarde do dia 4 de agosto, no Setor Estiva, da Terra Indígena do Guarita, no município de Redentora, localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul. Moradora do Setor Bananeiras da Terra Indígena do Guarita, Daiane foi encontrada em uma lavoura próxima a um mato, nua, e com as partes do corpo da cintura para baixo dilaceradas.

Povo kaingang se mobilizou por justiça para Daiane Griá Sales. Foto: Reprodução

No dia 1º de outubro, o Ministério Público Estadual denunciou um homem branco de 33 anos pelo estupro e morte por asfixia de Daiane. Morador de Redentora, Dieison Corrêa Zandavalli,  já recolhido no Presídio Estadual de Três Passos, foi acusado pelo MP da prática dos crimes de estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras (meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime e feminicídio).

Segundo o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, divulgado dia 28 de outubro pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o segundo ano do governo de Jair Bolsonaro foi um período trágico para os povos indígenas, com o agravamento de um cenário de mortes, violência, violação de direitos, territórios e vidas.O relatório define 2020 como um ano trágico para os povos originários do país: “A grave crise sanitária provocada pela pandemia do coronavírus, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores intensificassem ainda mais suas investidas sobre as terras indígenas”.

No momento em que os povos indígenas de todo o país sofrem com essas mortes, ataques de toda ordem e ameaças de novas violações de direitos, o segundo programa do Conversas Cidadãs reuniu o cacique guarani Andre Benites e Marcos Kaingang para falar da importância do território, da cultura e da liberdade na acepção Guarani e Kaingang de Bem Viver. O programa foi gravado na Aldeia Mata Sagrada, em Maquiné, território guarani no litoral norte do RS.

“Moço, consegue me comprar um quilo de arroz ou de feijão?” Pedidos como este, que já vinham crescendo nos últimos anos nas esquinas e arredores de supermercados e mercados, tornaram-se diários e crescentes nos últimos meses em Porto Alegre e em milhares de outras cidades brasileiras. Com a disparada de preços de alimentos básicos, uma doação na forma de um quilo de arroz ou feijão passou a ter um valor vital para milhares de pessoas em situação de rua ou sem renda para comprar alimentos para suas famílias. Diante do desmonte das políticas públicas de segurança alimentar, organizações sociais e movimentos populares começaram a organizar campanhas de doação de alimentos e cozinhas comunitárias na periferia das maiores cidades do Estado.

Solidariedades de organizações sociais e movimentos populares mitigou desmonte de políticas públicas de segurança alimentar. (Foto: Leandro Molina/Divulgação)

A permanência do problema da fome em pleno século 21, após todas as promessas feitas pela chamada Revolução Verde, lançam luz sobre a atual modelo hegemônico de produção de alimentos no mundo, dominado pelo agronegócio. Além da falta de alimentos para milhões de pessoas, está em questão também a qualidade dessa alimentação diante da explosão de produtos ultraprocessados, que mal podem ser chamados de alimentos, e do uso intensivo de agrotóxicos. A relação entre a alimentação e o agronegócio em um mundo (in) sustentável foi o tema do primeiro programa Conversas Cidadãs, um projeto realizado em parceria pelo Sul21 e pelo Goethe-Institut Porto Alegre, que entrou em seu quinto ano.

A pressão exercida pela indústria alimentícia e pelo agronegócio sobre os formuladores de políticas públicas para garantir a manutenção da monocultura de commodities para exportação, o uso intensivo de agrotóxicos e incentivos econômicos a produtos ultraprocessados está contribuindo para piorar a saúde da população e do planeta, em meio ao cenário da pandemia da covid-19. Em entrevista ao Sul21, Janine Giuberti Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), falou sobre o lobby desses setores junto à Cúpula dos Sistemas Alimentares, organizada pela ONU para debater a situação da alimentação no mundo. 

Segundo Janine Coutinho, o que deveria ser um debate aberto à participação da sociedade da sociedade civil, acabou sendo capturado pelo lobby do agronegócio e da indústria de alimentos, o que levou o Idec anunciar que não participaria formalmente do Fórum.

No dia 3 de dezembro, Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos, entidades ambientalistas, sindicatos e um conjunto de outras organizações entregaramao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), o “prêmio” Pulverizador de Ouro – Ano 2021, Amigo dos Agrotóxicos. A premiação decorreu, principalmente, da iniciativa do governo Leite para alterar a Lei dos Agrotóxicos Gaúcha (Lei n° 7.747/1982), por meio do PL 260/2020, que derrubou o Artigo 1º da legislação que proibia o uso no Estado de agrotóxicos proibidos em seus países de origem. Hoje, lembraram as entidades, cerca de 30% dos ingredientes de agrotóxicos usados no Brasil já são proibidos na União Europeia. A entrega da “premiação”, em tom satírico, ocorreu durante um ato realizado em frente ao Palácio Piratini. 

O “prêmio” de Eduardo Leite (Foto: Isabelle Rieger)

O avanço da extrema-direita no Brasil e o consequente ataque à própria ideia de direitos humanos não foi um caso isolado. Em vários países do mundo, o crescimento de grupos ultra-conservadores está exigindo um desafio que parecia resolvido no período pós-Segunda Guerra Mundial: a defesa de princípios básicos fundadores da democracia e da Declaração Universal de Direitos Humanos. Em agosto, o Sul21 entrevistou David Sanchéz Rubio, professor e pesquisador do Departamento de Filosofia do Direito, da Universidade de Sevilha, que vem se dedicando a esse tema. 

Para Rubio, esse populismo de extrema-direita, junto com o pensamento conservador que predomina em nível global, é parceiro do sistema capitalista em seu atual estágio neoliberal. Ele citou o filósofo alemão Franz Hinkelammert, para quem o poder do capital em sua forma neoliberal faz duas coisas muito bem: mentir e dar boas razões para matar. O capitalismo, em seu propósito de sempre obter lucros, de crescer para acumular riqueza, vai justificar tudo, inclusive o apoio ao discurso de que não cabemos todos no mundo e que não podemos construir um mundo onde todo mundo caiba.

David Sánchez Rubio, professor da Universidade de Sevilha. (Reprodução/Youtube)

Diante de um processo massivo de violação de direitos, um grupo de organizações da sociedade civil decidiu lançar um projeto para constituir uma rede de proteção a defensores e defensoras de direitos humanos em todo o país. O projeto Sementes de Proteção foi lançado dia 6 de dezembro por representantes das organizações autoras da iniciativa: Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e a Fundação We World – GVC ONLUS (WW-GVC), em parceria com a União Europeia.

Essas organizações destacaram que o Brasil é, hoje, o 4º país mais violento do mundo para quem atua junto à sociedade civil, segundo levantamento do relatório anual da Frontline Defender, realizado em 2019. 

No dia 9 de dezembro, as organizações Terra de Direitos e Justiça Global divulgaram um relatório intitulado “Começo do Fim?”, que denuncia o desmonte das políticas de proteção aos defensores e defensoras de direitos humanos, comunicadores e ambientalistas pelo governo Bolsonaro. Esse desmonte, assinala o relatório, ocorre em um cenário onde o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos, o desmatamento na Amazônia é o maior em quinze anos e o país ainda vive os efeitos da pandemia de covid-19.

Ao longo do ano de 2021, assim como já havia ocorrido em 2020, a pandemia de covid-19 expôs muitas desigualdades e opressões que marcam a vida da nossa sociedade. Dentro desse processo de desigualdades, violações de direitos e opressões, as mulheres ocupam um papel central. Essa centralidade tem a ver tanto com o seu protagonismo em várias frentes e formas de resistência quanto com o fato de elas serem alvo de diferentes formas de violência e preconceito, em várias dimensões também, que se articulam entre si. Os últimos dois anos derreteram muitas máscaras e disfarces, expondo fenômenos como a feminização da pobreza, associada ao racismo, ao machismo e à indecorosa desigualdade social que atravessa a sociedade brasileira.

Uma pesquisa divulgada pela Fiocruz apontou, por exemplo, que as mulheres sofreram mais danos à saúde mental durante a pandemia. Segundo essa pesquisa, as mulheres realizaram quatro horas a mais de trabalhos domésticos durante o isolamento e relataram mais sintomas de depressão, ansiedade e estresse do que os homens. Mas, assim como as diferentes formas de opressão e violação de direitos se conectam, muitas mulheres estão mostrando que a resistência e a busca de alternativa também estão se encontrando e se conectando. Esse foi o tema do terceiro programa do projeto Conversas Cidadãs 2021 que mostrou como essa conexão entre feminismo e ecologia, em especial, vem se materializando não só como uma reflexão teórica, mas como uma experiência de vida para muitas mulheres.

A partir dessas conexões ecofeministas, um possível resumo desse ano de violações de direitos e violências de toda ordem, e também de crescentes movimentos de resistência a elas pode ser expresso assim, tomando a formulação da filósofa ecofeminista Karen Warren: se todas as formas de opressão estão conectadas, as lutas para enfrentá-las também devem estar.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora