Geral
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22 de agosto de 2021
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12:06

Lobby do agronegócio e da indústria de alimentos na ONU piora saúde da população e do planeta

Por
Marco Weissheimer
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Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares ocorreu em julho, em Roma. (Foto: Giulio d'Adamo/ World Food Programme)
Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares ocorreu em julho, em Roma. (Foto: Giulio d'Adamo/ World Food Programme)

A pressão exercida pela indústria alimentícia e pelo agronegócio sobre os formuladores de políticas públicas, como aconteceu recentemente durante a Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, para garantir a manutenção da monocultura de commodities para exportação, o uso intensivo de agrotóxicos e incentivos econômicos a produtos ultraprocessados está contribuindo para piorar a saúde da população e do planeta, em meio ao cenário da pandemia da covid-19. O alerta é de Janine Giuberti Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). 

A Cúpula dos Sistemas Alimentares deste ano está sendo organizada pela ONU com o objetivo de debater temas relacionados a alimentos que vão desde a produção, transporte e distribuição, até a comercialização, consumo e formulação de políticas públicas. O evento, que será realizado em setembro, pretende ser uma resposta ao aumento da insegurança alimentar e nutricional nos últimos anos, para além da crise econômica, das desigualdades e da pandemia, que só agravou esse quadro. No entanto, o que deveria ser um debate aberto à participação da sociedade da sociedade civil, acabou sendo capturado pelo lobby do agronegócio e da indústria de alimentos, o que levou o Idec anunciar que não participaria formalmente do Fórum.

Janine Giuberti Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec. (Divulgação)

Em entrevista concedida por e-mail ao Sul21, Janine Coutinho fala sobre a pressão desses setores econômicos sobre a ONU e sobre as esferas governamentais para a formulação de políticas que só atendem aos seus próprios interesses e agravam a situação da saúde da população global e do planeta como um todo. Esse quadro é mais crítico ainda, acrescenta, na medida em que enfrentamos um quadro de sindemia global, que é o resultado da interação das pandemias de fome, obesidade e mudanças climáticas, que acontecem em escala global, ao mesmo tempo, complementando-se e se retroalimentando. “As empresas usam deste cenário de profunda crise socioambiental para posicionarem suas marcas como referências de preservação do meio ambiente e da vida – como se as próprias empresas fossem a solução para os problemas climáticos e sanitários”, diz Janice.

Sul21 – O que essa expressão “sistemas alimentares” designa mais precisamente? Trata-se de uma ideia bastante abrangente que envolve as dimensões da produção, industrialização, comercialização e consumo. Quem são os atores sociais e econômicos que personificam esses sistemas?

Janine Coutinho – A expressão Sistemas Alimentares representa tudo aquilo que é relacionado a alimentação, desde a produção, logística e transporte de alimentos, abastecimento, comercialização e consumo. A população de todo o mundo consome os alimentos que são produzidos. No entanto, são as grandes corporações que dominam a forma hegemônica da produção, abastecimento e comercialização.

A indústria alimentícia e o agronegócio incidem sobre os formuladores de políticas públicas, como aconteceu durante a Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, para garantir a manutenção da monocultura de commodities para exportação, o uso intensivo de agrotóxicos, incentivos econômicos a produtos ultraprocessados, entre outros modelos que contribuem para piorar a saúde da população e do planeta.

Sul21Em que medida, é preciso pensar essa expressão hoje em termos globais e não apenas localmente em cada país?

Janine Coutinho – É de extrema importância conectar os sistemas alimentares locais com outros regionais e globais, pois eles coexistem, se interdependem e se complementam. Nós lutamos pela soberania alimentar e nutricional das populações e dos países. Em outras palavras, lutamos pelo direito dos povos definirem suas políticas, com a autonomia sobre o que produzir, para quem produzir e em que condições. E não é qualquer alimento: estamos falando de alimento saudável e culturalmente referenciado.

O Idec trabalha para analisar o contexto político-econômico brasileiro e revisar a bibliografia nacional sobre sistemas alimentares para mapear a realidade do sistema alimentar brasileiro. Em paralelo, o Idec trabalha com parceiros do Centro de Estudos de Estado e Sociedade, da Argentina, e a Universidade Alfonso Ibáñez, do Chile, para conectar a realidade brasileira com a latino-americana, somando esforços para propor uma agenda de transição de sistemas alimentares na América Latina. 

Em outra esfera, este grupo latino-americano articula com o Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas para Relações com o Comitê das Nações Unidas sobre Segurança Alimentar Mundial, que mobiliza mais de 300 organizações da sociedade civil do mundo inteiro, para discutir Sistemas Alimentares na América Latina e como se relacionam com os modelos globais.

“Não é qualquer alimento: estamos falando de alimento saudável e culturalmente referenciado”. (Foto: Larissa da Silva Santos MST-PR)

Sul21 – Matérias e documentos sobre a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU falam de sistemas alimentares corporativos e de sistemas alimentares saudáveis. E que a Cúpula teria sido “capturada” pela agenda dos sistemas alimentares corporativos. Que agenda é essa exatamente?

Janine Coutinho – A sociedade civil organizada denuncia a captura corporativa sob a qual a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU está submetida desde o começo do ano. Embora o evento promova uma aparente estrutura inclusiva, desde o início o processo de organização da Cúpula foi marcado por não incluir vários atores e organizações que legitimamente compõem os Sistemas Alimentares, esvaziando assim os espaços e garantindo a manutenção de uma agenda que favorece a indústria e o agronegócio em detrimento dos pequenos produtores, comunidades tradicionais, povos originários e toda a sociedade civil. 

Esta captura corporativa é marcada pela nomeação de Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verde na África (AGRA), como Enviada Especial da ONU, para chefiar o evento. Kalibata é notadamente conhecida por seus laços com o agronegócio e a indústria alimentícia. Assim, a tendência é o aprofundamento do modelo de Sistemas Alimentares corporativos que promovem uma alimentação à base de ultraprocessados, o desmatamento, o uso intensivo de agrotóxicos e a monocultura de commodities, causando deterioração do solo, contaminação dos cursos d’água e impactos irreversíveis na biodiversidade e na saúde das pessoas.

Sul21Entre os debates da Contra Mobilização dos Povos para Transformar os Sistemas Alimentares Corporativos, aparecem temas como falsas soluções tecnológicas, ameaças da agricultura e da indústria da alimentação contra a biodiversidade e os direitos humanos. Poderia dar alguns exemplos, considerando o cenário brasileiro, dessas falsas soluções tecnológicas e das ameaças da agricultura industrial contra a biodiversidade e os direitos humanos?

Janine Coutinho – A princípio, a mecanização do campo e o uso de altas tecnologias aumenta o abismo socioeconômico entre pequenos e grandes produtores. Ao passo que a produção se torna mais especializada e tecnológica, agricultores familiares, extrativistas e povos originários e tradicionais se tornam reféns da mecanização e da tecnologia, pois só conseguem acesso a elas por meio de grandes empresas, que ao fim acabam controlando a pequena produção. 

Indústria trabalha para manter dependência do uso intensivo de agrotóxicos. Imagem de Vitor Dutra Kaosnoff / Pixabay

Isso acontece com o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, onde produtores familiares são influenciados a comprarem um pacote de defensivos, mas acabam se tornando dependentes uma vez que o solo está contaminado por agrotóxicos e é preciso usar cada vez mais quantidade de veneno para produzir.

Sul21 Victor Súarez Carrera, Vice-Ministro de Autossuficiência, do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural do México, disse que “é inaceitável que estejam tentando privatizar as soluções públicas na Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU”. Em que consiste exatamente essa tentativa de privatizar soluções públicas?

Janine Coutinho – As empresas que dominam os sistemas alimentares ignoram que para frear as mudanças climáticas, garantir segurança alimentar para a população e diminuir as taxas de obesidade é preciso de ações públicas que envolvam toda a sociedade na tomada de decisão e na implementação. Mas acontece o contrário: as empresas usam deste cenário de profunda crise socioambiental para posicionarem suas marcas como referências de preservação do meio ambiente e da vida – como se as próprias empresas fossem a solução para os problemas climáticos e sanitários.

Dominada pelas corporações, a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU é um espaço que propõe soluções privatizadas para salvar o mundo. Esta abordagem diminui ainda mais o papel da sociedade civil nos Sistemas Alimentares e nas verdadeiras soluções para a produção e consumo de alimentos.

Sul21 A ideia de que vivemos hoje uma sindemia global, ou seja, uma sinergia de pandemias envolvendo problemas como fome, obesidade, doenças crônicas e mudanças climáticas parece adquirir um sentido ainda mais dramático no contexto da pandemia da covid-19. Sei que essa é uma questão muito ampla, mas, resumidamente, em que medida esses problemas se articulam hoje?

Sindemia global é resultado da interação de diferentes pandemias. (Pixabay)

Janine Coutinho – A sindemia global é o resultado da interação das pandemias de fome, obesidade e mudanças climáticas, que acontecem em escala global, ao mesmo tempo, complementando-se e se retroalimentando. No contexto da pandemia de covid-19, a sindemia global foi agravada principalmente por conta da crise econômica que deixou muitas pessoas sem renda e em insegurança alimentar, ou seja, quando uma pessoa tem acesso limitado ou nenhum à comida. 

No Brasil, no final de 2020, mais de 50% dos lares brasileiros enfrentavam insegurança alimentar. Com isso, aumentou-se significativamente o problema da fome não apenas no Brasil, mas globalmente. Ao passo que se tem menos acesso a alimentos saudáveis, as empresas promovem doação de produtos ultraprocessados como falsa solução para a fome, enquanto adoecem a população com fórmulas químicas que comprovadamente impactam a saúde das pessoas, fragilizando a imunidade, gerando comorbidades nas pessoas e consequentemente aumentando o índice de mortalidade da covid-19.


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