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8 de maio de 2024
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13:49

‘Uma operação de guerra’: voluntários se mobilizam para acolher desabrigados pela enchente em Canoas

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Sul 21
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Abrigo montado no Sindicato dos Metalúrgicos de . Foto: Valentina Bressan
Abrigo montado no Sindicato dos Metalúrgicos de . Foto: Valentina Bressan

Por Valentina Bressan

No início desta semana, as intensas chuvas que resultaram na inundação de dois terços do município de Canoas deram trégua. Apesar dos dias de céu aberto, a tragédia da enchente segue impactando profundamente a vida da população – e deve seguir, já que, segundo a Prefeitura, serão ao menos 45 dias até a água retornar ao nível normal. Em meio à calamidade, os canoenses tentam se reestruturar por meio da solidariedade.

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O movimento no centro da cidade, nesta segunda-feira (6), era principalmente de voluntários e alguns moradores nos poucos comércios abertos. A vendedora de roupas Vanusa conta que a principal clientela do dia foram pessoas atingidas pela enchente, que agora buscam comprar itens básicos, como roupas íntimas. Entre os funcionários da loja, metade perdeu suas moradias.

Em uma tradicional escola privada do centro da cidade, às 17h, horário rotineiro de saída dos alunos, o principal vai e vem não era de crianças e jovens, mas de voluntários. O abrigamento no Colégio Maria Auxiliadora começou porque as missionárias associadas à instituição ofereceram o local para acolher funcionários cujas casas haviam inundado.

Agora, o colégio acolhe cerca de 500 pessoas. Há apoio da Prefeitura nos setores de saúde e serviço social, bem como no recebimento de alimentos. Mas a segurança e a logística são obra dos voluntários. A estrutura, no entanto, ainda é emergencial e provisória. “Inicialmente não tinha colchão, ainda faltam, e não temos estrutura de banho para atender tanta gente. Fomos improvisando”, conta Vagner Maccalli, diretor do Maria Auxiliadora.

Segundo estimativas da Prefeitura, já são cerca de 20 mil canoenses abrigados emergencialmente no município – foi disponibilizada uma lista de pessoas resgatadas e abrigadas. A administração admite, contudo, que os números não são precisos. Além dos locais viabilizados pela Prefeitura, outros pontos de acolhimento surgiram a partir da organização espontânea da sociedade civil. Entre abrigos oficiais e não oficiais, a estimativa é de que Canoas já conte com mais de 100 locais para acolhimento.

Também há abrigos de outros municípios da região metropolitana – como Cachoeirinha, Gravataí, Alvorada e Viamão – recebendo canoenses. Muitas famílias estão se reencontrando e, por isso, os números estão sempre mudando. Foi esse o caso de Cristiano Ferrão, motoboy de 42 anos que foi recebido na Paróquia São Luiz Gonzaga, no centro de Canoas.

Ele teve de empurrar os cachorros da família dentro de uma geladeira boiando para conseguir escapar da enchente a pé junto da filha e dos pets. Agora que a filha e a esposa estão em segurança no bairro Partenon, em Porto Alegre, Cristiano buscou o restante da família em outros abrigos.

“Trouxemos todo mundo para cá, tá todo mundo aqui, eu nem vou voltar para Porto Alegre porque não tem como. Vou ficar aqui com o resto da minha família e ajudar”, conta o morador da Vila Cerne, no bairro Harmonia. “Graças a Deus, a gente conseguiu escapar caminhando. Tenho muitos parentes que foram resgatados de barco, ficaram o dia inteiro lá esperando sem saber se a água ia subir mais. Deve ter quase 30 pessoas da minha família aqui”.

O próprio coordenador do abrigo encontrou acolhimento na paróquia. “Todos que estão aqui, inclusive eu, sou flagelado também, perdi tudo da minha casa. A Mathias Velho foi devastada. Moro há mais de 50 anos ali”, conta o diácono Flávio Antônio, que organiza as doações e recebe os novos acolhidos. No momento, o salão paroquial abriga 250 pessoas.

A maior dificuldade, que se repete em outros centros, é o fornecimento de colchões. Ali, as pessoas dormem no chão, sobre cobertores ou sentadas em cadeiras. A disponibilização das igrejas foi um pedido da Prefeitura. Apesar da falta de recursos, o diácono destaca a auto organização dos canoenses: “A comunidade é fantástica. Tudo que a gente pede, coloca nos grupos e rapidinho chegam as doações aqui. Aqui está tudo limpo e organizado, há muita consciência e diálogo”.

No Centro Poliesportivo da Universidade La Salle, há cerca de 700 abrigados, e a principal dificuldade é o fornecimento de água. Com a falta de abastecimento, é preciso trabalhar com a Prefeitura para conseguir manter o abrigo funcionando. Já no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Canoas e Nova Santa Rita, um dos primeiros abrigos abertos, as doações têm vindo de todos os cantos do país. Na segunda-feira, mantimentos com origem no Rio de Janeiro chegaram ao centro administrado pela Prefeitura. O que mais falta são itens de higiene, como toalhas, escovas de dente e de cabelo e fraldas. Há necessidade constante de roupas, já que o abrigo não consegue fazer a lavagem das peças ali.

O maior abrigo da cidade é a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). A estimativa de voluntários é que, na segunda-feira, de 5 a 6 mil pessoas estivessem alojadas na universidade. Cinco prédios estão ocupados – um deles destinado a famílias com pessoas autistas e com deficiência.

 

Na Ulbra, voluntários fazem cordão humano para carregar alimentos doados. Foto: Valentina Bressan

“É uma operação de guerra, estamos organizando uma cidade”, descreve Edinei Teixeira, produtor de eventos que se tornou voluntário na sexta-feira. Na Ulbra, os relatos de voluntários fazem referência à falta de mediação da Prefeitura entre a rede de abrigos que se formou. Os voluntários precisam se comunicar entre si para saber o que falta e o que sobra em cada local, e assim redistribuir mantimentos e doações.

“Eu vim como voluntário e achei que teria alguma autoridade, alguém do exército organizando uma operação como essa. Mas tivemos de aprender aos poucos. Hoje está mais organizado que ontem”, conta Edinei. Um problema relatado pelo voluntário é a falta de orientação quanto às doações: na Ulbra, os mantimentos devem ser destinados apenas aos alojados no local, mas pessoas abrigadas em casas de parentes e conhecidos também buscam doações no local porque a comunicação da Prefeitura não foi efetiva.

Segundo Jairo Jorge, o centro para recebimento de doações é a unidade da Cassol Centerlar da avenida Farroupilha. Na terça-feira (8), foi inaugurada uma Central de Entrega de Doações de alimentos e roupas na na esquina das avenidas Getúlio Vargas e Inconfidência.

Como nos demais abrigos, a principal necessidade na Ulbra são colchões. A Prefeitura solicita doações e indica que 8 mil colchões precisam ser doados para suprir os abrigados. “Só no nosso quarto tem sete famílias amontoadas, não tem colchão para todo mundo. Mas eles estão fazendo o possível”, conta Denise Rodrigues, analista de departamento pessoal e moradora do bairro Harmonia. “Em chuvas muito fortes, como no ano passado, a água já cobriu o pátio de casa, mas nunca nesse nível”.

Denise estava com sua mãe, moradora do bairro Mathias Velho, em casa, quando a Defesa Civil emitiu o alerta de evacuação via carros de som. Mãe e filha foram resgatadas por uma caminhonete. “Era muita gente nas ruas, pedindo socorro, não cabia mais gente no carro, a gente veio todos amontoados”, relata Denise. “É um monte de gente. Tão tentando ajudar todo mundo. A Mathias inteira tá aqui”, complementa Márcia Andrada Silva.

O número de pessoas abrigadas e a logística de distribuição de mantimentos foram fatores que influenciaram alguns conflitos no abrigo. A preocupação sobre a violência nos centros de acolhimento tem ampliado boatos nas redes sociais. Por ora, o apoio da Polícia Civil e da Brigada Militar foi disponibilizado nos prédios. “Toda situação que acontece numa cidade normal, acontece aqui”, resume Edinei Teixeira.

Erica Tainá Cunha, vendedora, diz se sentir segura no abrigo devido ao policiamento. Junto de sua mãe, a cozinheira Luciana Maria da Rocha, ela chegou à Ulbra na sexta-feira “Fomos resgatados por um vizinho que nos levou até o Carrefour numa caçamba. Viemos de carro para cá. Todos meus filhos estão aqui, minhas irmãs, sobrinhos, filhos e netos. A gente sente muito pelas mães que perderam os filhos”, diz Luciana.

Além dos voluntários e funcionários da Prefeitura envolvidos na manutenção da logística do espaço, membros da comunidade se mobilizam para ajudar os impactados pela enchente. “Trabalho com eventos há 39 anos e sou engajada nessa coisa de voluntariado, foi assim na pandemia. A gente estava dentro de casa, com um teto, chorando a nossa dor. Eu falei chega, não vou mais chorar”, conta Madalena Martinelli Fraga, moradora do bairro Guajuviras que assistiu a sua filha e seus irmãos terem suas casas tomadas pela água. Na noite de segunda-feira, ela distribuía sonhos para os abrigados na Ulbra. “Ontem a gente preparou mil lanches, hoje trouxemos dois mil. Pretendemos trazer mais, com fundos próprios. Ficar em casa olhando a desgraça dos outros pela TV é muito fácil. Com teto, com água, comida. O ser humano não pode ser assim.”

 

Espaço passa a concentrar a distribuição de alimentos não-perecíveis e de roupas para a população desabrigada. Foto: Guilherme Pereira/PMC

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