De Poa
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27 de junho de 2024
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18:34

Rafael Guimaraens: ‘O negacionismo não é só achar que não vai acontecer, é não ouvir quem estuda’

Por
Luís Gomes
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Rafael Guimaraens é o convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução
Rafael Guimaraens é o convidado desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

O episódio desta semana do podcast De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebe o jornalista e escritor Rafael Guimaraens. Autor de um livro sobre a enchente histórica de 1941, ele conversa com Luís Eduardo Gomes e Luciano Velleda a respeito da experiência de vivenciar uma nova inundação em Porto Alegre.

A partir da pesquisa que realizou para a produção do livro e do que vivenciou na enchente atual, Guimaraens fala sobre as semelhanças e diferenças entre os dois momentos históricos.

“São fenômenos tão raros de se combinarem que o cálculo de tempo de recorrência foi de 370 anos [em 1941] e se repetiram agora exatamente todos esses fatores, com algumas diferenças. Todo esse quadro meteorológico, climático, foi praticamente igual, e agindo sobre essas condições geográficas e topográficas particulares que Porto Alegre tem. Não só Porto Alegre, Canoas, que foi mais atingida, Eldorado do Sul, que na época não existia, era um campo, acho que até tinha plantação de arroz. As Ilhas também eram habitadas, mas não eram tanto como agora. Ou seja, essa dramaticidade em volta de Porto Alegre foi bem grave. Mesmo Canoas, era grande, mas não tanto como agora e alguns lugares que alagou agora e atingiu muita gente ainda nem existiam ainda [em 1941]. Então, essa é a semelhança. Diferenças, a água, pelo que a gente vê nas fotografias e mesmo nas referências, que a gente vê as pessoas depois da enchente brincando na água, não era uma água contaminada como essa agora, essa água marrom, com mau cheiro, toda essa coisa lamacenta. E contaminada porque, durante esse período todo que se passou de uma enchente até a outra, na época, a lavoura praticamente não tinha agrotóxico, por exemplo. Se tinha, era uma coisa muito localizada, não era esse uso intensivo que se tem agora. Poluição da indústrias nas cabeceiras dos rios não existia, não existiam indústrias muito significativas nessas margens dos rios. E a derrubada, essas barragens feitas dessa forma que a gente está vendo, tudo isso contribuiu para que a água viesse com fúria. E, aí sim, entra a falha humana”, diz.

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Ao ser questionado sobre quais as memórias que vai levar dessa enchente, o escritor contou sobre o dia em que viu uma taça em meio a um monte de entulhos. “Tem uma coisa que eu acho muito simbólica, quando eu falei para vocês que eu fui ao depósito, aquela região do bairro São Geraldo, Navegantes, eu saí muito deprimido lá do depósito. Fiquei olhando os caras conversando, os caras trabalhando para limpar tudo. Não só o nosso, todos os compartimentos. Tinha um, por exemplo, de erva mate, que estava lotado. Daí, eu passava pelas ruas e de dentro do carro fotografava. Daí, eu vi na Avenida Brasil, tinha um entulho e bem na frente do entulho, parecia até uma cena montada, tinha um troféu. Troféu desses, tacinha de campeonato, imagino que de futebol, essas que a gente compra ali na Galeria Chaves. Eu desci do carro, eu disse: ‘mas não é possível’. Aí eu fotografei o troféu com um monte de entulho na volta. Até perguntei ali para o pessoal, eu pensei que tinha que contar a história desse troféu, mas tinha duas pessoas trabalhando e nenhuma delas sabia. Era na frente de um bar chamado Bar Perfeito, até isso. Então, eu fiquei pensando nisso, as perdas que as pessoas tiveram, que são as perdas objetivas. A pessoa perdeu a cama, perdeu o armário, perdeu a televisão, a geladeira. Claro que isso é significativo, muitas vezes não é só um objeto, mas é uma coisa que é uma conquista. Para uma pessoa que tem um salário menor, comprar uma geladeira bacana é uma conquista. Mas também a memória essa que é a tacinha. Aquela taça ali, foi alguém que se puxou para ganhar, alguém se dedicou a isso”, diz.

O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

A seguir, confira trechos da entrevista com o escritor e jornalista Rafael Guimaraens.

Sul21 — Sobre o livro da enchente de 1941, a edição que foi relançada agora tem uma pequena nota da edição e me chamou atenção que, nessa nota, tu falas que a enchente de agora tem muitas semelhanças impressionantes com a enchente do ano de 1941, quanto às causas e à própria cronologia da tragédia. Conta um pouco que semelhanças são essas entre 2024 e 1941.

Rafael Guimaraens: Porto Alegre sempre teve enchentes. Porto Alegre é uma cidade que é propensa a enchente, porque ela está colocada ao lado de um enorme manancial de águas que é o Guaíba, um manancial gigantesco que é constantemente alimentado pelos quatro rios, Caí, Jacuí, Gravataí, Rio dos Sinos, mais o Taquari, que na verdade deságua no Jacuí, mas essa água também vem para cá. Então, ele está sempre propenso e tem um histórico de enchentes. Até as décadas de 1920 e 30, tinha uma enchente grande a cada 10 anos, por exemplo, mas essas enchentes aconteciam normalmente no segundo semestre, a partir de agosto, de agosto até novembro, por ali, é o período das enchentes. Todas elas, com exceção de duas, a enchente de 1941 e essa enchente agora.

Sul21 — No mesmo dia quase, 6 e 7 de maio.

Rafael Guimaraens: Exatamente. Então, ele tem em primeiro lugar as causas, uma quantidade enorme de águas de chuvas nas nascentes desses rios, com muita semelhança até na medição da chuva que caiu. Chuva em Porto Alegre durante muitos dias, chuva intensa. Essa água chega e depois, quando a enchente está colocada, está tomando conta da cidade nos lugares de sempre, a zona norte, os bairros Navegantes, Humaitá, Vila Farrapos, agora o Quarto Distrito. E, ao sul, não tinha aquele aterro do Parque Marinha, entrava direto na Praia de Belas. Esse era o caminho das águas. O Centro eventualmente era preservado. Em 1928, teve uma enchente que subiu um pouquinho, 10 ou 20 cm acima dos 3 metros entre o Guaíba e o nível do porto. Mas, em 1941, ela foi muito grande, subiu 1,76 metro acima dos 3 m. Agora, subiu mais, 5,30 m, é o que dizem. Ou seja, dois metros e 30 cm acima da altura do cais. Então, foi muito parecido, inclusive nos dias. Em 2 de maio, a água estava tanto, 3 de maio subiu para tanto e tal. Tem essa coincidência. Claro, depois ela sobe mais. Então, são muito parecidos e é uma confluência de fatores muito raros de acontecer ao mesmo tempo. Tanto que, na enchente de 41, tem um cálculo que eles fazem que é o tempo de recorrência, em que eles estimam em quanto tempo a enchente vai se repetir.

Em 1941, foi estabelecido em 370 anos. São fenômenos tão raros de se combinarem que o cálculo de tempo de recorrência foi de 370 anos e se repetiram agora exatamente todos esses fatores, com algumas diferenças. Todo esse quadro meteorológico, climático, foi praticamente igual, e agindo sobre essas condições geográficas e topográficas particulares que Porto Alegre tem. Não só Porto Alegre, Canoas, que foi mais atingida, Eldorado do Sul, que na época não existia, era um campo, acho que até tinha plantação de arroz. As Ilhas também eram habitadas, mas não eram tanto como agora. Ou seja, essa dramaticidade em volta de Porto Alegre foi bem grave. Mesmo Canoas, era grande, mas não tanto como agora e alguns lugares que alagou agora e atingiu muita gente ainda nem existiam ainda [em 1941]. Então, essa é semelhança. Diferenças, a água, pelo que a gente vê nas fotografias e mesmo nas referências, que a gente vê as pessoas depois da enchente brincando na água, não era uma água contaminada como essa agora, essa água marrom, com mau cheiro, toda essa coisa lamacenta. E contaminada porque, durante esse período todo que se passou de uma enchente até a outra, na época a lavoura praticamente não tinha agrotóxico, por exemplo. Se tinha, era uma coisa muito localizada, não era esse uso intensivo que se tem agora. Poluição da indústrias nas cabeceiras dos rios não existia, não existiam indústrias muito significativas nessas margens dos rios. E a derrubada, essas barragens feitas dessa forma que a gente está vendo, tudo isso contribuiu para que a água viesse com fúria. E, aí sim, entra a falha humana.

Se fala que a enchente de 1941 deixou ensinamentos, mas não foram só ensinamentos. A herança da enchente de 1941 é o projeto da cortina de proteção, o dique da Castelo Branco, o dique Avenida Beira Rio e o muro no meio. Esse aí foi o projeto construído 30 anos depois, mas é um legado da enchente. Quer dizer, não apenas deixou ensinamentos, mas deixou um projeto que os técnicos todos são unânimes — veio técnico do Canadá, da Holanda –, com o perdão do trocadilho, chovem no molhado, a estrutura é boa, protege, mas tem que haver manutenção, tem que haver é um cuidado com a vedação para que a água não passe pelas frestas ou, como aconteceu, que a água não derrube os portões. Porque não é para derrubar, são portões de aço maciço, eles deveriam aguentar. Se não aguentaram, é porque a estrutura que faz esse portões fecharem e abrirem foi deteriorada com o tempo. As roldanas enferrujadas, tudo isso que está se vendo.

Sul21 — Tu falou do legado da enchente de 1941 que foram as obras, e muito se falou da memória. Mas a verdade é que muito pouca gente acreditava que fosse acontecer de novo e que fosse acontecer, talvez, tão cedo. Como tu disse, existia a previsão de que uma enchente daquele porte teria uma recorrência de 370 anos. Como que foi para ti, uma pessoa que, diferente da maior da população, estudou de fato o que aconteceu, pesquisou e compreendeu aquele fenômeno, ver isso acontecendo?

Rafael Guimaraens: Bem, nós temos que entender uma coisa, porque ficou até muito tempo sem enchente. Teve em 41, depois em 65 e 67 houve duas, depois uma em 83 que não chegou também a ser tão grande. Mas nós temos que entender e acreditar que a coisa da mudança climática não é uma fantasia dos ecologias radicais, ela veio pra ficar. Eu fiz agora um trabalho paralelamente, eu estava acompanhando, por exemplo, os cinco dias mais quentes da história da humanidade aconteceram de 1990 para cá. Cada ano, um dia bate o recorde do dia mais quente. Acho que o ano passado ou esse ano é o ano mais quente da história, então isso aí não é por acaso. Agora, por exemplo, nessas encontros, nas COPs, esses encontros de cúpula, já está sendo colocado, pela primeira vez os grandes países estão fazendo plano. Até então era da boca para fora, agora estão fazendo plano de redução das emissões de monóxido de carbono, de dióxido de carbono, porque é uma coisa real. Nós temos o efeito estufa. Bom, é uma coisa positiva o efeito estufa, é o que mantém a Terra aquecida para que possa existir a diversidade, flora, fauna, etc. O efeito estufa é necessário, é a filtragem dos raios solares para manter o planeta aquecido. Só que com o uso intensivo de todas as coisas das quais faz parte o modo capitalismo de produzir, gasolina, carvão vegetal, petróleo, etc e tal, somado ao fato de que a existência das florestas neutraliza o efeito do gás carbônico, isso qualquer criança que estuda com um bom professor consegue entender, que a floresta é um suspiro para a fumaça, um suspiro para a poluição. Só que, ao mesmo tempo que se polui, que aumenta o índice de poluição de uma maneira insuportável, as florestas são dizimadas. Quer dizer, isso aquece o planeta, principalmente as grandes cidades. Tem lugares, por exemplo, que as pessoas, em alguns dias, precisam andar de máscara, porque o nível de poluição é muito grande. A própria China, que fez um processo de desenvolvimento rapidíssimo, mas chegou a um ponto em que as pessoas têm que andar mascaradas porque há um excesso. É provado que o planeta está aquecendo, é provado que isso gera mudanças climáticas, as geleiras lá estão derretendo. E Porto Alegre, por alguma razão geográfica, eu não seria a melhor pessoa para falar sobre isso, está no centro disso por uma série de peculiaridades. Então, no ano passado tivemos duas enchentes, uma mais ou menos e outra bem grande. Em 2015, teve uma enchente bem grande. Então, nós começamos a achar que vai acontecer uma coisa. Mas, por exemplo, o cidadão está vivendo a vida com todos os nossos problemas e tal, não somos nós, quem tem que entender isso é o poder público, que tem que colocar a questão ambiental como agenda principal. A gente vê o governador colocar: ‘ah, mas nós temos outras agendas’. Eu acho que, do jeito que estão as coisas, não tem outra agenda mais urgente, mais necessária e mais importante do que a agenda ambiental. Isso aí nós estamos perdendo, muito, muito, estamos perdendo órgãos, perdendo fiscalização, é uma sucessão de sucateamento dos órgãos encarregados. Por exemplo, agora nós estamos vendo, com toda essa cobertura que está tendo, a importância do pessoal da universidade, os caras que estudam isso, estão toda hora falando: ‘o negócio é esse’, ‘o negócio é esse’. E os governos não ouvem, preferem: ‘vamos ver como é que é isso’, ‘vou trazer uma consultoria não sei da onde’. Mas tem pessoas qualificadas aqui e são qualificadas até por causa da peculiaridade essa nossa Porto Alegre, da Região Metropolitana e de toda a Bacia do Guaíba. A Bacia do Guaíba atinge, pelo menos, um terço do Estado. Então, também esse negacionismo, que não é só de achar que não vai acontecer, mas também de não ouvir as pessoas que estudam isso.

Sul21 — Tu moras num bairro que foi inundado e teve que sair de casa. Como é que foi essa decisão? Como é que foi a tua saída? Como foi, de certa forma, virar um personagem das tuas histórias?

Rafael Guimaraens: Eu moro lá há 30 anos. Às vezes, chovia muito, a água ficava no leito da rua.

Sul21 — Primeiro, fala o bairro (risos).

Rafael Guimaraens: Menino Deus, Rua Peri Machado, mas todas aquelas ruas ali aconteceram a mesma coisa, Ganzo, Botafogo. Nunca tinha acontecido a água. Quando chovia muito, a água ficava ali no leito, passava um carro e molhava as pessoas, aquela coisa assim. Bom, aí começou a chover muito e começou a vir a água dos bueiros, a água saltando dos bueiros. A gente custou um pouco para se dar conta disso. Daí decidiu sair. O nosso edifício tem dois blocos, duas portas, a nossa, um pouco mais baixa, a água já estava alcançando. São três degraus, mas o outro ainda dava para sair. Bom, vamos sair amanhã. Tiramos o carro, colocamos num lugar seguro, e vamos sair amanhã. Só que quando fomos sair amanhã, a água estava na cintura. Saímos porque faltou luz, ia faltar água, saímos com os computadores, carregando uma muda de roupa.

Sul21 — A pé?

Rafael Guimaraens: A pé, não sabendo bem aonde estava pisando, aqui é calçada. Mas tu escorrega ali e cai o computador, seria uma tragédia maior. Nós saímos, dobramos na Ganzo, mas ali na metade da quadra já tinha diminuído. Na esquina com a Múcio Teixeira, já estavam as pessoas com o seu cachorrinho, carrinho de bebê. Uma coisa meio surreal, parece que a gente está num pântano, de repente está numa cidade. Saímos, ficamos duas semanas fora, super bem abrigados no apartamento de uma amiga, mas já começamos a receber mensagens de que no nosso depósito, que fica na Voluntários da Pátria, a água estava subindo muito rápido. A área foi evacuada, os funcionários do depósito, Defesa Civil: ‘vamos embora, tem que ser agora’ e tudo mais. Tanto que o pessoal do depósito não pode nem levar os computadores de tão rápido que teve que ser essa evacuação. Chegou o ponto que apareceu uma foto da fachada do depósito, estava com 2 m de água e o nosso depósito é no térreo. Bom, não vamos nem nos iludir de que não. Realmente, quando foi liberada a área, foi um quadro da dor. Mesmo estando preparado, tu chega lá, os armários que estavam todos bonitinhos com as caixas de livros, tudo caído. As prateleiras de MDF caíram todas. Até se conseguiu salvar alguma coisa, mas muito pouco. E não era água, era essa lama. Andando ali até chegar, como as ruas estavam intransitáveis, comecei a olhar aquele bairro, não falo que parecia estado de guerra porque os prédios estavam de pé, parecia uma coisa como uma cidade fantasma, uma cidade em que a população teve que ir embora.

Sul21 — Foram 12 mil livros perdidos?

Rafael Guimaraens: Doze mil livros, isso que nós somos uma editora pequena, mas teve situações bem mais dramáticas do que a nossa. E toda aquela região, as ruas enlameadas, montanhas de entulhos, poucas pessoas ainda tirando as coisas de casa para começar a faxina, toda aquela tristeza. Isso que eu digo, ninguém pode impedir que chova, ninguém pode impedir que chova nas nascentes dos rios, mesmo depois, o fenômeno que aconteceu em 1941 e agora que é vento sul, empurra é água de volta, ninguém pode impedir isso, mas a estrutura de proteção tinha que estar preparada para isso e os processos de auxílio também. Tem que haver uma preparação, uma ação forte da Defesa Civil, tem que haver espaços de acolhimento já definitivos, tem que haver alguma situação de abastecimento das pessoas, isso é uma coisa que foi muito problemática e só não foi mais problemática porque houve uma rede solidária muito grande, uma rede horizontal de apoio, que também no meio de tudo isso a gente tem um alento, principalmente de jovens. Eu fui, por exemplo, no abrigo ali no Cete e a pessoa que estava cuidando das entradas era uma menina muito jovem ainda, estava ali com o crachá de voluntária. São coisas que animam a gente e tal. Mas a coisa não precisava ter chegado a esse ponto. As populações da Cidade Baixa e do Menino Deus foram atingidas de uma maneira absurda por aquela casa de bombas das Cuias, que ninguém sabe até agora o que aconteceu, ninguém sabe quem é que mandou desligar, quem não mandou, é um mistério e tal. Isso também, às vezes, a gente como jornalista cobra, ‘ninguém vai dar uma explicação sobre essa casa de bombas misteriosa, por que que ela parou de funcionar?’ Então, essa que é a revolta da gente. Voltando à pergunta, primeiro dá uma sensação de perplexidade, coisa que tu nunca antes tinha pensado que fosse acontecer contigo. Depois, em seguida, uma condição de impotência, está acontecendo e tu não pode fazer nada. E a terceira, aí sim, a revolta, quando tu para pensar a revolta é muito grande, o descaso. Isso que eu falo em relação à cidade. Nós tivemos já períodos na história da cidade que essas coisas eram cuidadas, tanto que Porto Alegre foi distinguida como uma cidade com a melhor qualidade de vida do Brasil. Uma cidade que, mesmo mundialmente, foi considerada uma cidade onde a população tinha vez. Eu me lembro, a minha filha foi morar no exterior, ela dizia que era de Porto Alegre, mesmo as pessoas que não são tão enfronhadas na política tinham ouvido falar de Porto Alegre. Então, a cidade teve esse momento assim onde a população era cuidada, onde havia um comprometimento com a qualidade de vida das pessoas e isso foi se perdendo ao longo do tempo, ao longo das administrações que tinham outras agendas, para usar a palavra da moda. Essa é uma perda muito grande que nós tivemos, eu, como morador de Porto Alegre, isso me incomoda profundamente, porque eu já vivi outras situações muito mais favoráveis.

Sul21 — Quais que tu diria que são as memórias que tu vai tirar desse período, desse maio de 2024, que tu acha que vão ficar marcadas para sempre na tua mente? E pode ser qualquer coisa que tu viu nesse mês.

Rafael Guimaraens: Tem uma coisa que eu acho muito simbólica, quando eu falei para vocês que eu fui ao depósito, aquela região do bairro São Geraldo, Navegantes, eu saí muito deprimido lá do depósito. Fiquei olhando os caras conversando, os caras trabalhando para limpar tudo. Não só o nosso, todos os compartimentos. Tinha um, por exemplo, de erva mate, que estava lotado. Daí, eu passava pelas ruas e de dentro do carro fotografava. Daí, eu vi na Avenida Brasil, tinha um entulho e bem na frente do entulho, parecia até uma cena montada, tinha um troféu. Troféu desses, tacinha de campeonato, imagino que de futebol, essas que a gente compra ali na Galeria Chaves. Eu desci do carro, eu disse: ‘mas não é possível’. Aí eu fotografei o troféu com um monte de entulho na volta. Até perguntei ali para o pessoal, eu pensei que tinha que contar a história desse troféu, mas tinha duas pessoas trabalhando e nenhuma delas sabia. Era na frente de um bar chamado Bar Perfeito, até isso. Então, eu fiquei pensando nisso, as perdas que as pessoas tiveram, que são as perdas objetivas. A pessoa perdeu a cama, perdeu o armário, perdeu a televisão, a geladeira. Claro que isso é muito significativo, às vezes não é só um objeto, mas é uma coisa que é uma conquista. Para uma pessoa que tem um salário menor, comprar uma geladeira bacana é uma conquista. Mas também a memória essa que é a tacinha. Aquela taça ali, foi alguém que se puxou para ganhar, alguém se dedicou a isso. Então, aquele troféu está carregado de uma memória que foi importante para alguém conquistar aquilo. Ele simboliza o momento de conquista na vida de uma pessoa, de um time, sei lá, mas que está ali e ele vai se lembrar para sempre, cada vez que ele ver a taça. E outras coisas. Por exemplo, o Schroeder, nosso amigo cartunista e jornalista, ele falou que perdeu todos os originais dele. Claro, ele tem cópia, tem cópia em arquivo, ele mesmo fala isso, mas o original tu traçou aquilo ali. Então, várias coisas que se perdem. Fotografias, por exemplo. Fotografia é um estimulador da memória quase insubstituível. Esses dias eu vi uma foto minha e eu só lembrei daquele evento que eu estava ali por causa da foto, senão não ia lembrar nunca mais. Então, a foto é um motor de memória. Fotografia do primeiro aniversário do filho, do casamento, da formatura, até o próprio diplomas às vezes estava guardado numa caixa e foi embora. Tudo o que a gente chama de memorabilia. O que as pessoas perderam sob esse aspecto. Por exemplo, a geladeira, talvez ele compre outra, um pouco pior, talvez até um pouco melhor. A TV.

Sul21 — Sim, não tem essa carga simbólica de memória, não está atrelada.

Rafael Guimaraens: Isso é doloroso para mim. Eu que não perdi nada, digamos assim, mas como eu trabalho com isso, trabalho com questões de memória, essas coisas são muito importantes porque são pedaços de vida. O ser humano, falei esses dias, nós temos dentro de nós um processo de Alzheimer muito pequeno, mas que, se a gente não fica alimentando a memória, esquece. Esquece. Às vezes, por exemplo, para lembrar de coisas da minha infância, tenho que ligar para o meu irmão, para o Dudu, pra ele me lembrar, me certificar ou me corrigir, ele tem uma memória privilegiada. Então, a memória é uma coisa importante, são pedaços de vida e essas coisas se perderam muito. Claro, tem gente que morreu, tem coisa pior, as pessoas adoeceram, as pessoas perderam empregos. Claro, tudo isso aí é drama, não estou minimizando. Mas, nesse momento, que a gente começa a pensar de uma maneira mais ampla, essa coisa das perdas da gaveta, que estavam na caixa de sapato, essas coisas têm me tocado muito, a partir daquele troféu ali.

Eu falei também com uma menina que é escritora, ela mora em Canoas, a região dela foi muito atingida, ela disse também que ela observava que as pessoas botavam as coisas fora, depois se arrependiam. ‘Aquela cadeira eu não posso, porque não sei o quê’. Então, até isso, fica essa coisa mexendo com a vida das pessoas. Nesse momento, é isso. É claro que eu vou guardar essa memória, a gente também tirou umas fotografias, vou me lembrar de uma maneira muito dramática de tudo isso. E, às vezes, a gente não consegue sentir bem a dimensão, a gente vai sentindo com o passar do tempo.


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