Opinião
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16 de julho de 2023
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14:20

Extrema-direita, armas, homicídios no Brasil e ‘Cabaré Eldorado’ (por Milton Pomar)

Cabaré Eldorado: o alvo dos nazistas (Divulgação)
Cabaré Eldorado: o alvo dos nazistas (Divulgação)

Milton Pomar (*)

Assistir o documentário da Netflix “Cabaré Eldoradochega a ser torturante. As imagens e os fatos relatados fazem lembrar o tempo todo o risco que ainda há, no Brasil, Estados Unidos (EUA), e em outros países, de tomada do poder pela extrema-direita, do jeito que ela está acostumada a fazer: pela força das armas e a propaganda.

Sim, há semelhanças importantes, entre a Alemanha dos anos 1920-30 e o Brasil atual: milhões de pessoas empobrecidas e ideologicamente insatisfeitas e frustradas; propaganda mentirosa enviada e compartilhada diuturnamente por milhões de pessoas; lideranças carismáticas de extrema-direita com muito dinheiro; e dezenas de milhares de ex-policiais militares – a maioria deles em empresas de segurança e/ou em milícias –, policiais militares, e militares (da ativa e da reserva), bem armados e loucos para agir da maneira que foram treinados para fazer.

Estamos falando de pelo menos três milhões de armas (2022) no Brasil de particulares, inclusive as classificadas  como de “grosso calibre”, “fuzil de assalto” e “semiautomáticas” – estas em mãos de “CACS” (pessoas que têm o absurdo legal de possuir dezenas de armas e milhares de munições, em tese para caçar, praticar tiro ao alvo, ou apenas colecionar). 

Tantas armas em mãos de tão poucos têm relação direta com o fato de que o Brasil é o campeão mundial de mortes por armas de fogo, apesar de ter a sétima maior população: em 2020, ocorreram 47,7 mil homicídios (71% por armas de fogo) no País, média de 22,5 homicídios por 100 mil habitantes (ou 23,8, dada a diferença entre as estimativas populacionais e o Censo 2022) . A Índia, maior população mundial, teve 40,6 mil homicídios (média de 2,95); a China, segunda maior, 7.525 (2018), média de 0,53; EUA, terceiro maior, 21,6 mil, média de 6,52.

Já comparamos anteriormente o Brasil e os EUA nessas questões e no enfrentamento da pandemia também, no intuito de demonstrar a relação entre esses resultados nefastos e o fato de serem de extrema-direita os presidentes dos dois países na época. Apesar dos dois ex-presidentes agora responderem várias ações na Justiça, nada impede que outras lideranças assumam seus lugares nos dois países e conduzam novamente a extrema-direita ao poder. 

“Cabaré Eldorado” nos lembra ainda a facilidade com que, na Alemanha sob o governo nazista, a polícia e outros órgãos estatais enviavam milhares de pessoas, pelas mais diversas razões, para campos de concentração – sim, eles já existiam no início de 1933 (em Dachau, Oranienburg, Osthofen e Breitenau), e sua construção e funcionamento serviram de “piloto” dos campos de extermínio construídos nos anos seguintes. No início, eram levados para esses campos quem discordava politicamente dos nazistas, de social-democratas a comunistas. Em seguida, também portadores de deficiências, homossexuais, judeus e quem mais se diferenciasse dos padrões” (de “perfeição física e mental, gênero, sexual) estabelecidos como “ideais” pela ideologia nazista. 

Esse documentário da Netflix vai fundo no que o filme “Cabaré – adeus Berlim” (1972, com Liza Minelli no papel principal) mostrou apenas como pano de fundo: a violência dos paramilitares, integrantes da SA (“Sturmabteilung”, em tradução literal “divisão de tempestade”), comandada por Ernst Rohm, amigo de Hitler, mas com ambições políticas próprias. Violência que rivalizava com a da SS (Schutzstaffel), comandada por Heinrich Himmler, e a da Gestapo, criada por lei em abril de 1933 por Hermann Goring. 

Um dos méritos de “Cabaré Eldorado” é justamente o de jogar luzes sobre os anos 1920-30, da ascensão do nazismo, porque o pouco que se sabe da extrema-direita alemã é o que é mostrado em filmes sobre a segunda guerra mundial (1939 a 1945). Apresenta a trajetória, o processo político e ideológico conduzido pela extrema-direita alemã (e austríaca) que desembocou na maior devastação humana – em todos os sentidos –, realizada em apenas seis anos, por seres também considerados humanos até então. E não foi diferente o processo dos seus resultados: violência, terror, mortes e destruição.

Resultado de disputas políticas ferozes, dos quais o desfecho mais conhecido é o da “noite das facas longas”, o massacre de dezenas de opositores, inclusive oficiais e o próprio Ernst Rohm, comandante da SA, em 30 de junho e 1º de julho de 1934, pelas tropas SS comandadas por Himmler, com a participação pessoal de Hitler, que queria fidelidade e obediência total a ele. Essa disputa política sanguinária da extrema-direita alemã da época utilizou como argumento principal a homossexualidade notória de Ernst Rohm e auxiliares próximos, denunciados em publicações e em charges de jornais. Foi assim que a SA, a “tropa de assalto” dos nazistas, então com possíveis dois milhões de homens, deixou de ser milícia paramilitar com comando e projeto político próprios e passou a integrar a máquina de guerra que entraria em ação em 1939. Após eliminar seus opositores políticos do momento e com isso simultaneamente garantir o apoio dos generais e do empresariado, Hitler assumiu-se “juiz supremo” da Alemanha, em discurso pronunciado dia 13 de julho de 1934, na sede do Reichstag.

O gosto por armas, violência e mortes que caracteriza a extrema-direita daquela época é igual ao que predomina na do Brasil e EUA, assim como o ódio à Cultura – e a livros em particular –, à Educação crítica e a tudo e a todos que sejam “diferentes”. Prova disso é que o maior atentado terrorista nos EUA, antes do fatídico 11 de setembro, foi cometido por um ex-militar norte-americano de extrema-direita, apaixonado por armas, em 19 de abril de 1995, em Oklahoma City, causando 168 mortes imediatas e uma devastação impressionante. 

Outra característica letal da extrema-direita é a misoginia, tornada pública pelo ex-capitão ex-presidente do Brasil reiteradas vezes. Talvez a misoginia, o hábito de tentar resolver as coisas com violência e o acesso fácil a armas expliquem o aumento de 31% de homicídios de mulheres no Brasil, entre 1980 e 2019, conforme estudo realizado por pesquisadoras(es) da Fiocruz.

 

Há outros aspectos históricos importantes no documentário, como as cenas dos ataques às lojas, residências e sinagogas dos judeus e da frenética publicação de jornais. Mais o relato das pioneiras cirurgias de mudança de sexo. 

Infelizmente, os quase 80 anos do final da II Guerra Mundial geraram uma situação de desconhecimento total da grande maioria das populações do Brasil, EUA e de muitos outros países hoje com a extrema-direita na iminência de tomar o poder, do que fizeram, em seus próprios países e em quase todo o mundo, no período 1920-1945, não apenas a extrema-direita alemã, mas também a italiana, a espanhola e a japonesa. 

Assim, por escancarar o que ocorreu há mais de 80 anos, assistir “Cabaré Eldorado” tornou-se obrigatório, para “cair a ficha” do que a extrema-direita faz e continuará fazendo – demonstrado recentemente nos EUA e no Brasil: em 19 de janeiro de 2020, em Richmond, capital da Virgínia, a 180 km da sede da CIA, cerca de 22 mil trogloditas ostensivamente armados (muitos deles com fuzis) protestaram na Assembleia Legislativa contra o projeto de lei do governo que restringia a venda e a posse de armas de fogo. É certo que esperavam 100 mil (armados) no protesto, mas a quantidade que participou equivale ao efetivo de quase 30 batalhões do Exército. 

 

E em 8 de janeiro de 2023 o mundo assistiu a barbárie promovida pela extrema-direita brasileira nas sedes dos Três Poderes em Brasília. Com um detalhe, mais que revelador: sem levar um único tiro dos militares e policiais militares responsáveis pela guarda do Palácio e dos demais prédios públicos invadidos, saqueados e depredados. 

(*) Professor, geógrafo e mestre em “Estado, Governo e Políticas Públicas”

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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