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26 de abril de 2024
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18:02

Secretário admite ‘derrota’ da proteção social, mas nega irregularidades em pousada incendiada

Por
Luís Gomes
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Pousada que pegou fogo na Capital não tinha alvará | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Pousada que pegou fogo na Capital não tinha alvará | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A reportagem do Sul21 acompanhou na manhã desta sexta-feira (26) o rescaldo do incêndio que deixou 10 pessoas mortas e 13 feridas em uma pousada na Av. Farrapos, em Porto Alegre. Ao longo da manhã ouvimos o relato de sobreviventes (ler aqui) e acompanhamos o trabalho das autoridades na resposta à tragédia e para identificação das vítimas e causas do incêndio. Presente no local, o secretário do Desenvolvimento Social e coordenador da Política de População de Rua da Prefeitura de Porto Alegre, Léo Voigt, admitiu que a tragédia significava uma “derrota” para os serviços de proteção social, mas negou irregularidades, como a falta de Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI) e alvará adequado para a prestação do serviço, que foram apontadas pelo Corpo de Bombeiros.

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“É uma tragédia para todo mundo, para aqueles que morreram, para aqueles que estão feridos, para os familiares. Mas também é uma tragédia para todos os serviços de proteção, porque a nossa missão é cuidar e proteger as pessoas. E nós estamos tendo aqui uma derrota, estamos tendo aqui uma perda e uma falha do sistema de proteção. Não sabemos a causa do incêndio, há uma ou duas hipóteses diferentes, mas a verdade é que nós perdemos 10 pessoas que morreram, duas estão gravemente hospitalizadas, provavelmente com risco de vida porque isso é inalação, e algumas dessas pessoas, inclusive, estão sob o abrigo da Assistência Social”, afirmou o secretário.

Pela manhã, o comandante do Batalhão Especial de Segurança Contra Incêndio do Corpo de Bombeiros, tenente-coronel Joel Dittberner, apontou problemas com a situação do prédio, que foram confirmados pelo comandante do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros, tenente-coronel Lúcio Junes da Silva, que atendeu a ocorrência. No final da tarde, o Corpo de Bombeiros Militar do RS divulgou uma nota em que esclarece que não foi protocolado PPCI nem emitido o respectivo alvará para atividade residencial, pousada ou hotelaria para o imóvel que pegou fogo.

“Em 2019, houve uma aprovação de projeto para utilização como escritórios, cabendo ao proprietário, à época, executar as medidas de proteção contra incêndio e solicitar a vistoria ao CBM, o que não foi feito. O Corpo de Bombeiros Militar destaca que toda e qualquer alteração de finalidade do imóvel requer o protocolo de um novo PPCI para que seja analisado. Enquanto não for feito, o empreendimento encontra-se em condição irregular”, diz a nota.

 

Bombeiros vistoriam o prédio após incêndio | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Questionado sobre a situação, o secretário Léo Voigt explicou que a rede municipal de abrigamento tem cerca de mil vagas para a população em situação de rua, das quais 320 são em pousadas, o que inclui mais de 10 unidades da rede Garoa. O prédio da Pousada Garoa que sofreu o incêndio tinha 30 vagas, das quais 16 eram compradas pela Prefeitura de Porto Alegre. Voigt diz que a última licitação para a compra de vagas é recente, de dezembro de 2023 — tratou-se de renovação de contrato –, e que a documentação exigida por lei foi “plenamente entregue”.

“Plenamente regular, segundo a legislação. Alvará, PPCI, tudo regular, entregue na documentação, em primeiro lugar. A pergunta de fiscalização tem que ser dividida em duas. Existe uma fiscalização de PPCI, que é responsabilidade dos Bombeiros, e existe uma fiscalização de prédios, que é do sistema de monitoramento de prédios da cidade. Nós fazemos a fiscalização das pessoas abrigadas e a acomodação delas. E isso era feito com regularidade. As nossas equipes entram nessas pousadas diariamente, porque elas estão acompanhando as pessoas que estão lá dentro, estão trazendo novas e estão buscando as que evadiram. Primeiro, para poder disponibilizar para os próximos essa vaga. Segundo, para poder saber quem evadiu, porque evadiu e fazer busca ativa para onde foi. Nós monitoramos essa população”, disse o secretário.

Ele também afirmou que não há nenhuma denúncia atual contra os serviços assistenciais da Prefeitura. “Ao contrário, de modo geral, todos os serviços são elementos de segurança, na proteção, no acompanhamento. Aqui é uma tremenda surpresa. Este local, inclusive, é uma das raras pousadas que temos que tinha portaria, tinha porteiro. Então, ela tinha até uma situação diferenciada das demais. Nós não temos nenhuma denúncia e, mediante denúncia, averiguamos imediatamente. Recebi ontem uma denúncia de que a marquise de uma das pousadas Garoa estava suja, ontem recebi essa denúncia e ontem foi limpa. Nós temos pronto atendimento e temos uma relação de diálogo com esses proprietários e com as ONGs que atendem essa população muito franca, de parceria, tanto que nós não temos convênio, nós temos de parceria com estas organizações”, afirma.

No entanto, a presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa, deputada Laura Sito (PT), pontuou, ao visitar o local, que vem acompanhando o tema e tomando conhecimento de irregularidades.

“Isso não é um tema novo, quando eu era vereadora de Porto Alegre, nós já tratamos isso em algumas audiências públicas na Câmara. Tivemos uma cena em 2022, que resultou numa morte, então é uma fragilidade da política socioassistencial do município que a gente aponta há algum tempo. Agora temos que apurar as responsabilidades”, diz. “[No âmbito da CCDH] Já tinha se tratado de maneira mais ampla a questão da população em situação de rua de Porto Alegre. São diversas, na verdade, as questões que são trazidas, de violências, de próprio desentendimentos, muitas vezes entre moradores desses albergues, dificuldades de conseguir voucher, conseguem um dia, em outro não, é uma situação de insegurança”.

Laura informou que, na manhã desta sexta, a comissão oficiou o Ministério Público e o Tribunal de Contas para apurar as responsabilidades do incêndio. “É visível a fragilidade do contrato estabelecido pelo município de Porto Alegre no tema dos abrigamentos”, disse.

Ainda em fevereiro de 2022, quando também era vereador, o deputado Matheus Gomes (PSOL) oficiou a Fasc e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) para solicitar acesso aos contratos de prestação de serviços de hospedagem pela Pousada Garoa após receber relatos de irregularidades e de problemas nos locais em reuniões na Comissão de Direitos Humanos (CEDECONDH) da Câmara.

 

Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Ele lembra ainda que, em 2020, o Ministério Público já tinha notificado a Fasc e a SMDS para prestarem esclarecimentos sobre a situação da contratação das pousadas Garoa na Av. Benjamin Constante, nº 379, na e Rua Jerônimo Coelho, nº 277, ambas cadastradas à época no Programa Mais Dignidade. Na ocasião, a Fasc prestou esclarecimentos alegando que a rede “apresentou toda a documentação exigida pelo programa”. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) também foi instada a se manifestar, no que respondeu: “As acomodações são modestas sim, uma vez que englobam no valor pago pelo programa água, luz e o aluguel em si. Além disso, as pousadas possuem alvará de funcionamento, o que por si só, nos resguarda no que diz respeito ao funcionamento das mesmas”.

Diante do retorno da Prefeitura, o MP encaminhou pelo arquivamento em 2020. Nesta sexta-feira, a reportagem do Sul21 questionou o MP sobre o andamento de outras ações a respeito da fiscalização dos contratos, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

Durante a visita ao local do incêndio pela manhã, a reportagem do Sul21 ouviu relatos de sobreviventes a respeito de uma série de precariedades do prédio incendiado e de um imóvel vizinho, onde também opera a Pousada Garoa. Um destes depoimentos de um morador da pousada apontou uma situação de total insalubridade.

“Eu fiquei quatro dias e não consegui permanecer no quarto, me coçava as pernas e parecia que me arrancava pedaço, por causa das baratas e dos percevejos. Imagina tu entrar dentro dum alojamento inteiro e estar infestado de barata. Tu vai acessar a cozinha, é barata por cima do fogão, em cima da pia, dentro do banheiro, do quarto, por tudo. Se tu não botar tampa em cima da panela, não consegue fazer uma comida. É uma situação desumana”, disse Marco Aurélio de Souza, 39 anos. “A única pousada que eles dão condição para morar é na Benjamin Constant, que é a matriz da Garoa. É o único lugar que tem um quarto adequado, não tem barata, não tem rato, não tem bicho. O restante das pousadas, só muda o endereço, são todas iguais. A fiação é toda enjambrada, uns fiozinhos finos. Eu já trabalhei com elétrica, como é que tu vai uma colocar uma fiação com uns cabinhos bem fininhos. Qualquer curto que der, pega fogo no quarto.”

Coordenador da Defesa Civil da Capital, Evaldo Rodrigues relatou pela manhã que o primeiro trabalho da instituição foi recolher os corpos das 10 pessoas que vieram a óbito, dar encaminhamentos aos feridos e destinação aos moradores das pousadas atingidas. Posteriormente, disse que estavam aguardando a conclusão da perícia para as causas do incêndio. No entanto, confirmou que a maioria dos corpos foram encontrados em posições que indicam que as vítimas estavam dormindo. “Estavam todos dormindo e tivemos óbito nos três pavimentos. Tem informações que teria começado no primeiro pavimento”, disse.

Por sua vez, Evandro Gomes da Silva, diretor-adjunto do Departamento de Criminalística do Instituto-Geral de Perícias (IGP) destacou que ainda não era possível informar as causas que levaram ao incêndio. Ele explicou que o primeiro trabalho de perícia feito foi de pronto atendimento para liberação dos corpos do local. Na sequência, deu-se início ao trabalho de Engenharia Legal, para tentar definir causas e foco inicial. “Nesse momento, não tem como afirmar nada. É muito precoce falar qualquer tipo de coisa nesse momento.”

 

| Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Procurado pela reportagem durante a tarde, o IGP informou que a perícia ainda prosseguia no local, mas que já haviam sido identificados cinco corpos: quatro homens e uma mulher. A identidade das vítimas não foi divulgada.

Evandro ainda confirmou que o local tinha muita madeira — fator apontado para o fogo ter se alastrada rapidamente –, mas disse que cabia ao poder público municipal determinar se o espaço era adequado ao serviço prestado.

A deputada Laura Sito ponderou, pela manhã, que muitas pessoas estavam procurando a Comissão de Direitos Humanos em busca de informações sobre as vítimas.

A respeito da identificação, o secretário Léo Voigt disse, pela manhã, que ainda não era possível dizer se as vítimas eram abrigadas ou não pela assistência social do município. “Nós não sabemos neste momento quantos estiveram presente nesta noite dormindo aqui. Essa população é bastante volátil, uma noite dorme aqui, outra noite dorme lá, então nós não sabemos exatamente quais que estão sobre o abrigo da Assistência Social e do benefício de pousada”, disse.

Ele explicou que a compra das vagas em pousadas é um benefício disponível para pessoas em situação de rua cadastradas no serviço de assistência social do município. “A abordagem socioassistencial conversa com a pessoa de rua e ela tem oito ofertas diferentes para fazer. Ela vai fazer a oferta conforme o perfil da pessoa, mas também conforme a pessoa aceita. Se nós oferecemos um abrigo, ela não aceita, nós podemos oferecer um albergue. Se não aceita o albergue, poderemos oferecer uma pousada. E aí é feita uma entrevista, é feito diagnóstico e é feito um pacto de restauração e recuperação de vínculos com essa pessoa. Então, as pessoas que estavam aqui têm diagnóstico, são conhecidas, estavam num processo de transição das ruas para a proteção”, afirmou.

 

| Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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