Internacional
|
28 de fevereiro de 2022
|
09:01

Rússia alertou que linhas vermelhas estavam sendo cruzadas, diz russóloga

Por
Luís Gomes
[email protected]
Delegações da Rússia e da Ucrânia se reúnem nesta segunda-feira na região de Gomel, em Belarus, para negociar cessar-fogo | Foto: Leila Turayanova/TASS
Delegações da Rússia e da Ucrânia se reúnem nesta segunda-feira na região de Gomel, em Belarus, para negociar cessar-fogo | Foto: Leila Turayanova/TASS

O conflito armado entre Rússia e Ucrânia entra, nesta segunda-feira (28), no seu quinto dia após a invasão das tropas russas. Neste dia, está sendo realizada a primeira rodada de negociações entre os dois países, em Belarus. A paz, no entanto, parece ainda estar muito distante em razão das diferenças entre as partes. Para entender as causas da guerra e o que poderia levar ao seu encerramento, o Sul21 conversou no último sábado (25) com Larlecianne Piccolli, doutora em Estudos Estratégicos Internacionais e Diretora de Pesquisa do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (Isape), que pesquisa especificamente o tema das políticas de defesa e das capacidades nucleares da Rússia.

Larlecianne avalia que há uma guerra de narrativas envolvendo o conflito, mas que é preciso ir além delas para entender as causas que levaram à guerra. “A gente tem uma guerra de narrativas e o que se vê, principalmente, é uma russofobia, mas as pessoas não param para dar um passo atrás e analisar quais são as peças desse tabuleiro, como elas se movimentam, quais são os interesses, que precisamos conhecer para entender quais foram as falhas que levaram até à ação militar da Rússia na Ucrânia”, diz.

A pesquisadora lembra que, em 18 de novembro do ano passado, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou em discurso que o Ocidente e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estavam se aproximando das “linhas vermelhas” russas e que não estavam respeitando. “Estamos constantemente expressando nossas preocupações sobre isso, falando sobre linhas vermelhas, mas entendemos que nossos parceiros – como posso colocar levemente – têm uma atitude muito superficial em relação a todos os nossos avisos e falas sobre linhas vermelhas”, disse Putin naquele discurso.

Larlecianne Piccolli conversou com o Sul21 sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia | Foto: Arquivo pessoal

Larlecianne diz que essas “linhas vermelhas” que não poderiam ser cruzadas, na visão da Rússia, precisam ser entendidas a partir de questões políticas e estratégicas. “A questão política que está envolvida diretamente aí é o avanço da Otan para próximo da fronteira da Rússia e especificamente a entrada da Ucrânia. Mas também da Geórgia anos atrás foi um ponto de muita discussão desses países. Mesmo que a Rússia já faça fronteira hoje com países da Otan, como os estados bálticos, integrar a Ucrânia à Otan, para os russos, é uma forte ameaça para a sua segurança nacional. E a Rússia vem colocando isso numa série de documentos, não é algo que eles falaram na semana passada. Desde os anos 2000, quando a Rússia começa a ter um posicionamento mais assertivo ou mais pragmático dentro do sistema internacional, ela diz: ‘olha, nós queremos ser ouvidos, nós estamos hoje numa arena internacional que é multipolar e policêntrica, não há mais espaço para apenas um país dando as ordens. A Rússia vem atualizando todos os seus documentos de segurança e neles vêm mostrando um crescente descontentamento com as políticas do ocidente para com os interesses russos”.

Ela destaca que a entrada de um País na Otan significa que, paulatinamente, ele passará a contar com uma estrutura militar para receber bases da organização, o que a Rússia considera uma ameaça iminente. “Se a gente pensa em toda uma lógica nuclear, digamos assim, o que estabelece a estabilidade estratégica entre os países é ainda a lógica de dissuasão nuclear estabelecida na Guerra Fria. E qual é essa lógica? Eu não ataco o meu oponente porque eu sei que, se atacá-lo, vou sofrer um ataque retaliativo de igual ou maior intensidade. E, então, fica estabelecida essa lógica dissuasória. Só que, se analisarmos essa maior e constante aproximação da infraestrutura militar da Otan para as fronteiras da Rússia, essa lógica dissuasória começa a cair por terra. Porque, quando ocorre um ataque, precisa de um tempo de resposta para organizar as forças retaliativas. Quanto mais próximo das fronteiras, mais curto é o espaço de tempo que o oponente vai ter de resposta, ao ponto de não ter capacidade de efetuar um ataque retaliatório. É isso que a Rússia diz que, se colocadas bases militares da Otan em território ucraniano, vai acontecer e vai ocorrer uma quebra geral do que se conhece como estabilidade estratégica. Uma maior proximidade desses sistemas ofensivos ou defensivos faz com que essa vulnerabilidade aumente a ponto da Rússia não ter uma capacidade de retaliação. Então, tem todo esse escopo estratégico que está por trás”, explica.

A russóloga pontua que outro elemento que torna mais crítica para a Rússia a entrada da Ucrânia na Otan, em comparação com outras nações, são os laços históricos entre os dos países. Ela lembra que a capital ucraniana, Kiev, é o território em que se originou a Rus de Kiev, ou Rússia Quievana, confederação de tribos eslavas que surge no século IX e daria origem ao Império Russo.

O governo russo, os bancos do país e seus principais bilionários, que são importante base de sustentação de Putin, vêm sofrendo sanções econômicas da União Europeia e dos Estados desde que a Rússia anunciou o reconhecimento das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, em 22 de fevereiro, movimento que prenunciou a guerra. As ações vêm aumentando gradativamente desde então, com a perspectiva de colapso do rublo russo nesta segunda-feira (28). A intenção das potências ocidentais é que o colapso econômico force a Rússia a recuar.

Diante do cenário econômico esperado, a pergunta que fica é: o que a Rússia quer ganhar com a guerra? Larlecianne diz que é difícil fazer um exercício de previsibilidade, mas que pode se basear nos pronunciamentos e documentos oficiais do governo russo. “O governo diz que, desde o início da incursão, ele não quer ocupar a Ucrânia e que a ação militar está focada em tomar a capital Kiev e forçar o governo ucraniano à mesa de negociação ou a própria derrubada do governo. Mas, se for à mesa de negociação, que seja atendendo as demandas russas, porque até agora todas as tratativas diplomáticas que foram levadas a cabo simplesmente ignoraram ou não os ouviram com a atenção que eles gostariam de ter sido ouvidos. O que se vê é que essa ação tem um objetivo político claro que é essa derrubada do governo e sair de lá com um acordo que coloque limites a essa expansão da Otan. Quer dizer, não se trata apenas da questão da Ucrânia, transformar a Ucrânia em um território neutro e, como eles falam, desmilitarizado”.

A pesquisadora compara a situação com a figura de um “algodão entre cristais”, que é usada para se referir à colocação do Uruguai entre Brasil e Argentina para segurar conflitos na política externa dos dois países. O objetivo russo, para ela, seria justamente que a Ucrânia fosse esse algodão entre cristais, esse estado neutro, entra ela e os países membros da Otan.

“Esse é o objetivo de Moscou hoje, para isso eles estão levando a cabo militar que, até onde se tem informação, não está sendo utilizada a força total da Rússia, porque estamos vendo uma resistência bastante grande do exército ucraniano. Daí se questiona se eles estão conseguindo resistir ou se os russos não estão indo com tanta força. Frente a essa resistência, os russos vão começar a ser mais ofensivos para conseguir fechar o cerco a Kiev e conseguir o objetivo que é tomar a Capital”, analisa.

Larlecianne avalia também que a Rússia acreditava numa ação rápida que pressionaria Kiev a ir para a mesa de negociação acordar um cessar-fogo em termos favoráveis. “Só que estamos vendo, pela parte do governo ucraniano, uma resistência muito grande e, se de fato for levada adiante, daqui a pouco vai entrar numa situação de sítio de Kiev e em uma situação de guerrilha, de atrito entre as forças russas, as forças ucranianas e até a população que está sendo armada com uma distribuição massiva de armas. Estamos vendo a população despreparada para fazer frente a forças profissionais, e isso vai inviabilizar uma ‘ocupação tranquila’ e vai resultar em um aumento muito grande no número de mortos”, diz.

A respeito das sanções econômicas, a russóloga avalia que o governo russo vem se preparando há anos para lidar com elas. Contudo, salienta que a guerra sempre traz elementos imprevisíveis, como o crescimento de protestos dentro da Rússia.

“Quando se fala em sanções econômicas, o discurso que vem de Moscou é ‘ok, nós temos um colchão de reservas e estamos preparados’. As sanções econômicas não vão acabar de imediato com o governo. O que se vê dentro da Rússia, agora, é que, como de costume, as manifestações contra o governo estão sendo repreendidas”, diz. “O que a gente sente é que existe uma pressão contrária agora ao governo, mas também existe um segmento da sociedade russa que está de acordo, que se sente inseguro, que não é contra o governo. Claro, vai depender de como se dá a evolução do conflito para saber efetivamente como vai fazer e se vai pesar a ponto de uma mudança de regime, de uma queda do Putin”.

Ela pondera ainda que banir a Rússia do sistema Swift, o que significa a exclusão do sistema bancário e é considerada uma das mais graves sanções econômicas possíveis, também trará repercussões econômicas para os países ocidentais. “Até que ponto o Ocidente vai estar disposto a sentir na carne e a sofrer essas consequências? Temos um mercado econômico muito interdependente entre os países. É importante lembrar que Rússia e Ucrânia são as principais exportadoras de cereais, de trigo, para a União Europeia, então isso também pode afetar a cadeia alimentícia. Enfim, é uma bola de neve”, diz.

Pondera também que há uma pressão de refugiados, que se soma a uma pressão que a Europa já vem recebendo em função das levas de refugiados oriundos das guerras do Oriente Médio. “É uma pressão muito grande para a União Europeia para a gente conseguir entender quais serão as medidas adotadas para se voltar a um certo nível de status quo, de estabilidade”, diz.

Por outro lado, a pesquisadora avalia que a Ucrânia esperava maior respaldo da Otan no conflito e avalia que um acordo de paz aceitável para o país só será possível se as potências ocidentais derem garantias ao país. “Eles estão recebendo aportes econômicos e financeiros para se manter, mas já foi dito que não haverá tropas para lutar contra a Rússia dentro do território ucraniano, a não ser que o conflito escale, transborde para além das fronteiras ucranianas e atinja algum país da Otan e, aí assim, eles vão agir. Vai ter uma mediação que inclua todas as forças, mas acredito que o principal ponto seja que se chegue a um posicionamento de uma Ucrânia neutra, que abra mão de sua entrada na Otan e que se consiga estabelecer um governo que atenda aos interesses de ambos, o que é difícil, porque acredito que os russos não vão abrir mão de um governo que favoreça a si”, diz.

Larlecianne destaca que, nos dias e semanas que antecederam o conflito, os EUA já vinham anunciando que um ataque das forças russas à Ucrânia era iminente, mas que, por outro lado, a comunidade internacional ainda tinha a expectativa em uma solução diplomática. “O Ocidente foi deveras arrogante na condução das negociações em não escutar os russos. Se tivesse prezado um pouco mais pelas demandas russas ou tomado algumas medidas para atendê-las, daqui a pouco não se teria chegado às vias de fato”, avalia.

Ela acredita que a condução do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, das negociações que antecederam o conflito pode ter sido influenciada por questões internas da política norte-americana. Levantamento do instituto Real Clear Politics, divulgado em 18 de março, apontou que a média de aprovação de Biden nas pesquisas estava em 41% e a desaprovação em 53%, patamares inferiores ao de seu antecessor, Donald Trump, que era aprovado por 41,4% dos norte-americanos e desaprovado por 53,9% com o mesmo tempo de mandato.

“Outra questão que eu levanto é que o Biden está com uma popularidade em baixa nos EUA, então também está se questionando um pouco sobre a condução, mas não podemos esquecer que recém se retirou tropas do Afeganistão num cenário que teve a retomada do poder pelo Talibã, então também tem essa questão da própria pressão doméstica. Ao meu ver, ficou claro durante todo o processo, ou ao menos nas entrelinhas, que o Ocidente não daria respaldo militar no sentido de tropas no chão dentro da Ucrânia”, diz Larlecianne, que mora atualmente nos Estados Unidos. “O Biden é claro, ele não vai agir com suas forças contra as forças russas, porque a gente sabe que isso pode escalar para uma situação bem mais complexa”.

A russóloga aponta que outra questão relevante para se compreender o conflito é a questão da dependência energética dos países da União Europeia em relação à Rússia. Ela pontua que, durante todo o processo de negociação que antecedeu o conflito, a Alemanha era um país que adotava uma postura reticente em impor demandas à Rússia pela dependência energética. Ambos os países são sócios do gasoduto Nord Stream 2, que está sendo construído para levar gás da Rússia para a Alemanha por meio do Mar Báltico.

No dia 22 de fevereiro, o governo alemão anunciou que estava suspendendo sua participação no projeto. Em 7 de fevereiro, Biden já havia dito que, em caso de uma invasão russa à Ucrânia, o gasoduto seria eliminado. “Nós vamos colocar um fim a ele”, disse Biden, na ocasião.

“Os EUA querem abocanhar um pedaço do mercado europeu de fornecimento de energia. Tem tudo isso em jogo também, como a própria questão das sanções econômicas, que tanto se fala em banir a Rússia do sistema Swift, que seria a sanção mais drástica. Eu sou um pouco cética com relação a sanções econômicas, a Rússia está sob sanções desde 2014 por conta da questão da Crimeia e vem conseguindo se manter no cenário internacional, diversificando parceiros, aproximando-se da China, e acredito que, frente às novas sanções econômicas, esse é o cenário que também vai se colocar”, diz.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora