Opinião
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28 de abril de 2022
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08:07

A explosão inflacionária e a n-ésima morte do monetarismo (por Marcelo Milan)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

A inflação volta a explodir no Bananil, aprofundando e consolidando o projeto de perpetuar o passado insuperável de desigualdade e pobreza, com programas de transferência via juros e preços mais altos. Felizmente o verão acabou e o gaspacho não fará falta, já que, entre o tomate e as trufas brancas, tive de deixar de consumir o pomo literalmente d’oro. Em março, o IPCA atingiu o maior percentual mensal dos últimos 28 anos: 1,62%. E acumulou 11,3% em 12 meses, o pior número da história em 20 anos. Quem era o Ministro da Fazenda 28 anos atrás, no mês de Março? Fernando Henrique “Boca de Sovaco” Cardoso? Não! Guido Mantega! Quem era o Ministro da Fazenda 20 anos atrás? Pedro Malan? Não! Mantega! Fernando II e Pedro Malanfaia jamais permitiriam este descalabro, pois conheciam as palavras sagradas das bíblias da economia. Apenas siga-se a vontade sacra do ‘mercado’ (corruptela para ‘ricos e poderosos’) que tudo se resolve. Basta notar como a inflação diminuiu e o crescimento aumentou quando Mantega saiu do Ministério durante as Presidências de Silva e Rousseff. Se há problemas econômicos no Bananil, a culpa é do genovês. Ou da Zélia.

Com o retorno de Mantega para restaurar a verdade macroeconômica após o golpe contra Rousseff (esta por tentar rebaixar a renda do financismo), tudo voltou a desandar, como indicam os dados de inflação, desemprego, saída de multinacionais, etc. (é só tirar Dilma que tudo melhora!). Este espaço tem defendido, há meses, a imperiosa necessidade de mudar os rumos da política econômica (não que isto tenha importância fundamental, pois a dinâmica central do capitalismo está no capital, não no Estado – mas a política econômica certamente tem alguma contribuição) e claro, também o Ministro. A manutenção de Mantega à testa do Ministério da Fazenda está levando a maioria sem acesso aos paraísos fiscais novamente à bancarrota dos sombrios anos Fernando I-Itamar-Fernando II quando Mantega assumiu o controle total da economia tupiniquim. 

É preciso criar um Ministério da Economia, unificando o Ministério da Fazenda, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, o Ministério da Indústria, do Comércio Exterior e dos Serviços e o Ministério do Trabalho, dando assim superpoderes para alguém que conheça de fato a teoria econômica segundo o Evangelho de São (Robert) Lucas. E então convencer um Chicago Boy como Paulinho Ipiranga Guedes ou Joca Levy a assumirem o comando da gestão macroeconômica e dar um basta ao amadorismo genovês (Nassif faz intriga com o Joquinha). E para assessorá-los, poder-se-ia convidar um Dream Team, isto é, quadros com imprimátur da Febraban para manter a tradição da porta giratória e os fundamentos macroeconômicos (pausa para gargalhar) em linha com as expectativas e interesses da finança. Aqui pode-se indicar a fina flor da economia ‘manualesca’, sempre ávida por um carguinho no governo. Esta malta sabe calcular matrizes jacobianas em segundos, na unha, e também otimizar matroides sem tirar o lápis do papel. 

Para o Banco Central (BC), agora finalmente independente, após livre imposição da ‘banca’, e liberto da tentação do demônio da inflação (se não fosse pelas atuais políticas desastradas de Mantega, teríamos deflação), sugerimos a manutenção de Bobby Fields Grandson. Ele não come na mão de banqueiro e nunca se surpreende com a inflação – donos de contas em paraísos fiscais também vão ao empório ou talvez até ao atacarejo, oras! O próprio Mantega se rasga em elogios ao Bob, maravilhado com o trabalho em equipe contribuindo para a alta inflação. Ou mesmo a volta de Ilan Golden Shower. Ambos quadros ‘técnicos’ (corruptela para menino de recado da banca) que conhecem o verdadeiro mercado de verdade, como mostra o desempenho macroeconômico imaculado nas gestões Silva e Rousseff (comparem as taxas de desemprego, o crescimento e a inflação). 

Tentar balizar a política macroeconômica com base nos manuais ortodoxos é fácil (tirando a parte de modelar decisões a partir das matroides em traço contínuo). Toda a palavra revelada está ali. Basta seguir os dez mandamentos do deus ‘mercado’ (ou seriam onze?). Sem esta balela de instituições, história, classes sociais, produção, tecnologia, dinheiro, conflitos, poder. Ah, o poder, este ilustre desconhecido da ortodoxia… no máximo conhecem o poder de poucas pobres pequenas (valei-me Cruz e Souza – não Souza Cruz) empresas capazes de rejeitar a ditadura do mercado concorrencial em determinar os preços pelo milagre da mão invisível… 

Um bom exemplo desta ficção é a justificativa para a tendência da inflação, que resultaria de problemas fiscais com a monetização dos déficits. A realidade rejeitou este monetarismo tosco inúmeras vezes. O monetarismo de porta de botequim, todavia, resistiu alguns bons séculos desde que David Hume lançou suas bases. E, como a banca e seu séquito de economistas pró-capital precisam desta ladainha para culpabilizar sempre o gov, ops, Mantega, por todos os problemas inflacionários (exceto aqueles causados pelos sindicatos), recuperaram-se as ideias de um economista sueco pré-Keynesiano chamado Knut Wicksell. A taxa de juros, naturalizada como deidade pelo novo monetarismo (É um preço! É um preço! Urram os prosélitos, com a saliva a escorrer pela gravata ou pelo colar de pérolas – algum manual embaixo do braço para manter a fé na palavra) se torna a variável macroeconômica mais importante de toda a história econômica do universo, capaz de entregar o santo Graal: estabilidade em uma economia intrinsecamente instável. Mágica! E daí a reverência do(a)s economistas do capital à riqueza financeira – e seus bônus e consultorias. 

Um trabalho do banco da Inglaterra confirmou o que qualquer um(a) que já tenha estudado fenômenos monetários a sério sabe: Os BCs dos países capitalistas centrais admitem que não controlam bulhufas em termos das variações no estoque de moeda. Até porque o que se entende por moeda varia no tempo e no espaço, com a introdução de inovações pelos verdadeiros criadores da moeda que importa: os bancos com carteira comercial, e cada vez mais outros agentes privados envolvidos em arranjos eletrônicos de pagamentos nas relações de débito e crédito. O próprio BC dos EUA (Reserva Federal) deixou de publicar uma medida monetária chamada M3 em 2006. Em algumas décadas isso deve se refletir nas estatísticas monetárias das colônias bananeiras. 

As transferências eletrônicas ilustram mais uma vez (como se fosse necessário) a estultice de confluir todos os pagamentos para as variações no estoque de moeda manual em circulação impressa pela casa de moeda e no volume de depósitos à vista mantidos no sistema monetário e equivocadamente visto como plenamente controlável pelo BC via mercado de reservas. O monetarismo sempre teve uma insuperável dificuldade de entender uma das instituições basilares do capitalismo: o sistema bancário. Essa ignorância se estende para as inovações financeiras em geral, que modificam o volume, a composição e logo a liquidez dos ativos monetários e financeiros. A experiência malfadada com o monetarismo nos Estados Unidos, nos anos 1980, mostrou que o instrumento de política monetária disponível aos bancos centrais é a taxa de juros de curtíssimo prazo no mercado de reservas. E as instituições financeiras alcançaram o verdadeiro controle dos BCs e da determinação da taxa de juros com a independência (sic) dos últimos. A facilitação quantitativa deixou claro que é possível atuar também sobre as negociações com títulos de maior maturidade para injetar riqueza líquida nas instituições financeiras sempre que elas destruírem riqueza ilíquida (como no caso das hipotecas durante a crise de 2007-2009). 

A forma monetária muda, mesmo que a forma básica não mercantil que dá a liquidez de última instância à estrutura de ativos monetários e não-monetários e transferências se mantenha estatizada (por enquanto), isto é, as reservas dos BCs e a moeda manual emitida pelo governo. E mesmo a forma básica pode mudar, seja por meio de reformas monetárias, seja por substituição de ativos e transformação na liquidez ou até imposição de uma potência imperialista. As instituições monetárias mudam, os ativos monetários mudam, a liquidez muda, a velocidade de circulação dos ativos líquidos para fazer circular o trabalho social também muda. Este é o calcanhar de Aquiles do monetarismo tosco e explica sua inviabilidade operacional (a menos que se queira desestabilizar a reprodução do capital). Por isso que os estudos empíricos mostram uma elevada variabilidade da participação da moeda e ativos líquidos nas carteiras dos agentes. Assim, tentar associar um estoque imutável de base monetária ou meios de pagamentos estritos ao longo do tempo é irrelevante, pois o que a economia utiliza como moeda ou quase-moeda muda. A inovação financeira impede tratar de um estoque fixo e imutável em sua natureza. Hoje, tem-se, para ficar em poucos exemplos, a moeda social, as criptomoedas e os pagamentos digitais. Antes, os eurodólares, os fundos de resgate automático ou mesmo a caderneta do ‘seo’ Zé da Quitanda (crédito comercial informal). A cabeça simplória do monetarista de esquina dá um nó e entra em parafuso.

Sendo a quantidade de dinheiro imensurável na realidade, volta-se então à taxa de juros, menos ambígua. A inflação segundo o novo monetarismo seria causada por taxas de juros baixas (que seria equivalente a um excesso de dinheiro injetado ou não esterilizado pelo BC se a moeda fosse ativo imutável no portfólio dos agentes). Quando a inflação sobe, aumenta-se a taxa de juros. Como os agentes sabem qual o modelo correto que explica o funcionamento da economia (gargalhadas), essa alta seria suficiente (desde que apropriadamente alta) para evitar que as expectativas (das instituições financeiras) da inflação futura aumentem. E o Santo Graal é alcançado pelo BC!

Adicionalmente, no mundo dos preços efetivos, a esperança dos devotos de São Wicksell é que os gastos financiados por crédito possam ser comprimidos, reduzindo o espaço para recomposição das margens de lucro, de acordo com a variação média dos preços, naqueles setores que vendem principalmente nestas condições. O problema para os novos monetaristas no Bananil atual é que até comida está sendo comprada a crédito – literalmente vendendo o almoço futuro para pagar a janta de ontem. Isto é, para quem ainda tem comida, vale a ordem: parem de comer e morram de fome para ajudar a combater a inflação. Frustra-se a expectativa de que os preços dos bens e serviços que dependem de financiamento não subam, ou subam bem menos que os preços dos bens comprados à vista e sem influência direta da taxa de juros. 

Por fim, outro fator não considerado por ignorância de princípios contábeis básicos e da consistência entre fluxos e estoques, é que, nos segmentos com financiamento do capital já contratado a taxas de juros flutuantes, o custo financeiro também aumenta com elevações das taxas de juros. E pode ser repassado aos preços intermediários (ao produtor) e finais (ao consumidor em vias de desaparecimento) em cascata, atenuando eventuais efeitos baixistas da queda nas vendas finais. O capitalista fornecedor de insumos com custos financeiros majorados repassa para o capitalista produtor de bens de capital que, caso endividado a taxas flutuantes, repassa para o capitalista produtor de bens de consumo, que pode estar na mesma situação financeira e repassar os custos financeiros para o atacado, que precisa financiar estoques, assim com o varejo, até que a cadeia de repasses chegue majorada aos consumidores e ao governo. Somado ao custo do transporte (combustíveis) e energia elétrica, a transferência de renda via preços e juros e a pobreza resultante é massiva.

Ou seja, a inflação é complexa demais para caber nas ortodoxias monetaristas, velhas ou novas. Os reajustes de preços pelas empresas são descompassados e de frequência variável. O que contribui para maior convergência é justamente o próprio nível da inflação, resultado das decisões sobre o nível e a velocidade da recomposição das margens de lucro pelas empresas. Nas experiências hiperinflacionárias há revisões frequentes e gerais dos custos e preços, com a explosão dos conflitos distributivos inter e intraclassistas (isso explica a estratégia de indexação plena à URV durante o Plano (Ir)Real). Portanto, o longo prazo monetarista não existe no mundo real. Mestre Nassif explica o jogo. Se aumentou tudo,  por que não aumentar o meu preço?

Não faz qualquer sentido, portanto, assumir que existe uma taxa natural de juros e que o nível da mesma explica os desvios da atividade econômica dos valores divinamente coincidentes com os do Santo Graal, isto é, do chamado PIB potencial, na melhor tradição idealista. O monetarismo acredita que é possível filtrar “choques idiossincráticos” (basicamente tudo que não possa variar em conjunto com as mudanças no estoque de moeda – definido pelos monetaristas) da tendência inflacionária, explicada única e exclusivamente pelo crescimento do estoque de moeda (que na verdade é indefinido, e portanto escolhido operacionalmente de forma casuística) causado pelo mal gerenciamento das contas públicas. Assume-se que existe um longo prazo definido como uma condição: que os preços e custos sejam flexíveis e que o PIB esteja em um nível possível apenas, tautologicamente, se os preços e custos forem totalmente flexíveis.

A elevada inflação do momento (que é diferente da passada e será diferente da futura, compondo um mosaico que só pode ser montado com as peças da história econômica, lembrando que não existe capitalismo sem inflação sustentada – apenas capitalismo com inflação baixa ou alta) tem no conflito distributivo intracapitalista em escala mundial, agravado pela pandemia e pelos ataques geopolíticos a um importante fornecedor de alguns insumos processados e produtor de insumos energéticos e químicos, além de matérias-primas, sua gênese. Nesta disputa, nos espaços nacionais o conflito distributivo se generaliza para diferentes classes e grupos, indo além da luta intracapitalista. Combinada com a especulação cambial, cria uma pressão ainda maior nos países periféricos, por exemplo. Dessa forma, parte da inflação no Bananil é importada (o que não livra a cara dos formuladores de política, pelo contrário, pois a paridade de preços da Petrobrás reflete a decisão política de enriquecer rapidamente os acionistas – os verdadeiros campeões que, como não são apenas nacionais, têm legitimidade… – e empobrecer a maioria sem paraísos fiscais – a política dos perdedores, aqui sim, nacionais). E os papagaios a repetir: é a dominância fiscal, currupaco, e pi-ri-ri, pó-ró-ró e mi-mi-mi! 

Assim, a explosão inflacionária no Bananil representa mais um acicate na teia de expropriação de renda e trabalho da maioria. A compressão dos rendimentos vai criando dilemas distributivos mais amplos. Assim, a estratégia de como subsistir materialmente, financiando alimentos a módicas prestações usurárias (até aqui o torniquete financeiro se impõe), em um quadro de desemprego elevado, rendas do trabalho estagnadas (quando existem) e inflação escorchante da cesta básica, tendo de pagar, por exemplo, o imposto eclesiástico ou dízimo, já certamente transformado na velha Quinta. Aqui se tem mais uma evidência da reprodução do passado. No Bananil colônia também se tributava o couro do gado (a alíquota ia de 20% a 30%). 

O monetarismo é um zumbi, mas com variantes. Toda vez que a realidade o aniquila, ele volta como uma nova cepa. A finança não pode viver sem seus mortos-vivos, contribuindo para que os vivos literalmente morram de fome no Bananil. E, para não perder o costume: Fora, Mantega!

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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