Opinião
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27 de março de 2022
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09:11

Um conto de verão: a economia bananeira à luz de Dickens (por Marcelo Milan)

Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos (Pintura de Jean-Baptiste Debret, 1830)
Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos (Pintura de Jean-Baptiste Debret, 1830)

Marcelo Milan (*)

Um espectro ronda a Eur…ops! Esse é um outro e desejável fantasma. Os espíritos relevantes para este artigo são aqueles do Conto de Natal, de Dickens. Embora o verão de 2021/2022 tenha se encerrado na semana passada, e o Natal faz pouco mais de três meses, a posição do Bananil no hemisfério Sul implica que o último aconteça no verão, facilitando o paralelo com a peça literária. A de outra forma irrelevante mudança de postura pessoal de Ebenezer Scrooge, sua redenção, despertada por algum marco temporal, alguma efeméride, como o nascimento do revolucionário Galileu, é mera epifania. É claro, mudanças no plano pessoal, estimuladas por algum temor, são sempre possíveis. Mas o sujeito é criação social e não pode ser isolado dos respectivos determinantes. A estrutura sócio-histórica limita a agência, como já sabia o genial Marx, e logo a chance real de mudança efetiva. Tomado no agregado, vale também para cidades, regiões e países. As possibilidades de mudança positiva são historicamente limitadas. 

Fixemo-nos inicialmente nos espectros e depois nas consequências de suas assombrações. As visitas fantasmagóricas aos vivos não se limitam à literatura. Na verdade, aqueles que pensaram de fato a economia em inúmeras oportunidades explicitaram alguma análise de cunho espiritual ou místico. Keynes, por exemplo, argumentava que todo formulador de política (homem supostamente prático) é escravo de algum economista defunto (por mais que o primeiro espume e tenha convulsões quando alguém sugere que tecnocracia é mera ilusão e que as decisões nada mais são que prescrições dos espíritos que o atormentam). E mais explícito ainda, identificava no comportamento humano a ação de um espírito, embora animal, que não se encaixava na caracterização reducionista, calculista e inútil da ortodoxia econômica. Economia Keynesiana ou economia Kardecista? Weber também foi preciso na identificação de um ‘espírito’ do capitalismo, animado pela religião. Marx, da mesma forma, empregou o termo espírito animal para se referir ao comportamento dos trabalhadores. E como não era dado a Robinsonadas (perspectiva individualista que tem em Robinson Crusoé, de Defoe, outro ícone da literatura inglesa, seu herói), também coletivizou as influências espíritas “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” Exato, querido barba! 

Inscrita na mudança como necessidade sine qua non está a passagem do tempo. Levar o tempo histórico a sério, como encadeamento contínuo de conjunturas estruturalmente restritas, com acelerações e recuos, requer considerar que os períodos de tempo não são independentes entre si. Algumas abordagens econômicas, não ortodoxas é claro, acertadamente reconhecem a dependência da trajetória. Enquanto Dickens conecta o tempo histórico pelo onírico, Keynes e Marx, entre outras, o fazem pelas ideias, tradições etc. O que acontece no presente é decorrência de ações passadas. O que acontecerá no futuro não é independente do que acontece hoje e aconteceu ontem. No Bananil ainda pagamos o custo dos 21 anos de ditadura civil e militar (e mais outros quatro para a sociedade civil ter o poder de referendar os ungidos pelo capital e tutelados pela caserna para comandar o executivo federal) e, mais remotamente, da sociedade escravocrata agroexportadora. 

Os economistas pró-capital suprimiram o tempo histórico, como já identificado pela pensadora britânica da geração de Keynes, Joan Robinson. No pensamento econômico ortodoxo, a-histórico, o tempo é uma palavra vazia, remetendo sempre a algo indireto, de forma que não converge para o calendário isto é, para a repetição cíclica da rotação ou translação dos astros. O curto prazo não significa um intervalo curto de tempo, mas uma condição que pode levar longos anos. O longo prazo igualmente refere-se a uma condição, podendo ser tão curta quanto um dia. A irrelevância é tamanha que se chega ao cúmulo do absurdo de propor modelos de gerações infinitas em que as pessoas não morrem! E o problema colocado por Marx e Keynes está resolvido. O futuro é historicamente indefinido, como no título ficcional do livro de Stefan Zeig publicado em 1941. Keynes consegue ser mais profundo em uma única frase: No longo prazo estaremos todos mortos…e nossos fantasmas atormentarão as próximas gerações de gestores do capital.

Voltemos ao paralelo com Dickens, apenas para deixá-lo aqui no caso do Bananil, pois não é possível receber a visita dos verdadeiros fantasmas do verão presente e do verão futuro. A realidade e a força (opressão) do fantasma do verão passado e de seus mortos se impõem de tal forma em terras tupiniquins que torna praticamente impossível qualquer redenção transformadora, hoje ou amanhã. As visitas dos fantasmas da economia bananeira se traduzem em visões e sonhos de um passado aparente, recente ou longínquo, que, não obstante, não impele à mudança. Na verdade, retroalimenta o passado, em um eterno déjà vu. O tempo não avança, retrocede, como no livro Time’s Arrow, de Martin Amis. Nós somos o que fomos, não pela dependência da trajetória, mas pela incapacidade de aprender com as lições da história para mudar o presente e forjar o futuro. Não há devir. Não nos tornamos. Parmênides venceu Heráclito. Passando da literatura à cinematografia, o melhor retrato deste país acorrentado é o filme Cronicamente Inviável, de Sergio Bianchi. Um país que faz as escolhas que fez em 2018, não ignorando a enorme (e esperada) manipulação midiática, em pânico pela perda da hegemonia no controle da manipulação de massas para os aplicativos de disparo de mensagens, não tem como dar certo. Acabou a ilusão. Encaremos nossos fantasmas do passado como atraso permanente para a maioria. 

Mas nossos fantasmas do verão passado se duplicam. Os desenvolvimentistas olham para o fantasma do verão passado travestido de presente e pensam existir um fantasma real, o de Roberto Simonsen. Não notam que há um passado mais passado (e quem apostou que ele estaria ultrapassado, perdeu) que sempre se passa por fantasma do verão presente: agro exportação e trabalho escravo na dimensão econômica, autoritarismo na dimensão política. Então o Bananil não tem presente e logo não pode ter futuro. Está preso atavicamente a um loop contínuo de permanente volta ao passado (ou ao antepassado). Tal qual Prometeu, o grilhão econômico tupiniquim foi forjado a partir da estrutura econômica que vai do pau Brasil à soja, passando pelo açúcar, pelo ouro e pelo café, salpicados aqui e ali pelo algodão e pela borracha, acorrentando a maioria da população ao passado perpétuo. E, vendo o país de quatro, à procura do presente, a águia colonizadora não quis beliscar só o fígado. Epimeteu na maioria, já que o irmão de Prometeu só olha para trás. A manufatura e sua burguesia industrial nacional foi uma quimera, um breve sonho de uma noite de verão, para se inspirar novamente na rica literatura inglesa, agora com o velho Bardo do rio Avon. Um Conto da Carochinha de Natal em meio a uma história interminável de terror de Edgar Allan Poe, que nos empresta seus corvos para substituir a águia mitológica a beliscar a derrière. 

E não acaba aí. Como o mesmo sábio germânico argumentou, o primeiro loop histórico surge como farsa, e os demais se repetem como tragédias. Tragédias sem fim, pois a reprodução do passado supera a cronologia diacrônica, aniquila qualquer forma de progresso efetivo e principalmente conserva (o que os filósofos hegelianos denominam suprassunção ou aufhebung) a história bananeira na essência, com mudanças meramente formais no calendário. Existe melhor confirmação do que o governo neofascista atual? A assombração não remete à necessidade de mudança ou fuga, mas, por alguma razão genética, mas de um apego ao espírito do único passado que se conecta historicamente com o presente, subsumindo-o para se perpetuar.

Do contrário, quem seria o agente da revolução/renovação/refundação (ou ressurreição, para manter o apelo espiritual do artigo e a proximidade do Pessach) industrial no Bananil ou a superação do atraso endêmico agro-pop financeirizado cum serviços precarizados? Como promover desenvolvimento a partir da indústria com lideranças como Paulo Skaf, em articulação com o comércio liderado pelo Louro José (ou seria o Zé Carioca?). Sentarei na cadeira, importada da China, para testemunhar o processo de enxugar gelo, comendo salgado importado ou produzido por alguma multinacional que ainda não saiu do país. Quando a burguesia industrial bananeira não consegue processar com qualidade nem mesmo amendoim do tipo japonês, fica claro como o fantasma do verão passado é, na verdade, um espírito zombeteiro…. E o que fazer da indústria 4.0 e os processos telemáticos e de automação que requerem capacidade e inteligência humana, além da artificial? Ou temos uma nova geração de agentes schumpeterianos, inovadores, com altas taxas de registros de patentes, gastos com P&D acima dos gastos com compra de agentes públicos (acima dos valores gastos com imóveis em Miami ou mesmo com compra de filet mignon para o gado do pato amarelo já seria aceitável) e plenamente integrados às cadeias mundiais de alto valor agregado? É o Estado ou as multinacionais que farão isso por eles, novamente? Vão ressuscitar o espírito dos verões passados de Vargas e JK? Como diria Lois Duncan, Eu sei o que vocês fizeram no verão passado. E… Teu passado te condena. A repeti-lo ad nauseam. Então, boa sorte transformando o capitalismo periférico e sua lumpen burguesia.

Se não, vejamos. O complexo agroindustrial bananeiro, na parte agro, nada apresenta de complexidade, como já cansou de argumentar Paulo Gala. E na parte industrial em processo de desaparecimento, também não, ficando a reboque do Estado, hoje paralisado pelo liberalismo, ou das multinacionais, gradualmente excluindo o território nacional dos seus espaços de acumulação. Das três muletas do capital manufatureiro no Bananil  (subsídios, tecnologia importada e trabalho semi-escravo) só sobrou a terceira. Mas esta por definição não gera consumo nos montantes necessários para manter um mercado massificado necessário para dar vazão aos ganhos de produtividade da nova indústria. Somado ao autoritarismo que rebaixa salários manu militari (e cada vez mais vis iuris) quando estes por alguma razão aumentam, fica explícito que o passado nos espera. Novamente.

Para não ficar apenas nos fantasmas dos colonizadores, tratemos de um ilustre pensador nacional, que verdadeiramente impede a troca do País pela fruta. Na pena de Celso Furtado, a fantasmagoria abre espaço para a fantasia, inicialmente organizada, na forma de uma industrialização por substituição de importações, e logo em seguida desfeita pela realidade insuperável do arcaísmo crônico. O subdesenvolvimento e o atraso acumulados desfazem a fantasia. Quando a ilusão ainda pesava no cérebro dos viventes, havia para Furtado a necessidade de criatividade. Mas era apenas a mudança copiada do Norte desenvolvido. Hoje, a criatividade necessária para se pensar, projetar e construir o futuro se perdeu. E justamente porque não se pode pensar o País sem povo. A elite acredita que é melhor destruir o País e ir para a Flórida do que cogitar que algum progresso mínimo possa ser absorvido pela maioria. O fantasma do verão passado de curto prazo, industrial, insiste em se apresentar como a necessária retomada da fantasia, para logo ser desfeita.  

Se a fantasia está permanentemente desfeita e o passado nos condena, enquanto maioria (a minoria está bem não importa o que aconteça – We’ll always have Miami), a escolha política não está, hoje, entre o início do acerto de contas com nossos fantasmas e a explicitação dos problemas crônicos e insolúveis por natureza, por um lado, e o aprofundamento e a aceleração da degradação do tecido social, econômico, político, cultural e ambiental com a substituição plena do presente pelo passado por outro. A escolha é entre o aprofundamento e a aceleração do atraso ou uma degeneração lenta e gradual, que, na verdade, pode alimentar a retomada da aceleração no futuro próximo, pela inevitável frustração da fantasia desfeita. Não há forças criativas que se desenhem para o início da transformação política. O poder do atraso é imenso e, neste momento, insuperável, pois atado à ilusão de que medidas cosméticas e a renovação de pactos com a Elite do Atraso (valei-me Jessé!) representarão o fim do arcaísmo, tal qual Ebenezer renovado. O otimismo da vontade conduz a um voluntarismo ingênuo e portanto autolimitado no enfrentamento das leis de ferro da oligarquia.

“Yes, nós temos bananas! (…) Somos da crise, se ela vier Bananas para quem quiser”. A marchinha de Braguinha não retrata um período, não é um Conto de Carnaval. É síntese da nossa história petrificada.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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