Opinião
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27 de setembro de 2021
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10:27

Moeda, tecnologia e exclusão: Adeus às esmolas? (por Marcelo Milan)

"A fome voltou": Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Marcelo Milan (*)

They used to tell me I was building a dream
With peace and glory ahead
Why should I be standing in line
Just waiting for bread?

Once I built a tower up to the sun
Brick and rivet and lime
Once I built a tower, now it’s done
Brother, can you spare a dime?

A canção Brother, can you spare a dime?, famosa na voz do crooner Bing Crosby, foi composta por Yip Harburg e Jay Gorney durante o pior momento da Grande Depressão do século XX, e ilustra de forma adequada uma importante contradição do capitalismo em seus diferentes tempos históricos. As promessas de glória e prosperidade universais por meio do trabalho duro se chocam com a trágica realidade da fila do pão para indigentes ou pedintes. O trabalho produtor das riquezas que financiam os sonhos de generalização da cornucópia, na crise, pode se restringir ao esforço de pedir esmolas nas calçadas. Promessas parecidas foram feitas pelo mais belo dos anjos a Javé no monte Quarantania, quimera prontamente recusada pelo sábio galileu, como narram os versículos 5 e 6 do capítulo V do evangelho de Lucas. A passagem bíblica é retomada como fonte de inspiração por Vinícius de Moraes na poesia Operário em Construção, cujos versos proporcionam uma dimensão  estrutural da posição dos trabalhadores na geração e apropriação das riquezas nas economias comandadas pelo lucro.

Esta contradição e seu potencial disruptivo está na gênese de outras facetas institucionais do capitalismo hodierno. Se a venda da força de trabalho como forma de sobrevivência em uma economia monetária (acesso ao dinheiro) é periodicamente ameaçada ou impedida pelas crises em suas diversas formas de manifestação, as transferências de renda permitem a manutenção do valor potencial desta força e de seu suporte humano. E a esmola do arranjo social estadunidense não é a única forma possível. Em outras sociedades politicamente organizadas em que a democracia teve de ser minimamente respeitada, por razões domésticas e internacionais, o Estado do Bem-Estar Social (EBES) proporcionou um importante mecanismo institucional neste sentido. A desmercantilização permitiu controlar ou amenizar o poder disciplinador do exército industrial de reserva sobre as condições sociais e biológicas de reprodução dos trabalhadores, contrariando a lógica do capital. Cabe notar que a mercantilização da força de trabalho se mostra muitas vezes insuficiente para proporcionar um nível adequado de vida e garantia contra a pobreza. Mesmo que o fenômeno do(a)s trabalhadore(a)s pobres, conforme nota a Organização Internacional do Trabalho (OIT), tenha sido reduzido nos últimos anos, este ainda representava, antes da pandemia, mais de 20% do trabalho assalariado mundial. Essa condição converge para o fato complementar, sobejamente conhecido, de que ninguém jamais ficou rico trabalhando (honestamente) das 8h00 às 17h00 como assalariado

Nas sociedades subdesenvolvidas e desorganizadas, ou ainda, de corte darwinista, contudo, o EBES tende a ser ou inexistente ou parcial e de reduzida cobertura, exigindo compensações precárias por meio dos laços familiares e da ação de organizações religiosas ou da sociedade civil, cuja atuação absorve uma parcela ínfima da força de trabalho, mas de forma improdutiva. Atualmente, o modelo institucional se encontra sob ataque cerrado em todo o mundo pelo liberalismo, ao mesmo tempo em que a crise econômica pressiona a capacidade de assistência familiar e das organizações sem fins lucrativos, enquanto organizações religiosas muitas vezes mais retiram dos fiéis, não infrequentemente já pauperizados, do que doam. No Bananil, a reversão do EBES previsto na Constituição Federal de 1988, mesmo limitado, proporciona uma mercantilização apenas potencial ou precarizada, pois o principal resultado das reformas liberais tem sido a exclusão de grandes contingentes populacionais, alimentando o exército industrial de reserva.

De forma mais geral, a configuração do capitalismo atual sugere que aquela parcela do exército industrial de reserva que Marx chamava de flutuante, passa a experimentar um período prolongado sem conexão com a produção e a circulação econômicas, com um perfil de inserção temporária e caracterizada pelo que foi chamado de ‘trabalho intermitente’ na reforma escravista de 2017 no Bananil. A fração latente perdeu seu sentido com a finalização da migração rural-urbana em boa parte do mundo, embora ainda possa ser significativa na África e na Ásia. Por fim, a parte estacionária ou estagnada se torna a mais importante do ponto de vista quantitativo, principalmente a parcela descartável e precarizada, que passa a alimentar o outro exército, o de Lázaro, na forma do lumpesinato e suas variantes. 

A contradição se reafirma então pelo fato de que a única forma de sobrevivência que resta ao exército de inválidos para o capital, quando não podem vender sua força de trabalho, mesmo em condições menos desfavoráveis, e quando não há garantia de mecanismos institucionalizados de transferência de renda, é a mendicância, como sugerem Harburg e Gorney. A caridade é um instrumento pré-capitalista de sobrevivência. A bíblia já narrava o papel das esmolas, por exemplo, no livro dos atos dos apóstolos, escrito pelo mesmo Lucas como uma segunda parte do evangelho, em que Cornélio, o centurião romano de Cesareia, é apresentado como um exemplo de distribuição farta de xéquels para os pedintes. Mateus VI, 3 mostra inclusive qual seria a forma religiosamente aceitável de se dar dinheiro aos miseráveis. A persistência histórica da esmola mostra simultaneamente o fracasso material, presente e passado, mas também o potencial de um futuro solidário, da humanidade. Embora seja duvidoso que mesmo o EBES tenha eliminado completamente esta forma frágil de transferência monetária, a esmola ganha importância crescente em situações de aumento da penúria.

Isso não impede que as visões de glória e abundância universais sigam sendo proferidas. Por exemplo, o economista Gregory Clark publicou em 2007 o livro ‘O Adeus as Esmolas’. Nesta obra, o ato de dar esmolas seria eliminado pela promessa da ocupação da capacidade plena de geração de emprego e de utilização produtiva do trabalho. Isto porque, historicamente, a eliminação física dos pobres pela miséria e pela doença na Grã-Bretanha (e de fato a COVID-19 deixa claro que não se pode pensar em doenças epidêmicas e na sua consequente mortalidade sem se pensar nas classes sociais) levou a uma maior participação da prole dos ricos, muito mais educados e industriosos, na economia, conduzindo à revolução industrial e o desenvolvimento. Clark assim justifica a pobreza naturalizando-a pela genética que se manifesta na cultura indolente e pedinte dos pobres. 

Clark erra factualmente na substância ou nas causas do fenômeno, pois a genética relevante aqui não está na sequência de ácidos nucleicos, mas nos processos históricos que proporcionaram a superação do feudalismo. Como sugeriu o ganhador do prêmio do Banco Central Sueco, Douglass North, aqui é melhor ler Marx… Clark, todavia, acerta, por obra do acaso, na direção provável. O potencial desaparecimento das esmolas é expressão de outra contradição, associada aos processos recentes de transformação tecnológica do capitalismo e que apontam no sentido da eliminação do dinheiro físico, que é o fundamento da esmola, dada sua portabilidade, mostrando que o equivalente universal se torna propriedade cada vez mais particular ou privativo. O dinheiro sempre foi modificado pela tecnologia e pelas técnicas reprodutivas, cujas transformações se aceleraram nos últimos três séculos e principalmente nas últimas décadas. A moeda metálica tem uma longa história, de mais de 10 milênios, com as técnicas de cunhagem tornando-a mais homogênea e confiável. O papel-moeda tem uma história mais recente. No Canadá, até cartas de baralho  serviram a este propósito em algum momento, o que facilitava a adulteração. Já as modernas cédulas embutem tecnologia de segurança, ainda que imperfeitas, contra a falsificação. Os falsários sempre estiveram associados com o dinheiro, mesmo enquanto ação de governos. Por exemplo, na Guerra do Golfo os Estados Unidos falsificaram os dinares iraquianos, criando confusão e prejudicando a população, mas não desestabilizando Saddam Hussein. 

A moeda só conseguiu maior homogeneidade muito recentemente, portanto. No Japão do xogunato e na Europa moderna os espaços de circulação monetária eram fragmentados e heterogêneos até início do capitalismo. Na última havia as moedas que circulavam entre a população pobre (pedaços de cobre e metais de baixa qualidade) e aquelas típicas da população rica, de melhor fabricação e com metais melhores, havendo as mais variadas taxas de conversão. Foi o surgimento do Estado moderno que deu unidade ao dinheiro, possibilitando que a tributação se tornasse mais efetiva e ampla e criando as moedas territoriais. Estes instrumentos podem entrar em tendência de declínio pela digitalização, pelas moedas supranacionais e pela dolarização (que não se restringe ao dólar estadunidense). Aliás, a própria Palestina na época de Jesus, embora possuísse produção monetária própria, centrada em Cesareia, já sofria processos similares às atuais dolarizações, com o curso forçado das moedas dados pelos conquistadores, como os helênicos, provendo as moedas de circulação provincial, e depois os romanos, provendo as moedas de circulação em todo o império. 

Duas sociedades muito avançadas em termos da transição para pagamentos eletrônicos em substituição à moeda física são a Suécia e a China. O liberalismo ainda não conseguiu desmantelar o EBES no primeiro, e o surgimento de uma sociedade sem dinheiro físico pode não ser preocupante para garantir a sobrevivência da crescente população de rua. Já na China o EBES está em formação e não tem tanto impacto no amortecimento da pobreza e da miséria urbana que surgem com a expansão da anarquia da produção. A alternativa adotada no país foi colocar moradores de rua para coletar informações em vez de moedas. As transferências são feitas pelos celulares dos doadores, por meio das redes digitais de pagamentos como Alipay (do grupo Alibaba) e WeChat Wallet, para as carteiras eletrônicas (e-wallets). Os lúmpens possuem cartões com códigos QR fornecidos pelas empresas. Os doadores escaneiam os códigos e têm suas informações transferidas para as empresas, que pagam os pedintes, supostamente ainda com moeda física, e então vendem as informações pessoais coletadas. Trata-se, assim, de uma forma precária de assalariamento travestida de mendicância, que não permite aos moradores de rua superarem esta condição. Nesta época de dinheiro digital, cuja portabilidade é medida em bits and bytes, é necessário acesso à tecnologia correspondente, e os miseráveis por definição não possuem tal propriedade. A exclusão digital é também resultado necessário da organização econômica que gera tal inovação. No Bananil, o auxílio emergencial, remendo tão importante e necessário para compensar a dilaceração da CF 1988 que nem mesmo este congresso conseguiu ignorar, esbarrou, em parte, justamente nesta exclusão. E em um quadro de aumento da pobreza, não é difícil imaginar Maria Antonieta reencarnada no Chicago Boy Guedes, a vociferar: se não têm smartphones, que usem seus iPads!

Assim, as recentes mudanças tecnológicas do capitalismo podem, em breve, por fim à necessidade milenar de dar esmolas aos excluídos, em uma conjuntura na qual os desafios da natureza à humanidade, sopesando sobre uma estrutura de decadência econômica, política, cultural e institucional no âmbito doméstico, proporcionam novos contingentes de miseráveis cuja única opção de sobrevivência basal é justamente a mendicância. Mas isto não é um problema apenas para o lumpesinato e para a sociedade civilizada. O desaparecimento do dinheiro físico cria também um problema para a rachadinha e para a compra de imóveis de luxo em dinheiro vivo. E aqueles que poderiam ser confundidos com mendigos comendo pizza de pé em Nova York têm a falsa concepção de que tudo se revolver, ops, resolve, com um “treisoitão” no prato dos famélicos (que prato?!, diria Rosa Luxemburgo). Irmão, tem um berro sobrando para me arrumar?, louvam os versos da canção de Harburg e Gorney, versão Bananil século XVIII, ops novamente, XXI.

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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