Opinião
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27 de outubro de 2021
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13:49

De tetos, tetas e paraísos fiscais (por Marcelo Milan)

A que servem as offshores e os grandes paraísos fiscais? (Imagem: Pixabay)
A que servem as offshores e os grandes paraísos fiscais? (Imagem: Pixabay)

Marcelo Milan (*)

O aprofundamento da crise econômica em curso (para a maioria da população) amplia enormemente as questões fundamentais que precisam ser discutidas por aquele(a)s com algum senso mínimo de realidade. Inflação mensal batendo recordes de décadas (abaixo a nova matriz econômica!), e sem perspectiva de reposição integral para boa parte dos salários, desemprego, subemprego e mau emprego persistentemente elevados, fome e miséria acelerando na mesma velocidade da concentração da renda, cenário externo com dificuldades produtivas e comerciais (gargalos nos encadeamentos das redes de suprimentos) e chances de novas implosões financeiras. A análise de conjuntura, porém, tem data de validade muito breve nas economias capitalistas, pois os focos de crise se multiplicam, se deslocam, se transfiguram, submergem para explodir em conjunturas futuras. O tempo conjuntural precisa, assim, se articular com a estrutura, que, em geral, muda mais lentamente, proporcionando limites menos efêmeros em que o primeiro se desdobra. 

Neste espaço, contudo, é difícil não tratar do Chicago “Boy” Guedes. Trata-se de uma fábrica de material conjuntural que permite identificar como a estrutura socioeconômica subdesenvolvida encontra na falta de capacidade e preparo individual dos ocupantes de cargos importantes no (des)governo federal um vetor intensificador, mas nunca determinante, de suas tendências, expondo suas entranhas. A última (ou penúltima, nunca se sabe – já ficou demissionário e foi logo mantido no cargo) foi ser pego com a boca na botija no caso dos Pandora Papers. E agora na ilustre companhia de Bob Fields Neto, cujo pedigree é insuspeito, e de outros 1.895 magnatas. O escândalo ilustra bem, nesta conjuntura, o parasitismo estrutural da burguesia brasileira e de seus liberais. Guedes estudou em Colégio Militar (parte do período já sob a ditadura – talvez isso explique sua fascinação pelo fascismo de mercado), se formou na ótima UFMG e fez doutorado financiado pelos contribuintes, com bolsa do CNPq. Ou seja, seus estudos foram integralmente pagos pelos impostos de muitas empregadas domésticas que, na sua visão tosca, não podem ir para o parque de entretenimentos no exterior, e de muitos porteiros cujos filhos não podem entrar na universidade com financiamento público… O verdadeiro parasita tira o ‘couro’ do contribuinte para bancar seu acesso a serviços selecionados do Estado e na hora de pagar os seus impostos, sonega e foge para o paraíso fiscal. Típico. 

Pior ainda é o caso de um dos cotados, no mais recente balão de ensaio, para substituir o Chicago “Boy”. O candidato foi pago pelos mesmos contribuintes, que amargam o resultado de sua ideologia transformada em políticas austericidas, para fazer turismo em Cambridge, Massachusetts, possivelmente flanando pela charmosa Boston, separada de Cambridge apenas pelo rio Charles. Não defendeu a tese (não surpreende…) e não pagou de volta a bolsa da CAPES. Valor atualizado de quase R$ 1 milhão. Virou turismo de longa estadia bancado por aqueles sem conta em paraíso fiscal. Austeridade no olho dos outros é refresco. Ou seria pimenta? E a verba para pesquisa (dos outros, nunca deles) sofre nesta conjuntura novo corte no financiamento. Porque, afinal de contas, um país desenvolvido como o Bananil não precisa de pesquisa e de ciência. Já temos curandeirismo, fanatismo religioso e negacionismo suficientes para nos manter no atraso estrutural crônico. Melhor importar tecnologia e pagar com exportações de produtos de baixo valor agregado feitos com trabalho semi-escravo. O arcaísmo é projeto estruturante que se afirma na conjuntura do corte de gastos para a maioria. E quando o país desta maioria afundar de vez, questão de tempo, os maganos correrão para seus paraísos para fruir da pilhagem. 

Na verdade, o modus operandi do parasitismo liberal é simples. Regra 1: Sugar os serviços públicos cabíveis (vide os inúmeros exemplos durante a pandemia – receber auxílio emergencial sem precisar; assumir emprego relâmpago na área da saúde para furar a fila da vacina etc.). Aliás, um dos poucos pontos não totalmente negativos da pandemia foi desnudar a picaretagem que se inscreve no ácido desoxirribonucleico de uma parte da população brasileira. Regra 2: Não pagar impostos e sonegar tudo o que puder (Não tem um outro picareta que vive da teta dos recursos públicos há décadas e afirmou, para quem quisesse ouvir, inclusive a Receita Federal, que sonega tudo o que for possível? Embora offshores sejam um tema complicado para as capacidades cognitivas do sujeito, sonegação seria crime confesso com base em lei da época da ditadura (Lei 4.729/65), se o País não fosse hoje também uma enorme pocilga institucional. Regra 3 (de ouro): Emprestar o dinheiro dos impostos não pagos para o governo, com proteção (não há teto para juros). Ou então colocar em um paraíso fiscal. Aqueles pegos no esquema da Pandora devem mais de R$ 16 bilhões aqui no Brasil. Ao redor do mundo, as estimativas chegam a até US$ 36 trilhões. Regra 4 (de jadeíte all caribbean lust): Quando as políticas liberais do teto falirem o Estado ao deixarem a população sem condições de sustentar a teta, fugir para o paraíso fiscal. Regra 6 (et pecus credit in omnibus): Colocar sempre a culpa no PT e no desenvolvimentismo ou no comunismo. 

Os liberais utilizam assim sua própria experiência, ops, incompetência como exemplo de ineficiência dos gastos públicos e da necessidade de cortá-los voluptuosamente para os outros, excluindo juros. A boca na teta e a mão na tesoura para manter o teto. Confiança nas próprias políticas liberais? Nunca. Isenção de tributação dos estoques e fluxos associados aos paraísos? Por favor! Aumentar o limite de valor mínimo para informar ao BC presidido pelo proprietário de uma offshore? Sempre! Existe algum liberal que não seja hipócrita? Ou trata-se de uma sinonímia? Talvez os mistérios da novilíngua… Portanto, a imposição do teto sem considerar os juros é expressão estrutural do parasitismo. A teta alimenta o parasitismo dos liberais (e também do Centrão, até por ter um banqueiro como paredro), seja no aparelho do Estado ou pela manipulação dos recursos orçamentários das empregadas domésticas e dos porteiros, explícitos ou ocultos (tratoraço). E o teto alimenta a teta do parasitismo sobre a dívida mobiliária federal.

E como o parasitismo não tem limites, não é difícil prever de onde virá a renda para saciá-lo quando a crise não conseguir mais espremer renda e tributos dos trabalhadores que forem alimentar o exército industrial de indigentes. Virá uma nova e violenta rodada de ataques contra os trabalhadores do setor público (excluindo os privilegiados de sempre) que ainda têm renda do trabalho, pois, mais incômodo para o capital e seus áulicos liberais que os salários não caíam (a reclamação contra impostos é autoengano, pois eles não pagam pela própria definição de paraíso fiscal) é que haja salário pago sem trabalho para explorar. Como a reforma do Imposto de Renda subiu no telhado no seu atual formato, ela deve ser reformulada para se tornar mais regressiva, e a reforma administrativa será ainda mais devastadora.

Um outro exemplo permite entender porque o teto de gastos é reflexo do parasitismo que, ao mesmo tempo aprofunda o subdesenvolvimento, e deixa como alternativas a penúria por um lado e o paraíso fiscal do outro. Nos EUA existe um teto para a dívida pública. E quando se tentou impô-lo de fato, o governo federal foi paralisado (para o delírio dos liberais que não se deram conta que isso secava a teta deles também). Para evitar o colapso, o teto já foi elevado inúmeras vezes. Portanto, é um parâmetro irrelevante na maior parte do tempo. Sempre que necessário, isto é, quase sempre, será elevado, alimentando o financismo e as guerras. Não é, assim, teto de fato, mas um número qualquer sem importância na grande maioria das vezes. Ou no mínimo o teto nasceu para ser furado. E não se lê nenhum texto de economista liberal com mimimi sobre a credibilidade estadunidense (ou da inconsistência fiscal intertemporal…). O biliardário Warren Buffet reconheceu que os ricos pagam poucos impostos nos EUA (e menos ainda no Brasil). Joe Biden quer mudar isso ao tributar os ricaços com contas em paraísos fiscais. Problema: Se fosse possível tributar, não seriam paraísos fiscais… Estão fora da jurisdição, Joe. Basta fazer uma ligação para o escritório Baker Mackenzie, sediado na cidade onde estudou Guedes. Ou vai invadir umas ilhotas no Caribe e colocar mais um governo marionete que abra mão da única forma de conseguir atrair capitais?

Os paraísos fiscais são expressão do capitalismo financeirizado parasitário e não vão desaparecer ou perder importância. Os Pandora Papers de 2021 representam apenas o último de uma sequência de escândalos (para quem se escandaliza) que ilustram a ponta do iceberg do parasitismo. Para ficar nos mais recentes: Luxemburgo Leaks em 2014, flagrando apenas pessoas jurídicas; Swissleaks (HSBC) em 2015, com quase nove mil espertalhões brasileiros; Panamá Papers em 2016, que identificou o arauto do moralismo Joaquim Barbosa como proprietário de offshore para comprar imóvel em Miami; Paradise Papers em 2017, que flagrou Blairo Maggi, Henrique ‘Me Chama’ Meirelles e J. P. Lehman. Novos escândalos virão. O mais hilário é o contorcionismo dos economistas pró-capital liberais defendendo o ‘direito natural’ de ter conta secreta no exterior e que as críticas são pura inveja… Ou então que é tudo culpa das políticas desenvolvimentistas da novíssima matriz econômica do Chicago, ops, Unicamp “Boy” Guedes e companhia. 

Há aqui também a cortina de fumaça do legalismo. Contudo, esse contorcionismo jurídico apenas impede que se utilize a expressão “falcatrua” e similares para caracterizar as offshores mantidas pelos maganos brasileiros. Não precisa mais do que dois neurônios (com sinapses) para considerar que a abertura de contas permitidas pela lei pode movimentar recursos ilícitos. A lavagem de dinheiro é um dos principais objetivos de se ter conta em um paraíso fiscal. Porém, esse não é o aspecto mais importante. Apelos ao legalismo são irrelevantes do ponto de vista do fenômeno em si. A abominável escravidão já foi legal. O inaceitável estupro (para seres humanos no atual estágio evolutivo da espécie) de mulheres consideradas ‘desonestas’ pelos próprios estupradores já foi legal (ou pelo menos não tipificado como crime). A lei é criação social e política, e seu cumprimento, no Brasil, muitas vezes, ainda mais. Uma sociedade decadente e doente aprova legislação decadente e doente e sistemas judiciários decadentes e doentes para julgar com base nela. Se os paraísos fiscais são tão normais, por que as contas não são divulgadas de forma transparente, sendo pelo contrário, secretas, e vindo à tona apenas por meio de vazamentos das poucas instituições dispostas a publicar? 

E aqui reside outra faceta estrutural do escândalo conjuntural. Houve uma operação abafa por parte dos chamados grandes veículos de comunicação. É claro que nestas empresas não se pratica o jornalismo. São apenas RP da oligarquia (com todo respeito aos profissionais de RP). Esconderam até quando puderam, e como na era da internet não dá para esconder por muito tempo, abafaram e minimizaram. Mesmo o consórcio que recebeu o material secreto não divulga todos os beneficiários políticos do esquemão. Os ricaços com dinheiro em paraísos fiscais são muitas vezes anunciantes, e os donos dos jornais não apenas podem ter contas em paraísos fiscais, mas precisam afagar os outros donos do dinheiro para sustentar suas empresas (o rabo já não está nem mais preso. Não se distingue – são gêmeos siameses). Não se pode correr o risco de associar o paraíso ao teto e à teta. Buenas, quem quiser acesso a jornalismo de verdade, tem o Sul21.

Assim, demitir Guedes, o Beato Salu, seria apenas por uma questão moral de um (des)governo que não tem nenhuma. Debandada da equipe econômica com medo do teto desabar e só restar o paraíso fiscal? Nada muda. Do ponto de vista político, o programa liberal não depende de indivíduos. Até porque destruir parte de um País a partir de uma estrutura econômica parasitada é mais fácil do que construir, inclusive pelas próprias restrições estruturais do parasitismo. E a oferta de liberais dispostos e ávidos em assumir uma teta no governo federal é ampla. Portanto, suficiente para seguir contribuindo para (não determinando) a crescente crise econômica da maioria, cada vez mais tendo de disputar carcaças e ossos (Chicago “Boy” Guedes diria que estava certo e que era melhor comer restos de comida dos donos das offshores do que restos de animais) para manter o banquete do andar de cima. 

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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