Opinião
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27 de fevereiro de 2022
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08:50

O poder assimétrico das finanças (por Marcelo Milan)

Marcelo Milan (*)

Nas economias capitalistas, monetárias por natureza, o dinheiro é a representação do valor. Porém, cada vez mais, em função da chamada financeirização, ele representa a si mesmo, hoje e no futuro. A busca pelo controle de parcelas crescentes do estoque de dinheiro em expansão, em seus múltiplos repositórios (ativos e passivos), e principalmente dos circuitos em que circula com maior capacidade de valorização, é assim uma das características definidoras destas economias. Não se pode pensar a economia sem se considerar o papel central do dinheiro. Qualquer abordagem econômica que ignore este atributo é irrelevante para entender o mundo real. Isso significa que, na prática, as instituições monetárias e financeiras possuem enorme poder, tanto econômico como político – já que economia e política nunca se dissociam – por centralizarem e concentrarem a maior parte do estoque de riqueza monetária e financeira e influenciarem fortemente os canais pelos quais o mesmo circula e se recicla em outros tipos de riqueza. Nos países subdesenvolvidos, como o Brasil, com maior heterogeneidade e dualidade estruturais, os setores “modernos” da atividade econômica têm seus múltiplos circuitos, domésticos e internacionais, integrados pela circulação monetária e financeira, fazendo com que os balanços patrimoniais sejam inter-relacionados.

A questão da importância das finanças para as economias monetárias, portanto, já está respondida pela própria definição das últimas. Nenhuma economia monetária pode funcionar adequadamente sem dinheiro, ou seja, sem um sistema financeiro e de pagamentos minimamente organizado. E isto confere ao último um poder relacional e estrutural com poucos paralelos na hierarquia econômica e política típica destas economias. Desta forma, um aspecto mais interessante, para além deste aspecto constitutivo, é entender quais as condições necessárias para que esta integração monetário-financeira-real (entre o sistema financeiro e a produção de mercadorias e capitais) faça com que a economia alcance objetivos desejáveis de forma sustentada (sem crises), como expansão do emprego, da produção e da preservação ambiental. Em outras palavras, que o sistema financeiro contribua para que a economia apresente um desempenho favorável no curto, médio e longo prazos. 

Os capitais que realmente dinamizam as economias capitalistas não são um capital qualquer, como aquele que serve apenas para o discurso estéril do ‘empreendedorismo’ (o carrinho do pipoqueiro que trabalha por conta própria não é capital, e sim falta de capital variável para empregá-lo de forma produtiva em termos de geração de valor – desemprego disfarçado). No caso do capitalismo brasileiro, este dinamismo atualmente não existe – posto que dependia, no passado, do Estado, agora depenado, e do capital estrangeiro, hoje em busca de economias mais promissoras. O capital que promove expansão sustentada exige um grande esforço em termos de absorção de trabalho. Como a força de trabalho necessária para criar e mobilizar riqueza é em geral uma mercadoria e a produção de partes do capital requer muitas vezes trabalho específico (engenheiros, cientistas, tecnólogos etc.), é preciso despender grandes somas de dinheiro para acumular capital. E a questão temporal aqui é fundamental. Os resultados da acumulação de capital na forma de mercadorias vendidas ocorrem no futuro (isso vale também para o próprio capital). Dessa forma, se a operação é bem sucedida, o dinheiro só aparece no fim do processo envolvido no circuito. Se não aparecer, há inadimplência para a parcela financiada. E mesmo que toda a capacidade instalada seja utilizada e a produção correspondente vendida, ainda assim apenas uma parte do capital inicial despendido pode ser reposta pelos lucros. É inevitável que os gastos sejam financiados pela criação presente de dinheiro contábil (crédito) ou pela transformação de parte do estoque de dinheiro acumulado no passado em capital. Esta antecipação de lucros esperados é feita necessariamente pelas instituições financeiras que efetivamente funcionam. Mas esse funcionamento requer condições favoráveis.

Historicamente, estas condições foram satisfeitas apenas em poucas situações, pois elas exigem uma subordinação bem definida da circulação monetária e financeira à circulação de mercadorias e à acumulação de capitais (dinheiro transformado em máquinas, equipamentos, construções, matérias-primas, folha salarial etc.), que significa, justamente, abdicar do poder das finanças em termos de arbitrar seus deslocamento intra e internacional, de autonomia decisória sobre instrumentos de centralização dos ativos e passivos monetários e financeiros, e de criação, ativação, manutenção ou aceleração dos fluxos monetários nos setores de atividade econômica não-financeira. As disputas políticas pela criação ou reversão destas condições igualmente caracterizam o capitalismo ocidental desde a Grande Depressão do século XX. Por exemplo, em um livro organizado pelo Professor Ricardo Dathein, Economia e Finanças Internacionais: de Bretton Woods à Globalização Financeira e Depois, argumentamos em um dos capítulos como os arranjos de Bretton Woods e as várias políticas regulatórias nacionais (como o teto às taxas de juros pagas aos depósitos nos EUA) proporcionaram uma institucionalidade mais próxima àquelas condições favoráveis. A financeirização atual nada mais é, portanto, que a vitória política das finanças e a destruição desta institucionalidade erigida como forma de assegurar a funcionalidade de um sistema financeiro voltado para o desempenho da acumulação e da circulação de longo prazo duranta a Era de Ouro.

Na mesma linha de raciocínio, o economista britânico John Maynard Keynes, co-fundador da macroeconomia e notório especulador, asseverou que o sistema financeiro teria um papel no desenvolvimento do estoque de capital dos países, desde que a especulação se restringisse a borbulhas em uma correnteza de empreendimentos (reais). Se a condição se inverte e os empreendimentos se tornam bolhas em um torvelinho especulativo, o sistema financeiro vira um cassino. Essa desconfiança reforça a percepção de que as condições apropriadas para as finanças funcionarem de fato seriam raras. Por isso Keynes defendeu restrições à mobilidade internacional de capitais (em contraposição à abertura irrestrita nas trocas internacionais envolvendo ideias, conhecimento, ciência, hospedagem e viagens). Similarmente, nas economias Asiáticas, em especial na Japonesa, se presumiu durante muito tempo que ‘capital’ se faz em casa (financiamento doméstico). E a crise Asiática de 1997 ilustra como ambos tinham razão, pois foi causada pela abertura financeira em meio a reformas liberais. Na verdade, a solução Keynesiana para as finanças funcionarem é bem mais radical (e isto é algo positivo, pois vai à raiz do problema, sem acomodação). As condições ideais passam necessariamente pela eutanásia dos rentistas. 

O problema com esta solução, hoje, é que o paciente não está doente. Pelo contrário. A janela de oportunidade se fechou quando a política permitiu a criação do mercado de eurodólares nos anos 1950. A regulação financeira nacional, a partir daquele momento, se tornaria cada vez mais difícil, pelo menos nos países ricos. O rentismo se fortaleceu desde então e assumiu diferentes formas, mas sem mudar sua substância. Por exemplo, nos famosos memorandos internos para os clientes mais ricos do Citigroup, vazados em 2005, o rentismo confluiu para a ‘plutonomia’, com a defesa explícita das políticas liberais e anti-trabalho voltadas para a riqueza dos plutocratas. Se não fossem vazados, os epígonos do capital já teriam a resposta pronta contra as críticas às políticas liberais defendidas nos memorandos: conspiração comunista! Ainda mais relevante que a defesa de políticas pró-capital é o veto, na forma, por exemplo, de fuga de capitais, às políticas minimamente pró-trabalho. Em outra contribuição para outro livro editado pelo Professor Dathein, Desenvolvimento e Crise, abordamos o caso de Portugal e outras situações em que a finanças exercem seu poder de veto (inclusive à presidência dos Estados Unidos, no caso de Bill Clinton) sobre políticas possivelmente favoráveis ao crescimento e à redistribuição de renda para o trabalho. 

Em período recente, contrariando a sugestão de Keynes, o FMI tentou a todo custo promover a ampla abertura da conta financeira do Balanço de Pagamentos. No pensamento ortodoxo (em crise) que orienta as políticas do fundo, uma fuga de capitais indicaria qual a política correta: na aparência seria promover o crescimento da renda agregada, mas, de fato, o correto seria sempre favorecer os interesses das finanças. Ou então ter-se-ia aqui um caso de profundo altruísmo dos financistas,  salvando as economias (e não seus lucros!) das mãos dos políticos egoístas e inescrupulosos que nada entendem de economia e só pensam nos seus próprios interesses (reeleição). As instituições financeiras teriam descoberto, neste caso, o que a economia como área de estudo não conseguiu nos últimos dois séculos e meio (desde Adam Smith): como a economia realmente funciona e logo quais as políticas verdadeiramente corretas. O problema para a primeira tese é que as fugas de capitais acontecem com elevada frequência e mesmo em países com diferentes regimes de política macroeconômica, como bem mostrou a crise Asiática, explicitando o poder assimétrico de destruir as instituições que promoveram rápido crescimento, sem plena articulação com os circuitos financeiros internacionais, e não colocar nada parecido no lugar. 

No Brasil, a patota ortodoxa tucana nos anos 1990 só faltou (pelo que se sabe) lamber o crômio alemão dos pisantes dos financistas estrangeiros. E ainda assim não conseguiram evitar uma fuga de capitais mesmo com Gustavo Franco estuprando o Tesouro Nacional com uma política monetária de taxas básicas de juros escorchantes. Há uma hierarquia monetária e financeira mundial que os liberais não conseguem entender. Assim, para as finanças mundializadas, com seus sócios menores nacionais, exercer o poder não é tanto ter seus candidatos vencendo as eleições, mas o controle das políticas econômicas adotadas, não importa o governo ou partido vitorioso. E fugir quando as mesmas começarem inevitavelmente a ruir (daí a importância dos paraísos fiscais). A diferença é apenas o maior ou menor grau de contrariedade (ou entusiasmo) dos formuladores de política. A política econômica na nefanda era de Fernando II não precisou de nenhum tipo de pressão para favorecer a finança (vide PROER). Mas como a última é mundializada, o tucanato recebeu como prêmio pela sua subserviência cega ao poder assimétrico destrutivo das finanças uma crise cambial e a imposição de medidas ainda mais drásticas e favoráveis à financeirização, como a lei de responsabilidade fiscal e o regime de metas de inflação.

No período de subdesenvolvimento industrializado (expansão da riqueza na forma do capital manufatureiro), o Estado teve de preencher o vácuo institucional legado pela economia cafeeira e escravista em termos monetários e financeiros. No período pré-financeirização, instituições como o BNDES, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, agências de fomento, bancos estatais etc. desempenhavam o papel de mobilização, centralização e distribuição do estoque de dinheiro presente e futuro. As políticas industriais nada mais eram que ações voltadas a direcionar grandes volumes de capital monetário e principalmente financeiro, com fortes elementos fiscais, para a circulação industrial, transformando parte daquele estoque em riqueza real, que depende de emprego do trabalho em maior escala que aquela possibilitada pela circulação financeira. No Brasil financeirizado, persiste a dualidade típica do subdesenvolvimento, porém: a adoção de tecnologias de última geração e elevado grau de sofisticação instrumental no setor financeiro acompanhado do atraso institucional atávico do ponto de vista de robustecimento dos canais de financiamento. 

E aqui também o poder assimétrico das finanças se revela igualmente pela hegemonia na formulação das políticas econômicas, inclusive as trabalhistas. Assim, o encerramento das operações de varejo do Citigroup no Brasil em 2016 foi utilizado para defender a reforma escravista. Os defensores do escravismo urravam que a praticamente extinta CLT fora a responsável pela “saída do banco” (sic), pois o mesmo tinha supostamente 1% dos seus lucros globais e 97% dos processos trabalhistas no Brasil. Porém, a CLT regia também a banca nacional, que não tinha dificuldades de lucrar de forma exorbitante em suas operações de varejo (inclusive por meio de demissões massivas chanceladas pela lei). E como o Citi manteve as operações de atacado, os funcionários remanescentes seguiriam supostamente tendo direitos trabalhistas (que horror!), até a reforma escravista de 2017. Além disso, o banco também encerrou suas operações de varejo na Argentina de Macri e na Colômbia de Calderón, políticos liberais claramente anti-trabalho. Na verdade, o banco vendeu suas operações de varejo em vários outros países, como resultado da estratégia de concentrar os seus negócios apenas no capital. Os defensores do escravismo e estafetas do capital são ótimos bajuladores e caras-de-pau, mas têm uma enorme dificuldade de raciocinar. Além disso, muitos analistas de banco fazem política o tempo todo, pretendendo passar por análise “técnica” (gargalhadas). E ainda há o caso recente do banqueiro central comendo na mão do banqueiro que vive metido na política. A independência do BC é assim apenas mais um resultado da vitória política das finanças, permitindo que o presidente da instituição e seu comitê de mascotes sejam levados “pela coleira” pelos financistas – e sem que a sociedade possa fazer algo a respeito. 

Em resumo, não se deve derivar a conclusão automática de que, se algo é real (existe), é racional (existência justificativa porque funciona sempre de forma desejável com base em algum critério universal, já que este não pode existir por definição). Isto é, se o sistema financeiro é essencial por um lado, ele não necessariamente conduz a resultados desejáveis para a economia como um todo por outro (notando que a propriedade da riqueza é extremamente concentrada no capitalismo, e que o agregado é quase sempre enganoso). O poder das finanças é assimétrico. A capacidade de financiamento da acumulação de capital é desproporcional à capacidade de desestabilização dos fluxos e de destruição de partes consideráveis do estoque de riqueza monetária, financeira e real durante as crises financeiras, comprometendo o crescimento agregado de curto e de longo prazo. Nas últimas décadas a disputa política pelo excedente e seu uso, e também pelo controle institucional e setorial do estoque de riqueza, foi decidida em favor das finanças. Assim, a capacidade de chantagem do setor financeiro, dada sua capacidade destrutiva de causar crises, é substancial, desproporcional à qualquer contribuição efetiva ao financiamento (ainda que alguns bancos em particular tenham ações sociais importantes, que acabam legitimando seu poder). E o resultado das eleições de 2022 no Brasil, se houver, não resolverá este dilema, posto que não é nacional. Pelo contrário, a corrida será entre aqueles que governarão para as finanças contrariados e aqueles que o fazem de bom grado.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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