Opinião
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10 de fevereiro de 2022
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09:07

A gestão da política monetária e a elevação da rentabilidade do capital no Brasil (por Fernando Maccari Lara)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Fernando Maccari Lara (*)

Um dos aspectos mais discutidos da conjuntura brasileira, ao lado da pandemia, tem sido a elevada taxa de inflação e a resposta da política econômica, mais especificamente, do Banco Central do Brasil, para lidar com o problema. Boa parte das críticas têm girado em torno do fato de que a elevação da taxa de juros é uma medida que tende a prejudicar a atividade econômica e que, portanto, seria inócua para lidar com uma inflação que não é causada por excesso de demanda. O pensamento convencional, por seu turno, tende a basear a sua defesa da atuação do Banco Central na concepção de que a elevação da taxa de juros implica em contenção do crescimento da demanda e do nível de atividade e que isto pode conter mesmo uma inflação que não seja de demanda porque restringe o repasse dos custos aos preços por parte das empresas. Tanto os críticos quanto os defensores da política monetária concordam, portanto, que a elevação da taxa de juros tem efeitos de contenção de demanda. Divergem, entretanto, a respeito da eficácia desta circunstância para moderar o crescimento dos preços. Nas linhas que se seguem, pretende-se questionar parte dos argumentos dos críticos e parte dos argumentos dos defensores da política monetária, buscando uma linha diferente de interpretação para os seus efeitos. A partir de um enfoque sraffiano sobre a política monetária, pretende-se refletir brevemente sobre como, ao lado da barganha salarial, a política monetária, é um importante canal pelo qual as relações de classe afetam a distribuição da renda.

Comecemos pelo ponto de convergência entre os críticos e os defensores da atual política monetária do BCB. De fato, a elevação da taxa básica de juros é uma medida que tem entre as suas consequências a elevação do custo do crédito e que, muito possivelmente, este seja seu principal canal de restrição de demanda. Mas é preciso notar, e isto parece pouco ressaltado, que uma parte muito importante do custo do crédito que efetivamente se apresenta ao consumidor está nos elevados spreads praticados pelas instituições bancárias. Dito de forma mais simples, o custo do crédito é alto também em função de uma elevada rentabilidade do setor, circunstância para a qual parece contribuir decisivamente a gestão das instituições bancárias públicas. Se, diante de uma elevação da taxa básica de juros, a gestão da política econômica em seu conjunto desejasse um efeito menos intenso sobre a demanda, isto poderia ser conseguido por uma estratégia de preços competitiva dos bancos públicos. Forçar para baixo a parcela do custo do crédito que está ligada à rentabilidade dos bancos poderia ser uma forma de compensar o efeito da alta da taxa básica. Sem falar na possibilidade de utilização da própria política fiscal como um elemento de expansão de demanda, circunstância que por vezes desaparece mesmo do discurso dos setores mais progressistas, como algo que fosse vedado e impossível de se praticar, ainda que tenha sido praticado em caráter emergencial muito recentemente.

Na abordagem sraffiana da política monetária, há um outro efeito da definição da taxa de juros pelo Banco Central: seu papel enquanto balizador para o chamado custo de oportunidade para o capital. Ocorre que, além de influenciar as taxas de juros relevantes para os tomadores de crédito, comentada no parágrafo anterior, a taxa básica de juros definida pelo Banco Central afeta também a remuneração que pode ser obtida em operações financeiras que tenham como fundamento os títulos públicos. De modo simples, os juros pagos pelo setor público são apropriados pelo setor privado. A rentabilidade que pode ser obtida nessas operações praticamente sem risco torna-se um piso para a rentabilidade que se espera obter com a aplicação do capital em outras alternativas, como a produção de bens e serviços. Evidentemente que cada atividade produtiva tem suas especificidades, seus elementos próprios de risco, suas assim chamadas barreiras à entrada, entre outros aspectos. Todos eles influenciarão aquilo que se considera ser a rentabilidade normal de cada atividade específica. Mas a ideia é que esses elementos específicos a cada alternativa de alocação de capital se somam a uma rentabilidade básica, definida pela taxa monetária de juros. A concorrência, no sentido da mobilidade do capital, implica que os recursos aplicados em atividades produtivas não deverão ter rentabilidade menor do que a taxa de juros, dada a possibilidade sempre aberta de reorientar os recursos para as operações financeiras lastreadas nos títulos públicos.

Note-se que este papel atribuído à taxa de juros, em si mesmo, é um argumento que vem a reforçar o discurso dos críticos à atual orientação da política monetária. Além de encarecer o crédito, a elevação da taxa de juros também eleva o piso de rentabilidade desejado pelo capital, atuando por estas duas vias, portanto, para uma deterioração das condições distributivas. Há, entretanto, uma terceira circunstância que precisa ser considerada para de fato compreender o papel da política monetária brasileira nos movimentos distributivos recentes. Especialmente em economias periféricas, pode haver uma importante influência da taxa básica de juros sobre a taxa nominal de câmbio.

Em outra oportunidade argumentou-se neste mesmo  espaço (“A inflação de dois digitos e as suas circunstâncias“) sobre quais as causas da inflação ao atual nível de dois dígitos, no Brasil. Esta interpretação, embora não passe por qualquer argumento de inflação de demanda, é sensivelmente divergente em relação ao discurso de boa parte dos economistas heterodoxos, porque atribui parte importante da alta da inflação à exagerada redução da taxa de juros promovida pelo Banco Central em 2020. A decisão de manter a taxa básica de juros em patamar inferior aos indicadores de risco externo durante vários meses implicou em rompimento de um mecanismo estabilizador entre os preços internacionais de commodities e a taxa de câmbio nominal. A intensa recuperação dos preços de commodities em dólares a partir do segundo semestre não foi acompanhada, como é usual, de valorização da taxa de câmbio nominal e a economia brasileira acabou sofrendo o choque externo com uma intensidade maior do que as demais economias. Ainda que não atribua tal circunstância a efeitos de sua própria política, nem compartilhe da interpretação aqui delineada, o próprio Banco Central tem reconhecido a sua relevância no processo.

Este fato teve implicações distributivas extremamente importantes, que parecem ter sido dominantes comparativamente aos potenciais efeitos da baixa taxa de juros sobre o custo do crédito e o custo de oportunidade do capital. Ocorrendo em conjunto com esta associação específica entre os preços externos e taxa de câmbio, o efeito positivo que se poderia esperar sobre a distribuição de renda acabou sobreposto por um forte efeito, em sentido contrário. Pelo lado dos salários, tem sido notável a deterioração do poder de compra em função da alta de preços básicos importantes para a cesta de consumo. Pelo lado da rentabilidade, os efeitos não são homogêneos e serão brevemente discutidos abaixo mas, para certos segmentos produtivos, a combinação de preços externos em alta e taxa de câmbio desvalorizada implicou um extraordinário favorecimento. Assim, ao mesmo tempo em que a rentabilidade associada à taxa de juros básica enfraqueceu-se temporariamente no papel de regulador da rentabilidade básica do capital, porque a taxa de juros nominal foi bastante reduzida, surgiram concretamente setores absolutamente premiados pelo processo por circunstâncias completamente exógenas a eles, mas também relacionadas à gestão da política monetária.

Evidentemente que a inflação mais alta que tem persistido também afeta os custos de produção domésticos e, por esta via, bem pode vir a desafiar a rentabilidade de empresas capitalistas em geral. Note-se entretanto que, no que diz respeito às atividades exportadoras e no contexto específico aqui considerado, a elevação de custos não exerceu pressão redutora sobre a rentabilidade. Na medida em que as receitas de exportações são auferidas em reais, mas a partir de uma conversão de preços de venda em dólares pela taxa de câmbio, a alta simultânea destas duas variáveis configura um aumento exógeno e automático das receitas destas atividades. O resultado é inevitavelmente uma elevação da rentabilidade nesta parcela da produção pois, enquanto que toda a receita é automaticamente majorada, apenas uma parte dos custos será afetada, fazendo um efeito de moderação da alta da rentabilidade e não propriamente de pressão para sua redução. Isto ocorreu, notavelmente, no conjunto do setor agropecuário brasileiro (conforme discutido em “Ilhas de prosperidade em meio a um oceano de dificuldades”) onde uma parte importante da produção se destina a exportações.

Mas e quanto à produção vendida para o mercado doméstico? Até que ponto a elevação de custos pode ter pressionado a rentabilidade? Nesse caso, não se pode considerar a existência do mesmo automatismo do aumento das receitas, como no caso das exportações. Os efeitos sobre a rentabilidade da atividade dependerão de uma circunstância diferente: a capacidade das empresas em repassar os aumentos de custos para os preços. O núcleo do problema encontra-se em uma pergunta simples: em quanto os preços devem ser corrigidos diante de um determinado aumento de custos? Esta pergunta é que deve ser feita pelo produtor que vê seus custos crescerem para tentar alcançar uma determinada rentabilidade na sua atividade. O que pode ser esse balizador do que é seguro e do que não é seguro, quando se apresenta a questão do repasse dos custos aos preços?

Temos ao menos duas situações distintas dignas de nota, em um primeiro nível de aprofundamento nesse contexto. Há uma parte da produção que é vendida para o mercado doméstico mas cuja situação ainda guarda certa semelhança com o caso da produção para exportação. No caso dos produtores de bens comercializáveis voltados para o mercado doméstico, a elevação de alguns preços internacionais e/ou da taxa de câmbio não eleva automaticamente os preços praticados, como no caso das exportações. Mas eleva, isto sim, os preços em moeda doméstica dos potenciais concorrentes externos, que podem vir a ocupar o mercado via importações. Neste caso ainda temos portanto algum grau de determinação dos preços pelas condições externas e taxa de câmbio, e o repasse dos custos aos preços fica facilitado pela alta dos preços dos reais ou potenciais concorrentes importados, que reduz o risco de perda de parcelas de mercado. Por fim, temos o terceiro caso, os bens não comercializáveis, cujo preço é determinado domesticamente. Neste caso é que se coloca de forma plena a questão do repasse dos custos. Para que ela possa ser resolvida do ponto de vista prático é preciso que a formação de preços leve em consideração a rentabilidade básica para o capital, influenciada pela taxa de juros como se observou acima, além do próprio movimento dos custos de produção.

Evidentemente que, em qualquer caso, os resultados efetivos das atividades também dependem das condições de demanda. Na produção de bens não comercializáveis, as condições podem ter se tornado bastante duras para certos segmentos, tendo em vista as restrições sanitárias que impediram diversas atividades. Entretanto, destaque-se que não é porque há dificuldades de vender a produção que se possa vender persistentemente com preço abaixo do custo. Diversos mecanismos defensivos podem ser adotados pelos setores não comercializáveis para lidar com dificuldades da natureza das que se apresentaram durante a pandemia, para readequação das estruturas de custos: incorporação de tecnologia, readequação das escalas de produção, fusões e aquisições. Os efeitos derivados sobre a estrutura econômica e social podem ser diversos. Mas, do ponto de vista da racionalidade capitalista, o preço do bem não comercializável tem que ser colocado acima do seu custo, e deve ser remunerado o capital aplicado a uma determinada taxa. Passado o período de maiores dificuldades e de reorganização da produção em novas bases, deve resultar uma nova estrutura de custos e é a partir dela e de uma rentabilidade básica para o capital que deverão ser formados os preços.

Dada, portanto, essa sua diferente condição, o setor de não comercializáveis certamente não viu acontecer o aumento de rentabilidade que se observou nas exportações, porque não tem seus preços determinados pelas circunstâncias externas e taxa de câmbio. Também não deve ter tido tanta facilidade para repassar os crescimento dos custos aos preços, como no caso de muitos setores produtores de comercializáveis para o mercado doméstico. Com a taxa de juros em patamar historicamente baixo, também deve ter ficado prejudicado o papel desta variável como regulador da rentabilidade básica e portanto como balizador para o repasse do crescimento dos custos aos preços. Tendo sido um período de ampla reorganização, conforme se observou acima, os próprios parâmetros de custos podem ter sido bastante alterados. Em síntese, existem diversos pontos em aberto e que merecem aprofundamento, mas parece seguro afirmar que a redução da taxa de juros no ano de 2020 acabou não exercendo os efeitos distributivos positivos que poderia ter, ao reduzir a rentabilidade básica do capital. Na hipótese de ter provocado a exacerbação do choque externo, acabou implicando em forte favorecimento da rentabilidade das atividades exportadoras e produtoras de comercializáveis para o mercado interno. O crescimento dos custos e as dificuldades gerais em meio à baixa rentabilidade básica do capital podem ter pressionado mais fortemente somente a rentabilidade de atividades não comercializáveis.

Na medida em que o capital aplicado na produção de não comercializáveis pode também ser realocado em atividades exportadoras ou que produzem bens comercializáveis, circunstâncias que determinem uma rentabilidade mais alta destas alternativas em algum momento podem tornar-se parâmetro para a rentabilidade geral. De modo que, se existe mobilidade do capital entre essas alternativas, parece razoável supor que uma divergência de rentabilidade entre estes segmentos poderia pôr em operação mecanismos de adaptação acabariam promovendo recuperação da rentabilidade dos não comercializáveis e assim uma reaproximação com a rentabilidade mais elevada dos demais segmentos.

A própria mudança de orientação da política monetária a partir de 2021, entretanto, parece funcional para cumprir justamente esse papel. A rápida elevação da taxa básica de juros está restabelecendo o papel da rentabilidade associada a aplicações financeiras lastreadas em títulos públicos como custo de oportunidade do capital. Almejando uma rentabilidade no mínimo equivalente a esta, os setores não comercializáveis podem calcular a intensidade necessária do repasse dos custos aos preços. Na ausência de novos choques nos preços internacionais convertidos pela taxa de câmbio, o processo de repasse dos custos aos preços nos setores não comercializáveis passa, agora sim, a exercer efeito de redução da rentabilidade em setores exportadores e de comercializáveis para o mercado interno. Em conjunto com a recuperação da rentabilidade dos setores comercializáveis, o processo implicaria justamente uma reaproximação da atratividade entre essas diferentes alternativas de aplicação de capital.

Note-se que, neste caso, o efeito da elevação da taxa básica de juros é exatamente o inverso do que dizem os defensores da política monetária, baseados na lógica de que a alta da taxa de juros contém os repasses dos custos aos preços porque restringe a demanda doméstica. Nesta interpretação alternativa que aqui se pretende fazer, na verdade a alta da taxa de juros favorece os repasses no setor de não comercializáveis. Independentemente de ser efetivamente um elemento de restrição de demanda, a elevação da rentabilidade das aplicações financeiras baseadas nos juros pagos pela dívida pública sinaliza para uma recuperação da rentabilidade dos não comercializáveis, por meio de repasses eventualmente mais do que proporcionais dos custos aos preços.

Retomando, portanto, alguns dos pontos tratados, a título de considerações finais. O problema de boa parte das abordagens críticas da política monetária tem sido a falta de percepção sobre algumas das suas importantes nuances. Ao reduzir exageradamente a taxa básica de juros em 2020, a política monetária favoreceu os resultados dos setores comercializáveis, exacerbou os choques externos sobre a inflação, deteriorou o poder de compra dos salários, e pode ter pressionado para baixo a rentabilidade de segmentos produtores de não comercializáveis. Uma vez revertida a orientação, a alta da taxa básica de juros, embora rápida, não provocou um movimento inverso de revalorização da taxa nominal de câmbio que pudesse reverter de forma abrupta a rentabilidade dos setores comercializáveis. Por esta razão, combinada com a persistência de certa pressão altista nos preços internacionais, é que ela não surtiu efeito na contenção da taxa de inflação. Entretanto, ao favorecer o repasse nos setores comercializáveis, acaba provavelmente exercendo o efeito de realinhamento da rentabilidade por meio da recuperação dos preços domésticos em relação aos preços externos convertidos pela taxa de câmbio.

Por fim, é crucial observar que o ajuste do processo como um todo é amplamente facilitado por uma condição bastante precária do poder de barganha dos assalariados. Não fosse isso, circunstância que já vem de bem antes da pandemia, dificilmente a taxa básica de juros teria sido reduzida na intensidade que ocorreu em 2020. Nem no primeiro momento, de alta dos preços dos comercializáveis, nem no segundo, de intensificação do repasse para os não comercializáveis, os assalariados foram capazes de repor a inflação nos seus salários nominais. De modo que o processo descrito, ainda que carente de aprofundamento e de maior embasamento em evidências empíricas, parece ilustrar de forma mais completa os efeitos do conjunto da obra da política monetária brasileira. Primeiro elevando a rentabilidade dos segmentos exportadores e comercializáveis em geral e, em um segundo momento, promovendo a recuperação da rentabilidade dos segmentos não comercializáveis, promoveu-se a elevação da rentabilidade do capital em geral, em detrimento do poder de compra dos salários. Dessa forma é que parece que se pode começar a descrever esquematicamente a forma específica pela qual a política monetária tem sido um dos principais canais pelos quais os interesses de classe atuam na determinação da distribuição da renda no Brasil.

(*) Economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ

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