Opinião
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12 de novembro de 2021
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14:50

A inflação de dois dígitos e as suas circunstâncias (por Fernando Maccari Lara)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Fernando Maccari Lara (*)

Nas últimas semanas parece ter crescido sensivelmente o interesse dos economistas e do público em geral pelo tema da inflação. Diversos artigos têm sido escritos buscando uma leitura heterodoxa do problema e apontando os aspectos distributivos presentes no atual contexto. Possivelmente a maior atenção ao tema se deva ao fato de que o Banco Central do Brasil já promoveu uma sequência de elevações na taxa básica de juros sem que o crescimento dos preços na economia, insistentemente acima dos 10% no acumulado em 12 meses, tenha dado qualquer sinal de reversão.

O primeiro ponto a destacar é a temporalidade que envolve esse processo. A dinâmica própria dos mercados financeiros e a forma como os fatos são veiculados na imprensa parecem sugerir ao público em geral que os nexos de causalidade entre as variáveis econômicas funcionem de maneira muito mais rápida do que são na realidade. É importante perceber que, se agora a taxa de inflação alcançou definitivamente os dois dígitos e isto chama mais a atenção da opinião pública, a aceleração que nos trouxe a esse ponto não é fenômeno recente, mas sim o resultado de choques que vêm ocorrendo desde o ano passado. Estes choques não foram revertidos em 2021, apesar da elevação da taxa de juros ao longo do ano, e agora se somam a alguns de seus efeitos secundários mais importantes, que só aparecem de forma defasada. Interessam, portanto, tanto a magnitude e a persistência dos choques quanto a intensidade e a velocidade de sua propagação pelo restante do sistema de preços.

Em segundo lugar, parece ser já algo bastante consensual que a inflação tem prejudicado à grande maioria da população mas, sobretudo, aos assalariados e os mais pobres. Trata-se de um erro, entretanto, assumir que tal situação seja algo universal e que assim se justifique sempre toda e qualquer medida anti-inflacionária como uma necessidade para proteger os menos favorecidos. Em abstrato, mesmo os assalariados poderiam ser beneficiados com um processo inflacionário desde que, em uma determinada conjuntura favorável, os choques de custos que originam aquela inflação estejam no crescimento dos salários nominais acima da produtividade do trabalho. Sob determinadas condições, o repasse dos custos salariais aos preços de parte das empresas tende a não ser completo, de modo que as repercussões dos choques de custos sobre os demais preços também ocorreriam, mas não a ponto de reverter os ganhos reais de salários. Na medida em que favorece o consumo dos assalariados, uma dinâmica como essa poderia favorecer até mesmo trabalhadores informais que veriam crescer as suas vendas e/ou as oportunidades de encontrar ocupações formais. Note-se que neste caso hipotético uma política visando promover a recessão e o desemprego até poderia ter eficácia para conter o processo inflacionário, ao mesmo tempo em que seria completamente contrária aos interesses dos assalariados e mais pobres em geral.

Voltando ao caso brasileiro concreto, a inflação de hoje evidentemente nada tem a ver com o que foi dito no parágrafo anterior. Nesta situação uma contenção significativa da demanda agregada não tem como exercer qualquer efeito significativo sobre a trajetória dos preços, e agravaria a já delicada situação do mercado de trabalho. Conforme explicado em outro artigo (“A exagerada, insustentável e efêmera redução da taxa de juros no Brasil“), a atual situação deriva de um conjunto de circunstâncias que foi sendo gradativamente montado mas cujo botão de detonação foi acionado pela gestão absolutamente desastrosa da política monetária, tendo em vista o seu próprio mandato de manter a inflação dentro da meta. A exagerada, insustentável e, portanto, efêmera redução da taxa de juros praticada em 2020 contribuiu para um fortíssimo choque em diversos preços básicos da economia, sobretudo de energia e alimentos, em um momento de absoluta fragilidade dos assalariados e informais tendo em vista a possibilidade de resistir à contração do seu poder de compra.

O raciocínio dos economistas convencionais tende a utilizar uma falsa simetria entre, de um lado, a situação de elevada informalidade e desemprego do trabalho – que de fato impede a recomposição do poder de compra dos salários diante do aumento do custo de vida – e de outro, o baixo ritmo de crescimento da demanda – que não impede o repasse dos custos aos preços na maioria dos setores produtivos. Seja porque seus preços são determinados por regras ou circunstâncias de mercado que os fazem seguir os preços externos, seja porque o grau de utilização da capacidade pouco afeta a intensidade do repasse dos custos aos preços, seja porque a própria capacidade produtiva se ajusta rapidamente às novas condições e permite retomar mais facilmente níveis normais de utilização, um crescimento fraco da demanda não é empecilho para a propagação dos choques referidos, em boa parte dos casos. A combinação desta condição assimétrica com a natureza dos choques que foram sentidos tem estabelecido um resultado distributivo desastroso. Certos setores como, por exemplo a agropecuária, têm sua rentabilidade em significativa alta, enquanto que os rendimentos reais dos assalariados e dos mais pobres se deterioram rapidamente.

As variáveis mais importantes para compreender o choque que de fato provocou a inflação brasileira recente são a taxa de câmbio e os preços das commodities determinados nos mercados internacionais. Ainda que ao longo de 2020 e também mais recentemente a taxa de câmbio tenha se mostrado mais volátil do que seu comportamento usual, não é exatamente esse o aspecto fundamental do problema. O que pressiona os preços domésticos é a desvalorização da taxa de câmbio, não a sua volatilidade. Ocorre que em 2020 a taxa de câmbio desvalorizou fortemente e junto com a queda dos preços das commodities. Quando os preços das commodities se recuperaram fortemente, no segundo semestre, o câmbio não revalorizou, diferentemente do que ocorreu com o conjunto das moedas dos países emergentes. Então, de certo modo, podemos dizer que o problema não foi a volatilidade, mas justamente a falta dela: uma desvalorização que poderia ser apenas temporária mostrou-se permanente, gerando forte elevação dos preços das commodities em reais.

A propagação desta circunstância para a inflação doméstica tem decisiva contribuição da política de preços de combustíveis praticada pela Petrobrás. Desde o ano de 2016 a empresa repassa para os preços domésticos as oscilações de preços internacionais dos combustíveis e este tem sido, com toda certeza, um canal de transmissão fundamental para o problema aqui considerado. Tem sido comum, entretanto, a crítica à atual política com base em comparações com períodos anteriores. Este tipo de argumento pode ter sentido no debate político, mas também é preciso atenção aos contextos diferentes. Tem sido observado, por exemplo, que houve no passado um longo período, entre 2003 e 2006, no qual o gás de cozinha não foi reajustado. Observe-se que isto é de fato significativo tendo em vista que naquele mesmo intervalo o preço do petróleo em dólares dobrou, nos mercados internacionais. Entretanto, dada a contínua valorização da taxa de câmbio, o preço do petróleo em reais cresceu apenas 25% naqueles quatro anos, facilitando significativamente a tarefa de estabilizar os preços domésticos dos combustíveis. No período recente, ao contrário, o preço do petróleo cresceu apenas 14% em dólares mas, em conjunto com a forte desvalorização da taxa de câmbio, implicou um crescimento de 76% do preço do insumo em reais. Nessas condições, mesmo um governo comprometido com a estabilidade dos preços dos combustíveis, que não é evidentemente o caso do atual, teria muito mais dificuldade para conter os preços dos derivados de petróleo. De modo que o problema dos preços dos combustíveis diz respeito tanto à política da Petrobrás quanto à trajetória da taxa de câmbio.

Outra circunstância mencionada com frequência como um dos componentes fundamentais para explicar o comportamento da inflação, via preço da energia elétrica, é a crise hídrica. De fato, com os reservatórios reduzidos, o sistema elétrico passa a utilizar mais intensamente as usinas de geração térmica e o custo dessa utilização tem sido mais alto, repassando-se este para os usuários tanto do setor produtivo quanto para os consumidores diretamente. Mas por que exatamente o custo de geração térmica é maior do que as hidrelétricas? Certamente que em parte isto pode estar relacionado ao funcionamento das próprias usinas e suas características, independente de aspectos conjunturais. Mas é difícil não cogitar também alguma relação dos custos de utilização destas usinas com os preços das commodities em reais. As usinas térmicas consomem carvão e gás e o custo com a utilização desses insumos também está sujeito às flutuações de preços externos convertidos pela taxa de câmbio, discutidos acima. De modo que, se a escassez hídrica ocorresse em um outro momento em que estes preços estivessem mais baixos, o impacto do uso das térmicas poderia ser menor. Assim, a falta de chuva também pode ser interpretada como um fator adicional a intensificar a propagação dos choques aqui discutidos, ao invés de ser um fator exclusivamente autônomo.

Por fim, os preços dos alimentos. Muitos dos alimentos consumidos no Brasil são também mercadorias exportadas e assim cujos preços para o mercado doméstico acabam acompanhando automaticamente os preços internacionais convertidos pela taxa de câmbio. E mesmo aqueles itens que são produzidos por uma fração da agropecuária mais voltada para o mercado local também é em alguma medida integrada com os mercados internacionais, pelo lado dos custos. Pelos pontos que foram observados acima todos os produtores rurais têm enfrentado elevação dos custos com energia, transportes, fertilizantes, etc. e repassam esses aumentos aos preços. De modo que tanto os alimentos que são simultaneamente exportados e consumidos internamente quanto aqueles que são produzidos exclusivamente para o mercado local, sejam industrializados ou in natura, também têm seus preços afetados por preços internacionais e taxa de câmbio.

Em síntese, portanto, todos os grupos de preços que vêm liderando a alta da inflação estão em alguma medida relacionados aos preços de commodities e taxa de câmbio. Os impactos distributivos têm sido muito contundentes em função das condições de propagação pelo sistema de preços (mesmo com a demanda fraca, conforme se observou), contrastando com a fragilidade da capacidade dos assalariados de recompor as suas perdas. Então, é extremamente saudável que o problema da inflação esteja sendo tratado como um problema de economia política, mas isso exige observar tanto aspectos de natureza externa quanto doméstica, tanto de natureza estrutural quanto conjuntural, ao lado da gestão corrente da política macroeconômica. Diferentes combinações entre a conjuntura internacional, a inserção externa do país, as regras institucionais domésticas de preços administrados, a gestão dos sistemas de geração e distribuição de energia, o poder de barganha relativo dos diferentes grupos domésticos, podem implicar em diferentes resultados em termos de inflação e distribuição.

Combinações diferentes entre estes diferentes elementos podem levar a resultados bastante diferentes e, por isso, é difícil apontar apenas um fator para a atual situação. Mas, ainda assim, uma política econômica que tivesse por objetivo manter a inflação na meta precisaria ter levado em conta este conjunto de circunstâncias e ter sido ainda mais cautelosa com a possibilidade de uma desvalorização cambial como a que assistimos. A redução da taxa de juros há tempos vem se demonstrando uma medida insuficiente de estímulo à recuperação da economia. E a crítica corrente à nova postura da política monetária não pode se resumir à afirmação de que a elevação da taxa de juros seja errada porque a inflação não é causada por excesso de demanda. O que se deve debater é algo mais específico: qual o nível adequado de taxa nominal de juros que deve ser praticado para gerar uma trajetória de taxa de câmbio que seja favorável ao ajuste dos diferentes choques/ou para reverter os choques passados? O regime de metas de inflação em grande parte do tempo foi bem sucedido em manter a inflação dentro da meta não porque seja um instrumento de gestão de demanda, mas porque estabeleceu uma dinâmica de taxa de câmbio adequada para cumprir este objetivo. Eventuais críticas a efeitos colaterais desse regime precisam partir de uma compreensão sobre como concretamente o sistema funciona, e não em teses absolutamente pouco convincentes baseadas na frágil macroeconomia convencional.

Neste momento, o sucesso ou não da política monetária em conter a inflação depende de uma espécie de jogo entre os ganhos com a dívida pública doméstica e a expectativa de ganhos com ativos em dólares que, em algum momento, precisa ser resolvido. Também neste campo haveria outras medidas a serem estudadas, relacionadas a taxações e controles de capitais, em conjunto com a política monetária e intervenções mais diretas no mercado cambial. No contexto concreto, uma perigosa transição para um regime de desvalorizações sequenciais da taxa de câmbio e de intensificação dos mecanismos de realimentação doméstica não tem sido um risco tão fora de questão, no Brasil. Nessa perspectiva deve-se reconhecer, diferentemente do que tem dito a maior parte dos economistas heterodoxos, a necessidade de alguma correção no nível da taxa básica de juros, tendo em vista o que foi praticado em 2020, devido à sua conexão com a dinâmica da taxa de câmbio. Mas evidentemente que isto em nada reduz a importância de adotar, simultaneamente, outras medidas.

Na realidade o que precisaria ser estabelecido é todo um novo pacto de salários e preços, incluindo as regras de preços administrados e uma política monetária que suavize, ao invés de potencializar, os choques externos, ao lado de uma política fiscal que produzisse de fato a expansão do emprego. Se apenas esta última fosse realidade, as perdas materiais recentes da população já poderiam ser gradativamente recuperadas. Mas infelizmente essa é uma fantasia muito distante da realidade do Brasil, onde a tese da austeridade fiscal reina absoluta e o presidente do seu Banco Central não sofre qualquer pressão nem por deixar de cumprir a meta de inflação, nem por assumidamente compartilhar valiosas informações sobre as decisões da política monetária com conhecidos proprietários privados de ativos.

(*) Economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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