Opinião
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4 de outubro de 2021
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08:14

Ilhas de prosperidade em meio a um oceano de dificuldades (por Fernando Maccari Lara)

, durante toda a crise da pandemia a agropecuária seguiu crescendo sempre a um ritmo de cerca de 2% ao ano. (Foto: Antonio Costa/Fotos Públicas)
, durante toda a crise da pandemia a agropecuária seguiu crescendo sempre a um ritmo de cerca de 2% ao ano. (Foto: Antonio Costa/Fotos Públicas)

Fernando Maccari Lara (*)

Parece bastante evidente que os eventos dos últimos já quase dois anos de pandemia tiveram consequências nefastas para grande parte da população, sob uma diversidade de ângulos possíveis, não apenas o econômico. Tendo em vista, entretanto, apenas aspectos mais estritamente econômicos, será possível identificar frações da sociedade que porventura tenham saído da pandemia melhor do que entraram? É claro que em qualquer situação na qual haja perdas generalizadas sempre existe a possibilidade de qualificar como vencedores aqueles que perderam menos em termos absolutos e que, portanto, melhoraram sua posição em termos relativos. Mas a questão que aqui se pretende levantar é mais específica: será que existem segmentos da sociedade que tenham registrado ganhos em termos absolutos, do ponto de vista da renda gerada e apropriada pelo processo econômico?

Uma análise preliminar a respeito pode tomar como ponto de partida o que ocorreu com o PIB e seus grandes componentes. De acordo com as contas nacionais trimestrais, fica bastante claro que o ponto mais crítico da crise econômica derivada da pandemia foi o segundo trimestre de 2020, quando o indicador do produto agregado esteve 10,9% abaixo do que havia sido registrado no mesmo trimestre do ano anterior. Na indústria a queda foi de 14% por este mesmo critério, enquanto que nos serviços registrou-se contração de 10,3%. Contrasta de forma muito contundente com esses números o desempenho da agropecuária, que cresceu 2,55% nesta mesma base de comparação. Considerando o critério dos quatro trimestres acumulados em relação aos quatro anteriores, durante toda a crise da pandemia a agropecuária seguiu crescendo sempre a um ritmo de cerca de 2% ao ano, enquanto que o PIB chegou a cair 4,1% no resultado de 2020 comparado a 2019.

Evidentemente que tal desempenho peculiar da agropecuária está relacionado, em alguma medida, ao caráter de absoluta necessidade da produção de alimentos, parcela importante do setor e cuja demanda não foi afetada de forma negativa. Em segundo lugar, o setor de forma geral não esteve sujeito, por características concretas suas, a limitações que evitassem aglomerações, como foi o caso de grande parte da indústria e dos serviços. Independentemente das múltiplas razões que se possa elencar, entretanto, o que os dados deixam bastante evidente é que não houve perdas absolutas para a agropecuária como um todo, em termos de volumes de produção.

Esta última constatação é importante, mas não conta ainda a história completa, pois temos que analisar o que ocorreu com os preços. Em tese seria possível que esta não interrupção do ritmo de crescimento da atividade agropecuária pudesse ter vindo acompanhada de um movimento desfavorável de preços relativos, compensando ao menos parcialmente aquela situação vantajosa das quantidades. Entretanto, o que se passou foi justamente o contrário.

Para avaliar esta circunstância também podemos recorrer aos dados das contas nacionais trimestrais. Dali podemos obter o assim chamado deflator implícito do PIB, que é uma medida abrangente do comportamento dos preços na economia. Sua dinâmica ao longo dos anos recentes tem se mostrado semelhante ao do IPCA, que é o índice de inflação oficial do Brasil. Ao início das dificuldades da pandemia, o deflator do PIB registrava crescimento anual em torno de 4,5%. Acelerou dali para a frente, sobretudo no ano de 2021, alcançando um crescimento de 8% ao ano no registro de junho, que é o último disponível até o momento. Observando o comportamento do deflator específico da agropecuária, entretanto, o que se percebe é algo bastante distinto. Partindo de um crescimento similar aos preços da economia como um todo, de cerca de 4,5% ao fim de 2019, o indicador acelera de forma muito mais drástica já ao longo de 2020 e registra naquele ano um crescimento de 32,3%. Ao longo de 2021 há uma nova aceleração e em junho o crescimento do deflator específico da agropecuária alcança 44,3% ao ano. Apesar deste índice específico da agropecuária ser bastante mais volátil do que aquele relativo ao do PIB, ao longo de toda a série que começa em 1997, em nenhum momento houve uma diferença tão grande entre o crescimento destes dois indicadores como a que foi verificada nesta última divulgação.

Como se poderia explicar tamanha aceleração dos preços desta parcela da produção brasileira? Trata-se de um fenômeno estritamente doméstico? De forma alguma pois parte bastante considerável dos produtos agropecuários têm seus preços determinados nos mercados internacionais, em dólares. E o que se observa ao longo de todo o período aqui avaliado é um crescimento expressivo dos preços das assim chamadas commodities em geral, apesar de uma queda temporária bastante brusca nos primeiros meses de 2020. Os índices de commodities divulgados pelo FMI registram taxas de crescimento bastante expressivas entre dezembro de 2019 e junho de 2021: 34,8% para o conjunto das commodities primárias, 26,5% para produtos alimentícios e 19,27% para matérias-primas de origem agrícola.

Há, entretanto, uma circunstância mais particular ao Brasil que exacerbou os efeitos da alta dos preços agropecuários em dólares no mercado doméstico: a forte desvalorização do Real. No momento em que houve uma queda brusca dos preços das commodities, no início de 2020, houve generalizada desvalorização das moedas dos países emergentes, incluindo o Brasil. Ao longo daquele mesmo ano, entretanto, a forte recuperação dos preços em dólares foi acompanhada de modo geral de revalorização das moedas dos países emergentes, mas o mesmo não aconteceu com o Real, que permaneceu no patamar mais desvalorizado. Desse modo é possível afirmar que os preços agropecuários cresceram relativamente muito mais no Brasil comparativamente ao conjunto da economia não apenas pelo que ocorreu com os preços em dólares, mas por uma combinação entre os movimentos dos preços internacionais das commodities agrícolas e da taxa de câmbio do Real em relação ao dólar.

Para completar essa avaliação preliminar sobre o desempenho da agropecuária brasileira é preciso ainda fazer alguma consideração sobre o comportamento dos custos de produção. Dado que há outros preços importantes que também acompanharam os movimentos de taxa de câmbio e commodities (como no caso dos combustíveis, por exemplo), a rentabilidade da atividade poderia em tese até ter sido reduzida, caso os custos de produção tivessem crescido mais intensamente do que os preços dos produtos. Esta hipótese não encontra respaldo, entretanto, nos relatórios recentes da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Considerando os dados das atividades agrícolas até junho de 2021, a entidade reconhece de forma bastante explícita que o crescimento dos custos foi intenso, mas não suficiente para impedir o aumento geral de rentabilidade. Com respeito à atividade pecuária, vale a mesma constatação para as condições verificadas até março de 2021, sendo apontada entretanto uma inversão nessa dinâmica de preços e custos quando se considera a análise até junho.

Diferenças pontuais como essa no comportamento da agricultura e da pecuária entre um trimestre e outro devem servir como advertência para as limitações de uma análise agregada como a que aqui se fez. É certo que existe bastante heterogeneidade dentro do que se define como atividade agropecuária, tanto no que diz respeito aos resultados econômicos de diferentes culturas e atividades específicas quanto entre os resultados que podem implicar as variadas escalas de produção e os diferentes perfis de produtores rurais. Nesse sentido há uma outra observação dos relatórios recentes da CNA que parece importante referir. Muitos produtores rurais costumam negociar antecipações de receitas, tomando como base os preços esperados para o final da colheita. Se os preços sobem além do que era esperado ao longo do processo produtivo, os benefícios deste movimento acabam sendo apropriados pelos agentes financeiros que estejam na outra ponta da operação, e não pelos produtores rurais, efetivamente. Dessa forma fica claro que os diversos mecanismos financeiros presentes no processo da atividade agropecuária como um todo não devem ser negligenciados, quando se trata de identificar a real apropriação da renda gerada na atividade.

Destacadas todas essas particularidades, entretanto, ainda podemos constatar que o efeito combinado entre os movimentos explosivos dos preços e o persistente crescimento da produção elevaram a participação da agropecuária no PIB em 2,7 p.p. em um intervalo de apenas 18 meses. Considerando os quatro trimestres encerrados em junho de 2021 a participação da atividade no total do PIB a preços correntes alcançou o percentual de 7,13%, maior nível em toda a série histórica ao longo da qual a média desta participação é de 4,9%. Ainda que tenha havido também importante crescimento dos custos da atividade, as informações disponíveis sugerem que nesse setor, no qual a produção não caiu e cuja participação no conjunto da economia se ampliou tão drasticamente, também a rentabilidade resultou mais elevada ao longo do período. As perspectivas de aumento da área plantada de grãos e um desempenho recente bastante expressivo do setor de máquinas agrícolas também são elementos que fortalecem a hipótese de que o contexto da agropecuária seja um recorte promissor (ainda que não o único) para encontrar vencedores, em meio à crítica conjuntura da pandemia no Brasil.

É evidente que a história não acaba e que, nos próximos meses, essas circunstâncias podem ser ao menos parcialmente revertidas. Mas considerando o recorte temporal sobre o qual se tem informações até o momento, os grandes fatos da conjuntura para a grande maioria da população têm sido a dificuldade de encontrar ocupações e a carestia. O forte crescimento do custo de vida, especialmente pelos preços dos alimentos e de outros itens básicos na cesta de consumo, vem acompanhado de baixíssimas possibilidades de obter a reposição do valor nominal dos rendimentos. De outro lado, temos essa realidade contrastante da atividade agropecuária, na qual os custos de produção também cresceram, mas cujos volumes de produção e preços de venda estiveram mais do que compensando essa circunstância. Assim, ao menos em certa fração da atividade agropecuária, parece plenamente factível de ser encontrado um certo conjunto de ilhas de prosperidade, em meio a um oceano de dificuldades.

(*) Economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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