Opinião
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3 de maio de 2024
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19:45

Porto Alegre: presença negra, territórios negros (por Tarson Núñez)

Vista da Colônia Africana. (Imagem: Depósito do Maia)
Vista da Colônia Africana. (Imagem: Depósito do Maia)

Tarson Núñez (*)

Acabamos de comemorar os 252 anos de Porto Alegre, um momento propício para a reflexão sobre a trajetória e a identidade de nossa cidade. Um momento importante para o resgate das histórias daqueles que permaneceram quase invisíveis, aqueles cuja presença na cidade tendeu sempre a ser colocada em segundo plano. A capital dos gaúchos é um dos territórios mais diversos do mundo em termos étnicos, sociais e culturais. Temos em nossa cidade descendentes de pessoas dos mais variados cantos do mundo. No entanto a presença negra em Porto Alegre, assim como a indígena, tende a ser muito subestimada. Tradicionalmente nossa cidade sempre olhou a si mesma como “uma cidade europeia”, reconhecendo apenas uma parte da sua herança cultural. Mas isto está mudando.

Nos últimos anos temos assistido, paralelamente ao crescimento político dos movimentos negros, um aumento e aprofundamento dos estudos acadêmicos e históricos sobre a presença negra em nossa cidade. Estudos que não apenas resgatam a presença das populações negras mas também, especialmente, sua contribuição na constituição da identidade da cidade. Este breve ensaio tem como ponto de partida alguns destes estudos [1], mas também resgata alguns autores mais tradicionais, como viajante Auguste de Saint-Hillaire que passou por aqui no início do século XIX ou o cronista Achylles Porto Alegre, que escreveu no início do século XX sobre a cidade de sua infância. Dois tipos de fontes distintas, mas que convergem na constatação da importância do papel da população negra na construção de nossa cidade.

Durante o século XIX, cerca de um terço dos habitantes de Porto Alegre eram pessoas negras. Essa presença negra era profundamente marcada pela escravização, pela opressão racial. Os negros que aqui estavam faziam parte da enorme diáspora do povo negro, arrancado da África e trazido para trabalhar nas Américas. No entanto, a presença dos povos africanos não se resume ao trabalho escravo. Os negros trouxeram consigo a riqueza da sua cultura e seus valores, que marcaram profundamente a formação da nossa cidade. Porto Alegre não pode ser compreendida de forma real, profunda, sem que se olhe para a contribuição do povo negro.

Esta contribuição vai muito além dos estereótipos acerca da escravidão. A imagem tradicional que se tem da sociedade escravista vê apenas o negro apenas como mão-de-obra. Uma visão que resume a presença negra no trabalho rural, nas charqueadas, nas plantações de cana e café, vivendo nas senzalas de uma grande propriedade rural. Esta visão tradicional não dá conta de toda a riqueza e complexidade do papel cumprido pelos negros na construção da cidade de Porto Alegre desde o início de sua história.

Em um território urbano como o de Porto Alegre do século XIX havia muitas outras formas de inserção do negro na vida da cidade. Uma parte importante dos negros escravizados eram os chamados “escravos de ganho”, que trabalhavam nos mais diversos ofícios e tinham que repassar o dinheiro para os seus proprietários. Eram escravos, mas viviam livremente exercendo seus ofícios, trabalhando como sapateiros, carregadores, alfaiates, quitandeiras, nas mais variadas atividades urbanas. Eram pessoas que ainda estavam submetidas à escravidão, mas no dia-a-dia tinham um grau significativo de liberdade, organizando livremente as suas atividades. Sendo assim, conseguiam organizar uma vida social, preservar sua cultura e seus valores. E, mais do que isto, ajudavam a dar uma forma muito característica à vida na cidade. Sua presença influiu de forma decisiva na maneira como Porto Alegre se constituiu como cidade. 

Boa parte do comércio de alimentos na cidade era realizado por estas pessoas. No cais de entrada da cidade, onde hoje é a praça da alfândega, havia o Largo da Quitanda, onde mulheres, conhecidas como negras minas, vendiam verduras frescas, ovos e alimentos. O naturalista francês Saint-Hilaire, que esteve em Porto Alegre em 1820, descrevia assim a cidade “é na Rua da Praia, próximo ao cais, que fica o mercado. Nele vendem-se laranjas, amendoim, carne seca, molhos de lenha e hortaliças. Como no Rio de Janeiro, os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados junto à mercadoria à venda, outros possuem barracas, dispostas desordenadamente no pátio do mercado”. (Kuhn e Scott, p.106). 

Boa parte deste comércio era realizado por mulheres. Segundo Achylles Porto Alegre elas “atravessavam as ruas da cidade, com colares e pulseiras de miçanga e tabuleiros rasos de frutas ou caixas envidraçadas de doces na cabeça. Outras iam aboletar-se com seus tabuleiros nas portas das tabernas de esquina onde, aos domingos, algumas se estabeleciam com seus caldeirões de canjica ou mocotó, a vintém e a tostão o prato. Como não havia naquele tempo, nas ruas, as carroças de verduras, as ‘minas’ é que andavam de casa em casa fornecendo à freguesia.”

Boa parte do abastecimento da cidade era realizado por negros libertos, de várias origens, que viviam do pequeno comércio em que se deslocavam em canoas pelo rio até as propriedades rurais na periferia da cidade trazendo ovos, galinhas, lenha, carnes e produtos agrícolas para vender na cidade. Grande parte da alimentação de Porto Alegre, portanto, era provida por mãos negras.

Outra atividade fundamental desempenhada pelas pessoas negras, durante e depois da escravidão, era o transporte de cargas. Tanto no embarque e desembarque das mercadorias no porto da cidade como nas atividades do dia-a-dia, eram os negros que realizavam. Como conta Achyles Porto Alegre, “no que eles se distinguiam era nos carretos. Naquele tempo não existiam carros de mudanças. Quando alguém se mudava os seus cacarecos eram transportados nas costas. Raro era o dia em que não se viam as ruas povoadas de cargueiros, curvados sob as mais pesadas cargas. As pipas de vinho ou de aguardente, os pianos, os fardos enormes, eram geralmente transportados por quatro deles”.

Estas pessoas muitas vezes conseguiam com seu trabalho acumular algum dinheiro e comprar sua liberdade, através das chamadas Cartas de Alforria. Outros recebiam o apoio das sociedades abolicionistas, organizadas por cidadãos que faziam coleta de dinheiro para comprar a liberdade de escravos. Mas na maioria dos casos, os negros conseguiam comprar sua liberdade com os frutos do seu próprio trabalho. Entre 1858 e 1888 mais de 3.000 pessoas negras ganharam a liberdade através das cartas de alforria. Entre 1805 e 1810 um entre cada quatro pessoas negras que viviam em Porto Alegre eram negros libertos.

Mas havia outras formas de conquistar a liberdade: a luta, a rebelião e a fuga. O Areal da Baronesa na Cidade Baixa, território que até hoje tem forte presença negra, era originalmente um território quilombola. O jornalista Achylles Porto Alegre, escrevendo sobre suas memórias na cidade no início do século XX, conta que aquela região, em meados do século XIX era “um matagal cerradíssimo, onde os negros fugidos iam esconder-se de seus implacáveis e desumanos senhores”. 

Havia então escravos rurais, escravos de ganho, negros libertos que compraram sua alforria, negros fugidos nos quilombos dos arrabaldes, negros nascidos livres vindos do Uruguai, enfim, toda uma diversidade de situações de pessoas negras de diferentes nações, culturas e origens, que se misturavam na cidade de Porto Alegre marcando uma forte presença das culturas vindas da África.

Essas pessoas tinham sua vida comunitária, suas atividades culturais e instituições. Na atual rua Vigário José Inácio, a Irmandade do Rosário foi capaz de erigir em 1818 uma igreja, construída com recursos financeiros e pelo trabalho da própria comunidade. A Irmandade do Rosário foi criada em 1786 por um grupo de 220 pessoas negras, livres e escravizadas. E por muitos anos foi uma das principais instituições sociais da população negra da cidade.

E junto com esta devoção católica tinham também suas próprias festividades, como as congadas, quicumbis ou maçambiques, que misturavam a liturgia católica com elementos religiosos de matriz africana. Nestas atividades, as pessoas que cumpriam o papel de Rainha Ginga e de Rei Congo, eram reconhecidas como lideranças públicas não apenas pela comunidade negra, mas também pelas autoridades brancas. Eram eles que negociavam as autorizações para ocupar os espaços públicos com as congadas, que se tornaram momentos festivos importantes na cidade, atraindo toda a população.

Grande parte das atividades que movimentavam a economia da cidade eram realizadas por pessoas negras, escravizadas ou livres. Eram negros carpinteiros, marinheiros, remadores, calafates, campeiros, alfaiates, serventes, pedreiros, quitandeiras, charqueadores, domadores, sapateiros, chacareiros, pintores, roceiros, padeiros, marceneiros, amas de leite, babás, barbeiros, seleiros, ourives, oleiros, costureiras, cozinheiras, carroceiros, ferreiros, litógrafos, capatazes. O trabalho das mãos negras construiu nossa cidade.

Territórios negros

Falar de territórios negros é falar de quilombos. Já mencionei o Areal da Baronesa, mas havia também quilombos nas ilhas, assim como nos morros que cercam a cidade. Comunidades de negros rebelados e fugidos, que estabeleceram sua presença no território e se consolidaram após o fim da escravidão. Durante muitos anos, mesmo nos tempos da escravidão, os quilombolas mantinham sua resistência e liberdade. 

Mas a presença negra na cidade não se resume aos territórios dos negros fugidos. Uma vez que os negros compunham uma parte importante da população, em um contexto de uma sociedade racista, as comunidades negras tendiam a se concentrar em determinados territórios. Esta situação resultava da segregação de uma sociedade racista, mas por outro lado formou espaços e territórios onde a identidade negra, seus valores e sua cultura resistiram e foram preservados.

Um espaço importante no centro da cidade era o Beco do Rosário, na região da atual avenida Alberto Bins. Ali moravam negros libertos, alforriados, escravos de ganho, formando uma comunidade com forte identidade própria que ocupava um espaço importante na parte mais central da cidade. A primeira onda de modernização urbana de Porto Alegre, com a abertura da avenida que hoje se chama Alberto Bins, levou à demolição das suas casas e sua expulsão para a periferia, que era a região que cercava o centro da área urbana da cidade.

Um espaço importante que se constituiu a partir de então, e que marca profundamente a presença negra em Porto Alegre, é a região que hoje se constitui no bairro Cidade Baixa, particularmente a região da chamada Ilhota. Este espaço no início do século XIX ficava fora dos limites urbanos da cidade, e ficava muito próximo dos matos do Areal da Baronesa, região que já abrigava quilombos. Assim, depois do final da escravidão e com o crescimento urbano de Porto Alegre, esta região se constituiu em uma comunidade predominantemente negra, integrada à vida da cidade.

Além da região da cidade baixa, atravessando os campos da várzea (atual Parque da Farroupilha) ficava outro território negro, a chamada Colônia Africana. Toda a região que hoje compõe atualmente o bairro Bom-Fim, passando pelo Rio Branco e até o Mont Serrat era um território negro. Até hoje ainda existem por ali algumas famílias e as memórias de comunidades, irmandades, grupos carnavalescos, casas de religião. As comunidades negras ocupavam o que então era a periferia da zona urbana da cidade, distantes do centro onde moravam os brancos. E nestes espaços vivenciavam a sua cultura, afro-brasileira, com suas músicas, sua cultura, sua religiosidade. 

Hoje a região da antiga Colônia Africana tem uma população de alta renda, que no decorrer do século XX foi se estabelecer na região. E mais uma vez as comunidades negras foram sendo deslocadas para a periferia, para além dos limites urbanos da cidade. Se formaram então as comunidades da Vila Bom Jesus, a Vila São José, o Campo da Tuca e o Morro da Cruz, as vilas nos morros da Glória, Teresópolis e Cavalhada. Mais para o final do século XX, já nos anos 60 e 70, mais expulsões formaram as comunidades na Zona Norte em direção à Alvorada, a Restinga e a Lomba do Pinheiro. 

Esse deslocamento permanente de alguma forma reproduz, na história de construção de nossa cidade, a diáspora africana. De tempos em tempos populações são deslocadas dos seus territórios, expulsas, marginalizadas de forma estrutural e sistemática. Mas mesmo esta condição de opressão estrutural não é suficiente para apagar completamente a presença e a importância da contribuição do povo negro na construção da identidade social e cultural da nossa cidade.

[1] Existem muitos estudos de qualidade sobre o tema. Neste artigo me baseei especificamente nos textos “Porto Alegre no século XIX: territorialidades e articulações negras no espaço urbano” de Daniele Machado Vieira, “Africanas, Africanos e Afrodescendentes na formação de Porto Alegre: escravidão, plebe negra e comunidades de matriz banto entre 1772 e 1802” de Luciano Costa Gomes e “Desventuras de libertos numa sociedade escravista: alforria, controle social e experiências negras em Porto Alegre (séc.XIX) todos parte do livro “Porto Alegre 250 anos: de uma vila escravista a uma cidade de imigrantes”, organizado por Fábio Kühn e Ana Sílvia Volpi Scott. Além disso usei também o clássico “História Popular de Porto Alegre” de Achiles Porto Alegre, jornalista que escreveu, no final dos anos 1910, textos sobre a história da cidade no século XIX.

(*) Doutor em Ciência Política pela UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles e membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT)

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