Opinião
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24 de outubro de 2021
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07:59

A regressão da complexidade econômica do Brasil (por Ricardo Dathein)

Fila de trabalhadores em busca de emprego.
(Foto: Cesar Itiberê / Fotos Públicas)
Fila de trabalhadores em busca de emprego. (Foto: Cesar Itiberê / Fotos Públicas)

Ricardo Dathein (*)

O Brasil não está passando por uma mera crise econômica cíclica, ampliada pela pandemia. Temos uma regressão de longo prazo, levando-nos hoje a uma depressão histórica. Os problemas políticos são também resultantes dessa dinâmica e da incapacidade da sociedade e de sucessivos governos darem uma solução. A opção pelo social-liberalismo, a partir do fim da ditadura militar, cobra seu preço, assim como em muitas partes do mundo, incluindo Europa e EUA.

Um país se desenvolve quando suas estruturas produtiva e ocupacional se tornam mais diversificadas, complexas e sofisticadas. Os dados mostram isso, para o mundo, ao longo do tempo. Para o Brasil, no entanto, já há muito, tem ocorrido o oposto. O Índice de Complexidade Econômica do Brasil foi de 0,73 em 1998, posicionando-se em 25º lugar no ranking mundial. Em 2010 esse índice foi o mesmo, mas sua posição recuou para o 36º posto, tendo em vista o avanço de outros países. Em 2019, o índice diminuiu para 0,51, passando o país para a 49ª posição (https://oec.world/en/rankings/eci/hs6/hs96).

O parâmetro mais conhecido que demonstra essa regressão é o da desindustrialização, que, em nosso caso, é uma das mais intensas do mundo, se não a maior. Em 1980, segundo dados da ONU, a participação do valor agregado manufatureiro do Brasil no mundo foi de 3,3%. Em 2019, chegou a apenas 1,4%, com uma clara tendência de redução ao longo do tempo. Nos anos recentes, ao contrário do Brasil, têm ocorrido inclusive um aumento da participação da indústria no PIB mundial, isso para não falar dos países asiáticos de alto desempenho. De fato, dos anos 1970 até o início dos anos 1990 houve uma redução do peso do setor manufatureiro no PIB mundial. Depois, houve uma certa estabilização, até início dos anos 2000, para, após esse período, voltar a se elevar. Por exemplo, em 2005 a participação do valor agregado manufatureiro mundial foi de 16,2% e, em 2019, esse valor aumentou para 17,3%. No Brasil, ao contrário, esse peso foi reduzido, entre os mesmos anos, de 16,1% para 12,1% (https://unstats.un.org/unsd/snaama/).

Ou seja, não se trata mais de discutir se, no contexto de uma desindustrialização mundial, o Brasil estaria no mesmo rumo. Nem se trata mais de discutir se a nossa desindustrialização seria “precoce”, ao contrário da desindustrialização dita “natural”, dos países desenvolvidos. Ao contrário, hoje o Brasil está no rumo oposto ao da média mundial, dos países desenvolvidos e dos asiáticos.

Essa tendência, ao invés de gerar uma solução, parece estar nos levando a uma situação típica de que “quanto pior fica, pior tende a ficar”. Hoje o país parece se conformar em “fazer o que sabe”, pretensamente, ou seja, produzir commodities agrícolas e minerais. O problema é que essas atividades, apesar de seus ganhos de produtividade, criam cada vez menos empregos, menos ainda bons empregos (ocorre pequena demanda por mão-de-obra qualificada), e têm como característica produzir relativamente baixos estímulos para outros setores e para as cadeias produtivas. Também, em geral, existe reduzida geração de inovações (ocorre apenas sua adoção) e o país fica mais dependente dos ciclos econômicos internacionais, com termos de intercâmbio muito voláteis. No entanto, como suas conexões principais são com o exterior, a piora da estrutura nacional pouco lhes atinge diretamente.

Como essa economia engendra baixos investimentos, o emprego assalariado evolui negativamente. Assim, a solução para as ocupações parece ser a do empreendedorismo individual. No entanto, com baixo dinamismo da demanda, esse recurso representa, no geral, um mito, constituindo-se muitas vezes em uma forma de desemprego disfarçado, com baixa renda. Nessa situação, os microempreendedores passam a considerar, por exemplo, que um trabalhador que recebe salário de 2 mil reais, possui direito a férias e 13º salário, é um privilegiado. E que o Estado, os impostos, o emprego público, o salário-mínimo…, são todos entraves aos seus negócios. Além disso, a democracia se enfraquece com a redução do emprego assalariado produtivo, que em geral lhe dá estabilidade.

E temos uma terceira alternativa, o mercado financeiro e, mais especificamente, o mercado de capitais. Nessa “ilha da fantasia” se acredita, sem dúvida, que existe “almoço grátis”, pois nada é necessário produzir. Apesar de ser extremamente diminuto em seu tamanho, possui alta capacidade de influência política. Esse mercado está deslocado da realidade produtiva do país, não atua financiando a produção e não define suas rendas via essa produção, mas por mecanismos que o tornam em geral autorreferido.

Essa realidade é consequência do longo processo de regressão econômica. Além disso, a reforça. Por isso, a dificuldade em encontrar uma solução. Houve breves interregnos, tentativas, mas que foram derrotados. Nesse processo, não só a economia, mas também a política, foi tomada, capturada, por esses setores empresariais, com interesse em manter essa “ordem”. A política, ocupada por “empresários políticos”, distorce a representação social, com agendas deslocadas da grande maioria da população, além de produzir um flagrante déficit de lideranças políticas.

Temos, assim, no Brasil de hoje, as clássicas bases do fascismo: a aliança entre o latifúndio, a pequena burguesia e os interesses rentistas. A elite empresarial não percebe, e não tem interesse em perceber, essa realidade, pois consegue encontrar meios de gerar altas rendas ou com o rentismo, ou com suas conexões econômicas com o exterior. Para essa burguesia, a regressão econômica e política do Brasil efetivamente pouco importa.

O processo de desenvolvimento não pode ocorrer se a sociedade se conformar em “fazer o que sabe”. Ao contrário, tanto para as pessoas e as empresas, quanto para um país, o desenvolvimento é justamente um processo de aprendizado, de se “aprender a fazer o que não se sabe”, fundamentalmente criando novas atividades, mais produtivas, além de avançar nas existentes. Países desenvolvidos são os mais diversificados, complexos e sofisticados em suas estruturas produtivas e ocupacionais; países subdesenvolvidos, o contrário. Por isso, o Brasil está regredindo, como mostram os dados.

Desse modo, o país vai cada vez mais caindo em uma “armadilha malthusiana”, uma situação de “jogo de soma zero”, a qual gera uma necessidade contínua de cortes de gastos, de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, de concentração de renda e de ampliação da pobreza (em um processo de race to the bottom, de “corrida para o fundo, para o mínimo”), pois essa é a maneira de ampliar rendas para o capital, tendo em vista a baixa capacidade de ganhos de produtividade e via inovações. Nessa economia estagnada, a “solução” encontrada é a captura de rendas da órbita produtiva. Para isso, os interesses privados sequestram a agenda pública, com as chamadas “reformas estruturais” se perpetuando, nos condenando ao subdesenvolvimento, até que, em algum momento, a sociedade consiga reagir.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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