Opinião
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10 de outubro de 2021
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07:06

Do euromercado às empresas offshore do Guedes e do Campos Neto (por Maurício Weiss)

O Ministro da Economia, e o Presidente do Banco Central do Brasil possuem empresas offshore em paraísos fiscais. (Pixabay)
O Ministro da Economia, e o Presidente do Banco Central do Brasil possuem empresas offshore em paraísos fiscais. (Pixabay)

Maurício Andrade Weiss (*)

Nessa última semana o tema de offshore e paraísos fiscais tem ganhado espaço na mídia (menos do que o merecido, diga-se de passagem) em decorrência da divulgação de que tanto o Ministro da Economia, quanto o Presidente do Banco Central do Brasil possuem empresas offshore em paraísos fiscais. O presente artigo não tem por objetivo se debruçar em explicações detalhadas do que são, pois já há uma diversidade de matérias que abordam esse tema. 

O propósito aqui é primeiro apontar sobre a origem do mercado financeiro offshore para contextualizar o poder político-econômico das empresas do setor financeiro e relacionar, posteriormente, com a questão da independência dos bancos centrais.

O primeiro mercado financeiro offshore de grande relevância mundial foi o euromercado. De acordo com o economista francês François Chesnais ¹, a criação do euromercado teria sido o início da globalização financeira. Outro economista estudioso do tema, Heleinner (1994) ², argumenta que o marco inicial da globalização financeira foi a decisão do governo inglês de não obstruir o funcionamento de um mercado interbancário paralelo e autônomo em relação aos sistemas financeiros nacionais, o chamado mercado de eurodólares. Nesse mercado, as transações poderiam ocorrer com moedas estrangeiras, em especial o dólar, completamente livre de regulações. 

Para esse mercado foram canalizados os capitais provenientes dos EUA que começavam a fugir das baixas taxas de lucros e das regulações internas do sistema financeiro estadunidense. Os volumes financeiros direcionados a esse mercado offshore, advindos dos bancos e empresas multinacionais, permitiram que ele se tornasse o principal centro offshore internacional. Fiori (1998) ³ considera que devido a essas características, o euromercado foi o embrião do “espaço financeiro mundial”.

A criação desse mercado foi uma iniciativa privada, dada suas características legislativas do direito comum, onde o que não é proibido é permitido. Nesse sentido, as inovações financeiras após serem implementadas pelo setor privado não seriam restringidas pelo governo inglês, o qual via como uma solução positiva para conciliar os objetivos do welfare state, como uma taxa de juros reduzida, e a relevância internacional de seu mercado financeiro. Ou seja, a Inglaterra adotou a estratégia de desregulação ex-post.

Deve-se levar em conta que, embora tenha sido o governo inglês quem não criou obstáculos ao funcionamento de um mercado offshore dentro de seu território, o governo dos EUA, onde igualmente prevalece o direito comum, também não colocou entraves e tampouco fez advertências sobre o movimento dos bancos estadunidenses em busca de local físico para operar com maior liberdade. 

O governo de Kennedy não estava disposto a adotar políticas conservadoras como sugeridas pelos banqueiros, pois tinha como objetivo reforçar a importância do poderio estadunidense tanto na esfera econômica quanto na bélica. A fim de manter os propósitos de expansão econômica e bélica e concomitantemente equilibrar os fluxos do balanço de pagamentos, o governo se viu obrigado a adotar, em 1963, medidas de restrição às saídas de capitais e em 1965 uma maior regulação sobre o sistema bancário. Desta forma, para conciliar os interesses do país com as pressões dos bancos por maior flexibilidade, o governo dos EUA incentivou seus bancos e corporações a operarem nesse mercado offshore londrino. 

No sentido descrito acima, mercado offshore refere-se a um mercado financeiro situado nas fronteiras de um determinado país, mas que está fora da regulação das autoridades financeiras domésticas, ao contrário do que ocorre nos mercados onshore.  Com o passar dos anos cresceram em importância os paraísos fiscais que, diferentemente do euromercado, têm como padrão não fazer distinção entre regulações do mercado financeiro onshore e offshore, pois seu sistema financeiro já é amplamente desregulado, com praticamente inexistência de fiscalização e garantia de anonimato para seus usuários. 

Em decorrência dessas características, esses paraísos fiscais são muito atrativos para recursos de fontes ilícitas ou não declaradas para a receita, que neste caso seriam denominadas de evasão fiscal. Contudo, também há vantagens para pessoas físicas com recursos de origem legal transferirem seus recursos para esses locais. Isso se dá justamente por meio de empresas offshore, cujos rendimentos ficam isentos de recolher imposto de renda enquanto não houver distribuição de lucros. 

No caso de uma pessoa física, ou jurídica, aplicar em fundos de rendimento diretamente no país, há o sistema de come-quotas, no qual o imposto de renda incide sobre o rendimento a cada 6 meses. Porém, se for feita uma aplicação através de uma empresa offshore isso não ocorrerá, possibilitando maiores ganhos acumulados ao longo dos anos, fora as facilidades para transferências de herança. 

Outro aspecto relevante para manutenção de recursos em empresas offshore é que a riqueza financeira fica denominada em dólar. Em eventuais depreciações da moeda doméstica frente ao dólar, isso significa um rendimento adicional, independente dos ganhos obtidos com juros ou com variações nos preços dos ativos. No mínimo pode-se pensar que serve como um hedge (proteção) cambial sem os custos de contratos derivativos de quem quer se proteger contra variações cambiais, mas tem sua aplicação em reais. 

Se por um lado, para quem possui empresas offshore parece ser algo muito atrativo, para o país de origem da riqueza financeira, essas práticas apresentam sérias desvantagens. A primeira e mais clara é a perda de arrecadação com imposto de renda. Não somente as empresas offshore, cuja função principal é a aplicação financeira, mas também para empresas produtivas que mantêm sedes de faixada nesses paraísos fiscais em busca de menores incidências de impostos. É principalmente sobre essas que o Presidente Biden tem buscado atuar como fonte de novos recursos fiscais (The Guardian, CNBC e Fortune).

O segundo aspecto pode ser ainda mais problemático ao país, pois a manutenção de empresas offshore com o propósito de gestão da riqueza financeira serve de incentivo para a saída de divisas do país. Isso é especialmente problemático quando há uma pressão acentuada para depreciação da moeda doméstica. Em momentos de maior exacerbação de incerteza no âmbito internacional, em que há uma elevação da preferência pela liquidez, os investidores internacionais tendem a retirar seus recursos dos países emergentes e direcionarem para os países desenvolvidos. A facilitação da manutenção de empresas offshore se torna um canal adicional para instabilidade da moeda doméstica, pois os próprios residentes passam a pressionar para uma maior demanda por dólares.

Retomando a questão da criação do euromercado, fica claro como o sistema financeiro possui forças para pressionar o Estado a atingir seus objetivos. Mesmo em um contexto de Guerra Fria, em que o dinamismo econômico era um ponto central para fortalecimento do capitalismo, o Estado incentivou alternativas para que empresas buscassem possibilidades de maior rentabilidade, porém, a prioridade continuaria sendo as políticas econômicas de desenvolvimento. Com a financeirização e globalização financeira, os próprios mercados domésticos passaram a ser mais desregulados e a existência de paraísos fiscais é um facilitador adicional.

 Agora cabe a reflexão: um banco central independente da política, ou seja, do voto popular, mas sob influência do sistema financeiro, teria interesse em implementar resoluções que dificultassem a saída de capitais e/ou investimentos em paraísos fiscais e regulamentações maiores sobre empresas offshores?

No caso do Banco Central do Brasil, o Projeto de Lei 19/2019 e a Lei Complementar nº 179/2021 não deram exatamente independência ao BCB, mas sim autonomia formal para que esse atingisse as metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é representado pelo próprio presidente do Banco Central, do Ministro da Economia e do Secretário Especial da Fazenda, ligado ao próprio ministério da economia. Na configuração anterior, havia a presença do ministro do planejamento, com a extinção desse ministério, na prática o ministro da economia, no caso o Paulo Guedes, tem peso 2. Coincidentemente, os dois com maior peso de decisão no CMN possuem empresas offshore em paraísos fiscais. 

Além da autonomia formal para utilização dos instrumentos como “bem entender” para alcançar as metas estabelecidas pelo CMN, a referida lei, dentre outros aspectos, também determina mandatos fixos e não coincidentes de 4 anos para os diretores e para o presidente do BCB; e estabelece que a exoneração de diretores e presidente da instituição só se dará em casos justificados, e com aprovação, por maioria absoluta, do Senado Federal (BCB). 

Se por um lado não se estabeleceu uma plena independência do BCB, por outro, a Lei Cambial (PL 5387/19) o concedeu, dando competência para regulamentar com total autonomia a abertura de contas em moeda estrangeira no Brasil, tanto para pessoas físicas, quanto jurídicas. Também promoveu a facilidade para investidores estrangeiros, a remessa de recursos de residentes para fora, além de uma melhor organização de diversos positivos. 

O ponto central é que a experiência do BCB aponta para o predomínio de presidentes e diretores ligados ao setor financeiro, a famosa “porta giratória”. Com maior autonomia para consecução de política monetária e cambial, impossibilidade de troca dos diretores e presidentes, os políticos democraticamente eleitos ficam mais limitados em influenciar aspectos relevantes para a economia do país. A questão do presidente do BCB e o Ministro da Economia possuírem empresas offshore em paraísos fiscais pode ser algo questionável. Mas a questão estrutural do BCB me parece ser mais grave e sem um vislumbre para que haja uma maior regulação sobre os fluxos de capitais que entram e saem do país e, principalmente, sobre a necessária revisão sobre as regras de empresas offshore em paraísos fiscais. 

Notas

[1] CHESNAIS, F. Introdução Geral. In: CHESNAIS, F (Coord.). A Mundialização Financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.

[2] HELLEINER, E. States and the Reemergence of Global Finance, from Bretton Woods to the 1990’s. Ithaca and London: ComeU University Press, 1994.

[3] FIORI, J L. Globalização, hegemonia e império. In: TAVARES, M. C. e FIORI, J. L. (orgs.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes. 1997.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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