Geral
|
26 de abril de 2024
|
16:25

‘Se não tivesse acordado, acho que nem estaria aqui’, diz sobrevivente de incêndio em Porto Alegre

Por
Luís Gomes
[email protected]
Incêndio destruiu completamente um dos prédios da Pousada Garoa na Farrapos | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Incêndio destruiu completamente um dos prédios da Pousada Garoa na Farrapos | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Júlio César Rodrigues Machado, 62 anos, mora na Pousada Garoa da Av. Farrapos há quatro meses, mas no prédio que não pegou fogo na madrugada desta sexta-feira (26). Ele conta que estava acordado no início da madrugada, pois tinha ficado escutando no rádio o jogo do Inter, que acabou por volta da 1h. “Eu vi que faltou luz e, nesse meio tempo, ouvi gritarem: ‘desce, desce, desce, tá pegando fogo’”.

Leia mais: 
Incêndio causa 10 mortes em pousada na região central de Porto Alegre
Contrato da Prefeitura com pousada incendiada é de R$ 2,7 milhões por ano
Quatro feridos em incêndio na pousada Garoa estão em estado grave
Rede de pousadas onde 10 morreram em incêndio se espalha pela Capital com aluguel a R$ 550

Morador do terceiro andar, passou a bater nas divisórias de madeira para avisar os vizinhos sobre o fogo. Quando conseguiu chegar ao térreo, o fogo já estava quase na porta do seu prédio, vizinho ao que pegou fogo. “Aí começou a estourar os vidros”. Ele conta que conseguiu ver algumas pessoas deixarem o imóvel em segurança, uma delas estava pronta para se atirar dos andares superiores, mas alguém apareceu com uma escada. Outros não tiveram a mesma sorte.

Júlio avalia que uma das dificuldades de deixar o prédio se deveu ao fato de que as escadas eram em formato de caracol, o que torna a descida mais lenta. “Só que elas eram de madeira. O fogo começou embaixo, num colchão, e subiu. Os que estavam lá em cima não conseguiram, ficaram trancados.”

 

Pousada Garoa ocupa dois prédios na Farrapos. Ao centro, imóvel que pegou fogo. Do lado esquerdo, imóvel foi interditado, mas não ficou destruído. Do lado direito, ocupação Sepé Tiaraju | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Também sobrevivente do incêndio, Breno Rivera Rodrigues, 29 anos, diz que, quando o fogo começou, estava no seu quarto no segundo andar, um espaço de “2 metros por 3”, separado dos vizinhos por uma divisória de madeira. Segundo ele, a maioria das vítimas eram idosos que não conseguiram sair do prédio de quatro andares.

“O fogo começou quando eu estava quase dormindo e pegou fogo no colchão, num quarto que não tinha ninguém. Aí eu só me lembro que começou o correrio. Foi questão de minutos pro fogo tomar conta”, relata. Ele conta que conseguiu ajudar “uns dois ou três” a deixarem o imóvel. “Não ajudei mais porque o fogo tomou conta e eu tive que me salvar também. Tudo ficou escuro”.

De acordo com relatos da Defesa Civil, a maioria dos corpos retirados, inteiramente carbonizados, eram de pessoas que estavam dormindo. “Se eu não tivesse acordado, eu acho que nem estaria aqui”, diz Breno.

 

Estrutura da Pousada Garoa contava com muitas parte de madeira |F Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Tiago de Almeida de Sousa, 35 anos, é outro sobrevivente. No final da manhã, ele ainda sentia ardência nas mãos e nos braços pelo contato com as chamas. Também tinha um galo na cabeça e marcas de escoriações de quedas que sofreu ao tentar escapar.

“Eu tava deitado, quase pegando no sono. Um rapaz do outro lado começou a gritar, a gente pensou que era briga. A hora que eu abri a porta, tava pegando fogo em tudo. Tava já com fumaça, não dava pra enxergar nada. Só sei que tive que sair correndo e caí no chão, aí meio que engatinhando saí para a rua”, relata.

Um amigo, chamado João Luiz, com quem trabalhava numa serralheria próxima, não conseguiu sair. “Acho que ele ficou ali dentro porque ele não saiu. Eu conheço ele lá de Alvorada. Morava do lado do meu quarto. A gente estava esperando pegar no sono”, diz.

“Eu tô bem, só estou com as costas machucadas. Bati a cabeça forte. Ainda bem que eu não desmaiei. Queimei os dedos. Isso tudo aqui foi quando eu caí da escada. O fogo pegou nos dedos, o meu rosto também arde um pouco”.

 

Sobrevivente mostra marcas de queimadura e escoriações por queda | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Do outro lado do prédio que incendiou está a ocupação Sepé Tiaraju. Coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vila e Favelas (MLB) — que organiza a ocupação –, Luciano Schafer explica que as 35 famílias que moram no local foram retiradas do imóvel quando iniciou o incêndio. No final da manhã, após uma vistoria realizada pelos Bombeiros, que não constatou danos estruturais causados pelo incêndio na instalação vizinha, o imóvel foi liberado e as famílias puderam voltar a acessá-lo. “Não teve nada, tudo tranquilo”, diz, aliviado. Pertencente à União, o imóvel foi recentemente incluído no programa do governo federal que irá transmitir próprios públicos para outros entes estatais e privados, incluindo movimentos sociais, e já recebeu autorização para ser incluído no Minha Casa Minha Vida Entidades.

Apesar de terem duas entradas diferentes, os dois prédios da Pousada Garoa teriam exatamente a mesma estrutura. “Era um quarto de madeira. Só a fachada é de material. É um quartinho de três metros por dois, tudo de madeira. Tem só uma cama e um armariozinho, tipo isso aqui”, diz Julio, apontando para um pequeno móvel, do tamanho de uma mala, que havia sido retirado do prédio que não pegou fogo. “Se eu empurrasse a minha parede, eu via o vizinho. Era só uma divisória. No cartaz dizia que era isso e aquilo, nunca teve. Isso aqui tem infestação de rato. Denunciaram, põe veneno. Agora tem barata… não era uma higiene completa. Eles eram de cobrar, mas não de manter o troço em dia. Tá ligado, irmão?”.

Morador do mesmo prédio, Marco Aurélio de Souza, 39 anos, diz que a situação de ambos os imóveis era insalubre. “Eu fiquei quatro dias e não consegui permanecer no quarto, me coçava as pernas e parecia que me arrancava pedaço, por causa das baratas e dos percevejos. Imagina tu entrar dentro dum alojamento inteiro e estar infestado de barata. Tu vai acessar a cozinha, é barata por cima do fogão, em cima da pia, dentro do banheiro, do quarto, por tudo. Se tu não botar tampa em cima da panela, não consegue fazer uma comida. É uma situação desumana”.

Adauto Machado da Silva estava caminhando pela Voluntários da Pátria quando ouviu falar sobre o incêndio. Subiu a Farrapos e diz que, de longe, já era possível ver as labaredas saindo pela janela, o gritedo, viaturas chegando, carro do Corpo de Bombeiros, sirenes. “Muito tumulto”. Logo, as autoridades isolaram o local e tentaram afastar os populares dos arredores, mas Adauto diz que foi possível ver os corpos sendo retirados. “É uma coisa que não é corriqueira, a gente não é acostumado a ver esse tipo de situação. Eu só fui saber a quantia de pessoas mortas agora pela manhã”, diz.

Morador da vizinhança, ele diz que, no passado, já passou por várias das pousadas que se espalham pela Av. Farrapos. A Garoa, para ele, se destaca por ser um “labirinto”. “É um andar de um prédio que eles separam com madeira, lambri ou madeirite, que é mais usado como compensado, e divide em dez, quinze quartos por andar. Cada quarto tem dois metros por três, na base. A maioria não têm janela, porque os únicos quartos que têm acesso a janela são da frente. Os do meio e do fundo não têm. Pega uma lateral que tem parede, não tem janela, tem só porta. A fiação é precária”, relata.

 

Sul21 conseguiu acessar corredor de prédio da pousada que não pegou fogo | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Marco pagava o aluguel da pousada com um voucher que recebia de um programa de compra de vagas da Prefeitura de Porto Alegre em espaços de abrigamento. Ele conta que também já passou “por todas” as pousadas da região e que a situação se repete na maioria delas. “A única pousada que eles dão condição para morar é na Benjamin Constant, que é a matriz da Garoa. É o único lugar que tem um quarto adequado, não tem barata, não tem rato, não tem bicho. O restante das pousadas, só muda o endereço, são todas iguais. A fiação é toda enjambrada, uns fiozinhos finos. Eu já trabalhei com elétrica, como é que tu vai colocar uma fiação com uns cabinhos bem fininhos. Qualquer curto que der, pega fogo no quarto.”

Vizinha de quarto de Júlio, Marli Pires Pereira, 59 anos, também esperava do lado de fora do imóvel para saber sobre o destino das suas coisas. Para ela, que recebe o voucher da Prefeitura, foi oferecido um novo local para passar a noite de hoje, mas diz que não quer, pois prefere ir dormir no Centro. “Eu não quero nunca mais ver isso aí. Eu quero pegar todas as minhas coisas”.

Quando questionada sobre como era morar no local, responde com um misto de ironia e pragmatismo cru. “É normal. Eu não sei o que é coisa boa e ruim. Para mim, era ótimo. Aqui tem uma máquina de roupa que não lava direito. Micro-ondas que é cheio de barata. Mas eu vivia na rua, para mim, eu tava no paraíso”, diz.

Ela estava trabalhando durante a noite e tomou conhecimento do incêndio quando voltada para a pousada. Pela manhã, alternava momentos mais tranquilos e picos de emoção, marcados pela lembrança de amigos perdidos. “Se eu tinha amigos? Todos são meus amigos. Eu tô tentando ver um por um e sei que mais da metade eu não vou ver mais. Mais da metade. Eu vi meus amigos saírem num saco, jogados dentro dum…[enxuga as lágrimas]. Nós todos somos uma família, e não é que são amigos de dois meses que estou aqui, mas de muitos anos atrás. Convivemos nas pensões, na rua, moradores de rua, é amizade de anos. Casualmente, a gente se pecha nas pensões. Somos peregrinos”, diz Marli, conta morar na rua há, pelo menos, 15 anos.

 

Bombeiros contiveram as chamas ainda durante a madrugada e, durante a manhã, vistoriaram o local | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Júlio Machado diz que conhecia todo mundo que morava na pousada, mas tinha mais intimidade com um rapaz chamado Anderson, 42 anos, que alugava a divisória ao seu lado e tinha se mudado para o prédio do lado, que sofreu o incêndio, na quarta-feira.

Assim como Marli, ele esperou a manhã toda do lado de fora do prédio que não pegou fogo, mas que estava interditado. A sua preocupação era, primeiro, se poderia retirar as suas coisas. Segundo, onde iria dormir essa noite. Funcionário público aposentado, ele pagava do seu dinheiro os R$ 550 anunciados como valor do aluguel, tendo quitado o mês de abril com antecedência até o dia 30. “Agora, é a realidade. A maioria que mora nesses lugares é morador de rua, tem o voucher. Eu pago, com o meu dinheiro. Fui funcionário público mais de 30 anos. A partir de hoje, eu tô na rua, não tenho garantia de nada”, diz. “A prioridade é a vida, mas os meus negócios?”

Na alternância de emoções, Marli diz que, apesar de querer pegar seus pertences, a sensação de entrar no prédio seria muito ruim.  “Ter que subir as escadarias e dar de cada com o cheiro de morte”, diz, antes de finalizar. “Se nós estamos na rua, nos dão um pé na bunda. Se entramos ali, botam fogo na gente”.

 

Sobreviventes foram atendidos por equipes de saúde e de diversos órgãos públicos após o incêndio | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora