Geral
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19 de setembro de 2023
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18:59

Quilombolas da Vila Kédi se mobilizam contra reassentamento e repasse da área ao Country Club

Por
Luís Gomes
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Reunião Conjunta das Comissões CUTHAB e CEDECONDH na Vila Kédi para conversar com representantes da comunidade no próprio local,  com a presença do Secretário André Machado, em 2021 | Foto: Elson Sempe Pedroso/PMPA
Reunião Conjunta das Comissões CUTHAB e CEDECONDH na Vila Kédi para conversar com representantes da comunidade no próprio local, com a presença do Secretário André Machado, em 2021 | Foto: Elson Sempe Pedroso/PMPA

Em assembleia realizada no último sábado (16), os moradores do Quilombo Vila Kédi, localizado ao lado do Country Club de Porto Alegre, entre as avenidas Nilo Peçanha e Frei Caneca, reafirmaram a posição de permanecer no local, resistindo a propostas de reassentamento e reforçando o pleito para a demarcação da área como comunidade quilombola.

Desde a semana passada, a comunidade organiza uma vigília pela efetivação de seus direitos e para cobrar da Prefeitura respeito ao processo de demarcação da área em andamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).  Ao participar da assembleia no sábado, Sebastião Henrique dos Santos Lima, responsável pelo Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas na Superintendência do Incra no Rio Grande do Sul (Incra/RS), destacou que o processo foi aberto em 2021 e atualmente está em fase de execução do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Em caso de reconhecimento do pleito, é emitida uma Portaria de Reconhecimento do território pelo presidente do Incra.

Na quinta-feira (14), o Incra se reuniu com pesquisadores do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA) do curso de Geografia/Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que apresentaram um levantamento social, histórico, antropológico e cartográfico sobre o território. O estudo foi formalmente encaminhado pela comunidade ao Incra para subsidiar o RTID, conforme previsto nos parágrafos 5º e 6º do artigo 10 da Instrução Normativa nº 57/2009.

O Dossiê Geográfico produzido pelo NEGA aponta que o território quilombola pleiteado está localizado na Avenida Nilo Peçanha, no Bairro Boa Vista. O documento indica que a comunidade é composta por cerca de 100 famílias que vivem no território, cuja origens remeteriam há aproximadamente 110 anos.

 

Quilombo Vila Kédi ocupa uma pequena área junto ao Country Club | Foto: Reprodução/NEGA

Os moradores mais antigos do quilombo foram José Dutra Gonçalves, falecido em 1988, aos 98 anos, e Maria Otília Gonçalves (Dindinha), falecida em 1998, aos 105 anos. José Dutra teria se instalado na região ao chegar a Porto Alegre com 20 anos, no início do século 20.

O Dossiê destaca que o território ocupado no passado pela comunidade do Quilombo Kédi não corresponde à divisão territorial atual, pois a comunidade vem sofrendo intervenções consequentes da urbanização do bairro Boa Vista que tencionam pela remoção da comunidade. “Do ponto de vista estético urbanístico, o Quilombo Kédi está localizado em uma área considerada nobre devido à construção de empreendimentos de alto luxo, o que contrasta com as edificações pobres e modestas da comunidade. No entanto, não se pode apagar a presença centenária desta comunidade que participa ativamente da construção e geração de riquezas do bairro”, diz o dossiê.

Advogado da associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir de Araújo pontua que a área reivindicada, de cerca de 4 hectares, envolve um terreno público e uma área que já sofreu esbulho no passado e passou para a propriedade da construtora CFL e do Country Club. Ele destaca que, até o momento, a comunidade já realizou o processo de identificação e já foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), etapa que dá início ao processo no Incra.

Segundo o advogado, está em andamento um movimento levado a cabo pelas empresas interessadas e pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab), acompanhado pela Defensoria Pública do Estado (DPE/RS), para tentar convencer as famílias a deixarem a área.

Onir destaca que, em 2022, a Prefeitura tentou celebrar um termo de conversão de área pública com os empreendedores, em que seriam oferecidas 52 unidades habitacionais em um conjunto residencial a ser construído na Rua Sotero dos Reis, no bairro Passo das Pedras. A proposta foi apresentada à comunidade, mas rejeitada, com os moradores preferindo permanecer no local.

Disponível no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) da Prefeitura, o documento, que seria firmado com a empresa Country – Empreendimentos Imobiliários LTDA, indica que, a título de conversão da área de destinação pública para os proprietários do empreendimento em construção na região– duas torres residenciais e uma comercial, cada uma delas com 16 andares –, a empresa ficaria responsável pelo reassentamento das 52 famílias que atualmente residem sobre o leito viário do prolongamento da Rua Freei Caneca. Além disso, ficaria responsável pelo pagamento do bônus-moradia às demais famílias que ocupam a Diretriz Viária 1513 — traçado previsto para uma rua que passaria pela comunidade.

Para o pagamento destas despesas, seriam utilizados os recursos oriundos da conversão da área pública, que foi avaliada em R$ 8,3 milhões pela Secretaria Municipal da Fazenda (SMF).

Após o fracasso dessa tentativa, teria se iniciado o atual processo de busca ativa de pessoas interessadas em negociar para sair da região. “Eles estão tentando refazer o termo de conversão de área”, alega Onir. “Ocorre o seguinte, o que está acontecendo aqui, que no nosso entendimento é grave, é que a Defensoria Pública Estadual não está informando a essas pessoas que estão querendo sair que elas não vão poder dispor de valores ao bel prazer delas. As pessoas estão sendo orientadas a abrir conta na Caixa Econômica Federal e tem muita gente aqui achando que vai receber o dinheiro e vai fazer o que quiser com ele. E não é assim, porque vai estar vinculado a algum programa obrigatoriamente”, afirma Onir.

Segundo o advogado, um dos programas que estaria sendo oferecido às famílias seria o Mais Habitação. Anunciado em agosto, o programa prevê que famílias com renda mensal de até R$ 4 mil recebam R$ 15 mil para dar como entrada no financiamento de imóveis de até R$ 235 mil. Os R$ 15 mil são concedidos a fundo perdido, por meio do Fundo Municipal de Habitação. O imóvel escolhido precisa ser novo, com a família pagando o restante do financiamento.

Oficialmente, a Prefeitura tem dito nos últimos anos que deseja encontrar uma solução habitacional que traga melhorias para as famílias que vivem no local e justifica o reassentamento por uma condenação judicial de 2014, fruto de ação do Ministério Público do Rio Grande do Sul,  para que as famílias fossem retiradas da comunidade e reassentadas. A Prefeitura recorreu da decisão, mas o recurso foi negado. Em dezembro passado, o prefeito Sebastião Melo solicitou ao Ministério Público que todos os acordos sejam negociados via Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição do Ministério Público (Mediar-MP).

Procurado pela reportagem, o secretário municipal de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado nega qualquer relação do programa Mais Habitação com a situação das famílias do Quilombo Vila Kédi. O secretário afirma que as conversas em andamento com os moradores da vila são motivadas pelo interesse de dezenas de famílias em deixarem o local. “Ninguém quer comprar terra, isso não é verdade. A única coisa que se quer é fazer com que as pessoas que querem sair de lá, saiam”, afirma.

Ele diz ainda que o empreendimento está ocorrendo sem relação com a situação das famílias quilombolas e que o interesse da Prefeitura é melhorar as condições de vida na comunidade, em razão da precariedade do local. “A Prefeitura não se envolve na questão da declaração quilombola do território. Isso cabe, primeiro, à Fundação Palmares e, depois, ao Incra. O que for decidido, é seguido. Agora, o que nós entendemos é que o território, ao final, tem que estar melhor do que ele está para aquelas pessoas que vão ficar, e também permitir aos que querem sair ter o seu direito. A Defensoria passou à Prefeitura 44 nomes de pessoas que querem sair imediatamente e outros que têm interesse em fazer uma negociação para sair, o que chegaria a quase 70. Ou seja, isso é um volume muito grande e a gente não sabe se essas pessoas que estão dizendo à Defensoria que querem sair são de fato moradores do local”, afirma.

Onir diz que, das mais de 100 famílias que moram no local, entre 20 e 30 se auto identificam como quilombolas e não abrem mão de permanecer. A preocupação da comunidade quilombola é com a criação de um clima de tensão no território para pressionar pelo reassentamento, criado por essa falsa expectativa de famílias terem dinheiro à disposição. E, à medida que mais famílias aderissem à proposta de reassentamento, seria criado uma espécie de “cerco” aos quilombolas.

Apesar da posição da Prefeitura de que não há processo de transferência de posse de terras, Onir diz que, pelo acordo que está sendo proposto às famílias que desejam sair, os empreendedores tomariam imediatamente a posse dos terrenos, o que interferiria no processo de demarcação de terra reivindicado. “Isso cria um clima muito ruim. Porque, na verdade, o que os quilombolas querem garantir é a manutenção da posse. Se as outras famílias querem sair, saiam, mas a posse não pode ir para uma empresa. Até para o Incra ter a tranquilidade para fazer o trabalho”.

Nesta segunda-feira (18), a associação dos moradores do Quilombo Vila Kédi encaminhou à chefia e à corregedoria da Defensoria Pública do Estado um ofício pedindo que representantes do órgão cessem a sua atuação no âmbito do processo de cadastramento das famílias.

Na assembleia de sábado, Sebastião Henrique dos Santos Lima pontuou que todos os órgãos responsáveis pelo trâmite, bem como Prefeitura e Defensoria Pública do Estado (DPE/RS), já foram notificados pelo Incra de que os trabalhos para o RTID da comunidade estão em andamento. Quando concluído, o RTID irá informar o tamanho da área a ser demarcada em caso de conclusão favorável do processo e quais serão os títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre a área.

Para o representante do Incra/RS, o processo em andamento precisa ser respeitado. “Nós estaremos buscando junto aos órgãos, mais precisamente com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, abrir um canal de diálogo para que ela entenda que essa comunidade tem um processo aberto como comunidade quilombola, que o processo está em andamento e que esse processo precisa ser respeitado, para que no fim desse processo a Prefeitura possa questionar, se estiver de acordo ou se tem alguma coisa contrária. Enquanto isso, é importante que ao Incra conclua o seu trabalho”, diz.

Em 13 de abril desse ano, a Superintendência do Incra no RS comunicou oficialmente à Prefeitura que os trabalhos para o RTID do Quilombo Vila Kédi estavam em andamento.

A DPE/RS foi procurada pela reportagem para explicar a natureza do processo em andamento  na comunidade, mas não retornou o contato até a publicação desta matéria.


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