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28 de junho de 2023
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19:15

Retificação de nome e gênero cresce 5 anos após decisão do STF, mas ainda esbarra em burocracias

Por
Duda Romagna
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Só em Porto Alegre, foram 144 casos desde 2018. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Só em Porto Alegre, foram 144 casos desde 2018. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Depois de cinco anos da autorização nacional para que os Cartórios de Registro Civil brasileiros realizassem a retificação de nome e sexo de pessoas transgênero, o número de alterações cresceu quase 100% no país na comparação entre 2018-2019 e 2022-2023. De 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até hoje, mais de 10 mil alterações foram realizadas sem a necessidade de procedimento judicial.

No primeiro ano de vigência do Provimento nº 73 do CNJ (entre junho de 2018 e maio de 2019), foram contabilizadas 1.916 alterações, enquanto no último ano (junho de 2022 a maio de 2023), foram registradas 3.819 mudanças de gênero, um aumento de 99,3%. Os números são Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), base de dados nacional de nascimentos, casamentos e óbitos administrada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), entidade que reúne os 7.757 Cartórios de Registro Civil do país.

No Rio Grande do Sul, em cinco anos, foram 590 mudanças realizadas, com maior aumento nos últimos anos. No período de junho de 2021 a maio de 2022 houve um aumento de 76,3% em relação ao período anterior, quando passaram de 97 para 171. O período seguinte, de junho de 2022 a maio de 2023, registrou crescimento ainda maior, com os números subindo para 212 alterações de gênero, um crescimento de 24%. Só em Porto Alegre, foram 144 casos desde 2018.

Leia também: Evelyn Mendes, a primeira trans a retificar o nome em cartório no RS

“O que vemos são as pessoas cada vez mais cientes de seus direitos e querendo fazer prevalecer na prática a sua personalidade e a sua autodeterminação”, explica Gustavo Renato Fiscarelli, presidente da Arpen-Brasil. “Trata-se de mais um princípio relacionado à dignidade da pessoa humana e que encontra no Cartório de Registro Civil um procedimento muito mais prático e ágil do que a antiga opção de recorrer ao Poder Judiciário”, completa. 

Daniel Corrêa da Silva se identifica como pessoa transmasculina não binária e relata que, para ele, o processo de retificação foi maçante e consideravelmente caro. “Antes de ir, tive que pesquisar os documentos por conta própria e tive que voltar duas vezes no cartório com alguma coisa que não tinham me dito que eu precisava”. Ele conta que gastou mais de R$ 200 com a certidão de protesto, com o procedimento no cartório, impressões de documentos e confecção da nova identidade. “E olha que nem tive que gastar com transporte”. É possível declarar hipossuficiência, o que atesta que a pessoa não está em condições de arcar com as taxas e custas exigidas para a tramitação, mas o processo também é burocrático.

“Todos os outros documentos devem ser mudados um por um depois disso. Faz menos de um mês que criei coragem de ir no meu antigo colégio pedir comprovação de ensino fundamental e médio. E eu também tive que pagar por isso. Minhas contas bancárias pré-transição continuam com o nome morto no PIX, mesmo eu tendo me dado ao trabalho de ir mudar. Provavelmente não vai acabar nunca”, diz.

Daniel explica que já ajudou no processo de retificação de outras pessoas como auxiliar jurídico voluntário, quando cursava Direito, no grupo G8-Generalizando – Grupo de Direitos Sexuais e de Gênero da UFRGS. Por isso, ele tem um panorama histórico e reconhece que o processo já foi muito mais difícil, quando a transexualidade ainda era incluída na lista de doenças e distúrbios mentais da Organização Mundial da Saúde (OMS). “As pessoas tinham que fazer um processo e, além dos muitos documentos inclusos hoje, geralmente ajudava no sucesso da causa adicionar um laudo médico, fotos de antes e depois, relatos de pessoas próximas que atestavam que a pessoa realmente é uma pessoa trans, contas de redes sociais… Várias vezes se, ao invés de incluir um laudo médico, a ação fosse feita incluindo um relatório psicossocial não-patologizante, demorava mais tempo ou era negado. No Rio Grande do Sul, surpreendentemente, as recusas eram menores porque as organizações com equipe jurídica faziam mutirões para retificação”, relata.

Esse foi o caso da professora Marina Ridel, que participou de um mutirão de retificação da ONG Igualdade – Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul e teve o resultado de sua retificação em 2013. “A gente teve que colocar a documentação necessária, que era um parecer psicológico, juntar todos os documentos que comprovavam que eu me chamava Marina pra sociedade e aí foi aberto um processo”, conta. Ela explica que primeiramente retificou só seu nome e, depois, seu gênero.

Marina teve uma experiência similar à de Daniel após ter seu nome reconhecido. “Foi muito estressante, tive que correr para todos os órgãos, para fazer a nova certidão, até o INSS por conta da carteira de trabalho. Então foi uma maratona muito grande. Nós temos vários documentos e isso gera um estresse porque você tem que ir na receita, na polícia”, relata.

Em sua fala, ela dá ênfase a uma visita a um órgão em particular: o Exército. “Eu ainda tinha um documento que, para mim, nunca teve sentido. A carteira de reservista. Nem naquele local onde me apresentei com 18 anos eles sabiam como fazer após a minha retificação. O comandante me disse que não teria mais validade aquele documento e realmente nunca teve para mim”, conta.

As dificuldades e a discriminação também eram diárias mesmo após a retificação. “Eu lembro que as pessoas não acreditavam no documento. Eu tinha que andar com o documento, a decisão judicial debaixo do braço, porque as pessoas queriam ver o documento, queriam realmente acreditar que eu mudei o nome e também isso foi muito constrangedor.”

Ainda assim, a professora explica que foi um alívio poder ter seu nome reconhecido. “A retificação, na nossa vida, tem um significado muito importante justamente por estarmos vivendo esse processo no qual nos reconhecemos. Então, quando o nosso nome sai do nome social para o nome civil, muda tudo na nossa vida, nós realmente somos reconhecidas e respeitadas com o nome civil.”

Marcelly Malta é presidente da ONG Igualdade e militante histórica pelo direito das travestis e transexuais no estado e no país. Foto: Mariana Alves/Arquivo Pessoal

Marcelly Malta, presidente da ONG Igualdade e militante histórica pelo direito das travestis e transexuais no Estado e no país, pediu sua retificação em 2008 e só a obteve em 2011, na época com 60 anos. “O juiz indicou um psicólogo para fazer um laudo, com várias entrevistas. Eu fiquei revoltada, eu não queria fazer, eu não sou uma pessoa doente. Eu tinha quatro sessões e só fui em duas. O advogado disse ‘Marcelly não faz isso, o juiz vai dar a sentença não favorável, ele vai questionar’. Mas o juiz aprovou, eu chorei muito”, lembra.

Daniel reconhece os avanços, porém lembra que, mesmo com a permissão de mudança em cartório, ainda existem barreiras institucionais que dificultam um processo que, em tese, deveria ter sido simplificado. “Hoje é só passar no cartório de protestos, pegar os outros inúmeros documentos que mal cabem numa pasta, ir no cartório e esperar 30 dias. Ir no Tudo Fácil e esperar mais 30 dias. Comparativamente melhor, mas no fundo a gente ainda paga uma ‘taxa trans’ por esse processo todo. Mesmo que eu tenha feito a minha retificação em 2020, algumas coisas ainda eram novas. Quando o isolamento acabou eu perguntei no Ambulatório Trans se eu tinha que ir na junta militar também – e foi difícil descobrir a resposta sem alguma pesquisa -, eu tinha que ir. Há retificação para o gênero não-binário, mas ninguém sabe exatamente que regras binárias, tipo previdenciárias e a questão de alistamento, servem pra elus.”

Leia também: Ambulatório Trans de Porto Alegre atende mais de 1,6 mil pessoas pelo SUS

Para orientar interessados em realizar a alteração, a Arpen-Brasil editou uma Cartilha Nacional sobre a Mudança de Nome e Gênero em Cartório, onde apresenta o passo a passo para o procedimento e os documentos exigidos pela norma nacional do CNJ. Clique aqui e acesse.

Para realizar o processo de alteração de gênero em nome nos Cartórios de Registro Civil é necessário a apresentação de todos os documentos pessoais, comprovante de endereço e as certidões dos distribuidores cíveis, criminais estaduais e federais do local de residência dos últimos cinco anos, bem como das certidões de execução criminal estadual e federal, dos Tabelionatos de Protesto e da Justiça do Trabalho. Na sequência, o oficial de registro deve realizar uma entrevista com a pessoa interessada. 


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