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10 de maio de 2018
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10:30

Evelyn Mendes, a primeira trans a retificar o nome em cartório no RS

Por
Luís Gomes
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Evelyn Mendes exibe a nova carteira de identidade. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Evelyn Mendes exibe a nova carteira de identidade. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Evelyn Mendes. Depois de 43 anos, agora é oficial. Não se trata de mais uma “simples” carteira social. Evelyn deixa para trás um documento que há muito não a representava e passa a ter validada, oficialmente, a identidade que já adotava socialmente. Na último dia 2 de maio, a analista e desenvolvedora de sistemas se tornou a primeira transexual no Estado a conseguir retificar o seu registro civil sem precisar entrar com um processo judicial, apenas em cartório. Isso ocorre graças à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 1º de março deste ano a respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADC) nº 427. Agora, pessoas transexuais e travestis têm o direito de alterar nome e sexo no registro civil sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual ou de apresentar laudo médico pericial, bastando autodeclaração no cartório em que foram registrados seus nascimentos.

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Evelyn conta que, desde que se conhece por gente, não se identificava com a identidade masculina. “Para quem é trans, desde criança tu tem isso na cabeça. Não é uma coisa de que ‘agora’ vou. Tu pode, como no meu caso, achar que tu nunca vai conseguir. Tentar viver uma vida que não é tua e chegar a um ponto que tu vê que não faz sentido nenhum aquilo que tu tá vivendo, porque não é a tua vida. Mas desde criança tu sabe, tu quer trocar, quer ter outra vida”.

Ela conta que, durante a infância e adolescência, eram sentimentos que nem ela mesma conseguia compreender direito. Faltavam, por exemplo, referências transexuais na sociedade. “Eu sabia o que eu sentia, mas eu não sabia o que era aquilo, como expressar. Foi uma infância bem complicada, com repressões de familiares e tudo mais”.

O tempo foi passando. Evelyn foi levando a vida tentando se integrar a um modo de vida que não era aquele que queria, escondendo o que sentia de verdade dos outros. “Depois eu descobri que nem adiantou nada, todo mundo já sabia”.

Há quatro anos, ela resolveu assumir socialmente a identidade feminina, mas ainda sem poder usar seu nome oficialmente. O primeiro passo para a oficialização foi a carteira social. “Mas a carteira social tu depende muito da boa vontade das pessoas. Obviamente, que se tu for viajar de avião, as companhias têm que aceitar, mas só em coisas públicas. Um banco não tem obrigação de aceitar, só por boa vontade, então tu fica sempre dependendo da boa vontade das pessoas”.

Evelyn conta que esse processo sempre gera algum tipo de constrangimento. Por menos agressiva que seja a reação, é sempre comum que a pessoa a olhe “de cima a baixo”, afirma. E isso vai abalando. “Essas pequenas agressões, pequenas faltas de respeito, vão te minando, criando uma bola de neve e muitas vezes tu te sente mal e não sabe o porquê, mas é porque tu passou uma semana cheia de coisas, tentando relevar, mas aquilo vai acumulando”.

Os constrangimentos a impediam de aproveitar diversas experiências, por mais cotidianas que fossem. Ela chegou a recusar oportunidades de viagens para evitar passar por situações indesejáveis. Um problema comum era com o CPF, que sempre vinha acionado direto do site da receita, dando o nome pelo qual ela já não se identificava. Evelyn lamenta que o Brasil ainda tenha muito a avançar em questão de respeito à população trans. “Certa vez um cara se achou no direito de passar por mim na rua e me apontar: ‘olha lá, olha lá’. Sabe, não existe uma educação para as pessoas”.

Evelyn diz que a retificação dá tranquilidade e confiança para ela seguir a vida do jeito que deseja. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Evelyn Mendes diz que há alguns anos já pensava em fazer a retificação do nome pela via judicial, mas que soube por amigas que fizeram que não é uma experiência simples. Uma delas chegou a ter a retificação negada por um juiz — conseguiu em uma segunda tentativa. “O processo judicial é sempre complicado, depende muito da interpretação do juiz. Às vezes, ele quer te pedir laudos desnecessários e alguns acabam criando empecilhos”.

Quando soube que a ADC estava para ser julgada pelo STF, preferiu esperar. Após a decisão, foi convidada pelo Centro em Referência em Direitos Humanos (CDRH) da Defensoria Pública — órgão que já tinha contato anteriormente — para se somar a um grupo de mulheres trans com o objetivo de pressionar os cartórios a passar a aceitar a retificação, antes mesmo de o acórdão da decisão ser publicado. Procurou então o Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais da 5ª Zona de Porto Alegre, localizada na Av. Campos Velho, na zona sul, onde foi registrada.

“Para a minha surpresa, o oficial do cartório já estava predisposto a fazer porque a interpretação que ele tinha era que a decisão do STF já era autoaplicável, para ele não precisava nenhum acórdão. O STF decidiu, está decidido. A única dúvida que ele tinha era sobre a questão documental, do que pedir. Como eu fui a primeira, ele me pediu alguns documentos como certidões negativas eleitoral e judicial. Quando ele mandou a lista de documentos, achei que ia passar uma semana andando por Porto Alegre, mas nada, tem tudo na internet. Foi super tranquilo”.

No outro dia, foi fazer o RG, conseguiu em menos de três horas. Mais uma emoção. “É um peso que sai das tuas costas. Vou fazer uma viagem, vou a algum lugar, começava a antecipar um monte de problemas e nunca chegava lá legal, tranquila. Tu tá pegando uma coisa que está validando tudo aquilo que tu sente. Tá tudo ali naquele documentinho. Está me dando uma nova vida, de verdade, em que eu posso ser mais plena, até ser mais vista”.

Para explicar a importância desta validação, Evelyn diz que sempre conta a “história do crachá”. Ela diz que quando entrava em um ônibus sem crachá, sempre era aquela história dos demais passageiros “olhando de cima a baixo”. Um dia pegou um crachá que respeitava sua identidade e esqueceu de tirar para entrar no ônibus. “As pessoas me olharam, olharam o crachá, baixaram a cabeça. Termina ali. É uma coisa muito engraçada isso de mostrar algo para as pessoas”

Evelyn avalia que existe uma validação da sociedade quando há um registro oficial, o que também acaba por ajudar a enfrentar preconceitos. O reconhecimento oficial também passar a ser um reconhecimento social. “Não tem mais o que falar. Zera aqui”.

E acaba por ser uma validação para ela mesma.”É uma vitória que eu nunca achei que ia conseguir. Por causa de muitas coisas, não era nem para eu estar aqui hoje, porque tu chega num ponto da vida que tu tem que cortar tudo o que tu era, o que não era, para poder viver a vida que tu quer. Só que isso, para quem faz a transição tardia [como ela], às vezes é muito complicado, porque tu perde muita coisa logo que tu começa a transição. É muito dolorido. Eu perdi emprego, fiquei um ano sem trabalho. Só consegui sobreviver porque as minhas amigas me ajudaram. Mas eu também não queria trabalhar em nenhuma empresa que fosse intolerante. Essas coisas acabam te moldando e tu acaba adquirindo uma nova personalidade, que tu já devia ter tido”.

Ela brinca que o reconhecimento oficial da identidade não é algo que vai levá-la, nem qualquer homem ou mulher trans, a tirar o RG do bolso e sair mostrando “na cara de todo mundo”, por mais que possa ter vontade, mas a torna mais confiante. Pode ir a lugares sabendo que não terá de passar por problemas que teve no passado. É Evelyn. Está ali. Oficialmente. O outro respeita ou é obrigado a respeitar. Não há mais margem para interpretação. “Ter a minha identificação, o RG, o CPF, além de uma alegria enorme, me dá muito mais tranquilidade para viver e curtir o vida”.

Evelyn conta que o processo foi mais fácil do que esperava. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Apesar de a decisão do STF não definir uma data para que os cartórios passem a adotar o procedimento — outros cartórios contatados por Evelyn ainda não estavam aceitando a retificação extrajudicial –, a avaliação da Defensoria Pública é que ela já pode ser cumprida e o órgão oficiou os estabelecimentos de registro civil para que adotassem essa posição.

“O critério é a autodeclaração. O que determina se a pessoa se identifica ou não com aquele gênero, aquele nome é uma questão interna, psicológica, subjetiva. É a própria pessoa que se sente identificada com aquele gênero e com aquele nome. Há pouco tempo se enfrentava resistência e havia inclusive juízes que exigiam perícia psiquiátrica”, diz Mário Rheingantz, dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Coordenador do CRDH da Defensoria Pública.

Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da 5ª Zona de POA, Arioste Schnorr, que efetivou a retificação do nome de Evelyn, comenta que ainda há uma divisão entre os cartórios sobre se a decião do STF já é válida ou não, com alguns estabelecimentos defedendo que é necessário esperar uma posição do Conselho Nacional de Justiça especificando critérios quanto a quais documentos pedir, mas ele optou por considerar que já poderia ser aplicada.

“É importante que as pessoas identifiquem-se documentalmente exatamente nos termos em que realmente se definem. Essa primeira alteração certamente incentivará outras pessoas a agirem da mesma forma, fazer valer os seus direitos. Se o STF sentenciou, e ao meu ver, corretamente, que é possível a alteração, não restam dúvidas de que nós, registradores, devemos cumprir a decisão, sempre com muita cautela”, afirma.

A orientação da Defensoria, neste momento, é que as pessoas interessadas busquem o órgão em qualquer comarca do Estado para que o defensor ou defensora responsável ajude no encaminhamento. “Nada impede que a pessoa possa ir sozinha ao cartório, contudo, é importante que ela venha ao CRDH, pois enviaremos ofício expondo a fundamentação jurídica, o que auxilia no êxito da demanda”, diz Mário. “A decisão tem eficácia para todas as pessoas e é obrigatória, tem que ser cumprida por todos os órgãos da Administração Pública, e os Cartórios são órgãos da administração. O ofício traz segurança jurídica, inclusive para o Cartório”.


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