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22 de dezembro de 2022
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15:14

Moradores do Lami avaliam que privatização vai elitizar o bairro e afastar periferia do calçadão

Por
Duda Romagna
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Calçadão do Lami consta e proposta de concessão à gestão privada junto da Redenção. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Calçadão do Lami consta e proposta de concessão à gestão privada junto da Redenção. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Em setembro, o Sul21 revelou as intenções da Prefeitura de Porto Alegre de conceder à iniciativa privada, por 30 anos, a gestão do Parque Farroupilha (Redenção), junto ao Calçadão do Lami (Lote 1), e do Trecho 3 da Orla do Guaíba, junto ao Parque Marinha do Brasil (Lote 2). Em pouco menos de quatro meses, as discussões sobre as privatizações, em especial da Redenção, ganharam força nas redes sociais e foram objeto de consulta pública. 

No dia 19 de novembro, uma audiência foi feita na Câmara de Vereadores para debater o primeiro lote. Na ocasião, representantes do bairro Lami manifestaram indignação com as propostas da Prefeitura e demandaram mais atenção às necessidades do calçadão, com 60.222 m² de área, que pouco foi citado pela administração pública. Como forma de organização popular, a comunidade constituiu o Coletivo Lami em Movimento, e relata que a população local desconhecia os planos da Prefeitura.

 

Paula de Iansã, Maria Rita Brito e Ana Felícia Guedes Trindade moram no Lami e integram o Coletivo Lami em Movimento. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os moradores temem que atividades econômicas, áreas de lazer, manifestações religiosas e a preservação da natureza estejam ameaçadas. “O projeto parece-nos dissimulado, ‘um canto de sereia’, que traz um rastro de destruição do ambiente simples e natural como é hoje e que temos nos esforçado muito para a sua preservação, pois estamos em lutas ambientais, em lutas climáticas, em tentativas concretas de preservarmos para todos e para as gerações futuras um planeta sustentável, e tudo isso começa pelo lugar que habitamos”, defende o Coletivo. 

A 30 quilômetros do centro de Porto Alegre, no extremo sul da cidade, o Lami surgiu como uma vila de pescadores, com pequenas propriedades agrícolas. Pelo Plano Diretor, está em uma macrozona conhecida como Cidade Rururbana, com morros, planícies costeiras e núcleos de ocupação mesclado com áreas naturais. Atualmente, se configura como um bairro periférico, com uma vida comunitária ativa e comércios próprios.

Comércios locais e vida simples seriam impactados, na avaliação de moradores. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os moradores organizam a “Multifeira da Orla”, um projeto de geração de renda local que valoriza a economia solidária e impacta mais de trinta famílias. Há um grupo de idosos que, nas terças-feiras, caminham na orla e são orientados por agentes comunitárias e de saúde. Há também um grupo de escoteiros, uma escolinha de futebol, jogos de futebol de veteranos, jogos de vôlei e aulas ao ar livre de profissionais de vários espaços educativos.

Moradora do Lami há quatro anos, a Ialorixá Paula de Iansã salienta a importância do local também como palco de manifestações religiosas de matriz africana. “Temos um cuidado enorme com os nossos despachos aqui no Lami, eu vou falar popularmente para todos entenderem, então tudo que vem para a natureza é da natureza, nós não usamos plásticos, vidros, nada que vá agredir o meio ambiente. Tenho como meus Deuses os meus Orixás, e os meus Orixás são a natureza. Qualquer forma de privatização, no meu modo de ver, é uma agressão aos meus Orixás também, porque no momento que se privatiza se fecha, para todos”, avalia. 

Bairro tem inclusive uma unidade de conservação ambiental. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O bairro também abriga a Reserva Biológica José Lutzenberger, uma unidade de conservação com grande diversidade de espécies da flora e da fauna silvestre. Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, por meio de estudos científicos, foram identificadas na Reserva do Lami mais de 300 espécies vegetais nativas, um número muito superior de espécies animais e mais de 200 espécies de aves nativas, inclusive migratórias, locais, regionais e continentais. 

Ana Felícia Guedes Trindade, doutora em educação, especialista em bioética e moradora do bairro, explica que a comunidade interage com a natureza de maneira pacífica e harmoniosa. “Acreditamos que estamos num dos refúgios ecológicos de Porto Alegre. Estamos vivendo o tempo inteiro com os bugios, na relação com outras espécies e isso nos dá condições de garantir para as crianças uma expansão da vida. Elas entram em conexão profunda com a natureza que não foi ainda modificada. Dormimos escutando as águas desse rio”, explica. 

Documentos disponibilizados pela Secretaria Municipal de Parcerias (SMP) e elaborados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a pedido da Prefeitura, apresentam sugestões para as empresas interessadas na concessão e buscam um “diagnóstico” das áreas. Integrantes do Coletivo, no entanto, afirmam que os documentos são imprecisos, com informações incorretas e distorcidas. 

O Lami em Movimento declara que o projeto não contempla demandas simples do local, que seriam facilmente realizadas pela gestão pública e que vêm sendo solicitadas pela comunidade. As atividades pesqueiras e de subsistência também estariam sendo ignoradas. “As possibilidades de negócios levantadas a serem implantadas na área da concessão não condizem com a realidade social e nem com o desejo dos moradores e frequentadores do balneário. Então, o projeto foi feito pra quem? A proposta parece ignorar o valor da orla para a vida da comunidade do Lami, essa vida mais natural, orgânica, simples, em contato real e livre com a natureza.” 

Entre os pontos de discordância entre a comunidade e a documentação elaborada a pedido da Prefeitura está, por exemplo, a questão da coleta de lixo. Enquanto os moradores afirmam haver coleta seletiva, o documento nega. A análise encomendada pelo poder público para a futura concessão também aponta não haver áreas cobertas por telhados para proteção de chuva e sol. Moradores afirmam que foi a própria Prefeitura que retirou essas estruturas, que já existiram no local, como pode ser visto na foto abaixo, retirada do arquivo do Sul21

 

Em janeiro de 2016, a comunidade do Lami ainda tinha locais cobertos para recreação. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Os bares são descritos no diagnóstico como ‘muito simples’. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Chamam atenção ainda no diagnóstico elaborado pela FGV, o tom usado para se referir a quem reside no local e a menção a problemas que deveriam ser solucionados pelo próprio poder público. As análises definem as residências de moradores como “casas de madeira bem simples” e o acesso ao local é considerado “pouco desenvolvido, sem locais para estacionamento de veículos” e “sem qualidade visual”. As casas de pescadores são classificadas como “mal cuidadas” e, segundo o documento, “não oferecem muitas atratividades”. Os bares do lado oposto da rua do calçadão também são descritos como “muito simples”.

O calçadão possui áreas de lazer com brinquedos e a análise aponta como problema que, pelo uso constante dos balanços, as crianças acabem formando “buracos que em períodos de chuva dificultam a drenagem, criando acúmulo de água”. Entretanto, também reconhece que o mobiliário é utilizado pelo público, principalmente nos finais de semana. “As pessoas estavam em grupos, em família, utilizando o espaço do gramado para se protegerem do sol, com manuseio de bebidas e alimentos, desfrutando do local grande parte do dia.”

A avaliação encomendada ainda compara o Lami com Ipanema, bairro nobre também da zona sul. Conforme o texto, lá “existe uma estrutura de cidade mais consolidada”, com condomínios próximos. “No final de semana pudemos visitar a praia de Ipanema. No local já existem ciclovias, faixa para estacionamento e o calçadão está consolidado com vista total para o Guaíba. Não foi identificada vegetação impedindo a vista como vimos no Lami”, conclui. 

 

Diagnóstico aponta como problemas os buracos que se formam em frente aos balanços pelo uso cotidiano. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A previsão de investimentos diretos (CAPEX) é de R$ 105 milhões para as duas áreas – Lami e Redenção. Em um vídeo de apresentação ao qual o Sul21 teve acesso, o diretor de Estruturação de Desestatização da SMP, Fernando Pimentel, destacou que o “atrativo” para a concessão das áreas, que somam 408 mil m², é a possibilidade de construção de um estacionamento subterrâneo com 577 vagas junto ao Auditório Araújo Viana, na Redenção. 

“O estacionamento é o elemento que dá a sustentabilidade financeira para o projeto, porque o Parque da Redenção é um parque altamente deficitário em relação à quantidade de serviços que ele precisa fornecer”, disse o diretor da SMP. Já no caso da Orla do Lami, Pimentel destacou a atratividade para a realização de esportes aquáticos.

 

Esportes aquáticos são vistos como potencial de exploração da área pelo governo municipal. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O diagnóstico elaborado a pedido da SMP observa que o Lami é uma “localidade peculiar”, com valores paisagísticos, naturais, culturais e turísticos, portanto apresenta “significativo potencial para o recebimento de visitantes da região metropolitana”. Além disso, destaca que “há potencial também para a geração de caixa”, com serviços voltados ao turismo de praia. 

O texto sugere a criação de uma recepção com “venda de ingressos” para “atrativos aquáticos”, como aluguel de caiaques, pedalinhos e até a utilização de toboáguas. Indica, também, a parceria com food trucks, cafeterias, lancherias e loja de souvenires em contêineres, bem como uma área para exploração comercial de um parque infantil de brinquedos infláveis. 

Maria Rita Brito, moradora do Lami há sete anos e coordenadora da Multifeira, teme que o projeto impossibilite a realização das atividades desenvolvidas atualmente. Além disso, acredita que a proposta visa elitizar o bairro e afastar quem mora no Lami dos serviços prestados no calçadão. “Vão provavelmente colocar contêineres, de lancheria, café, ninguém do Lami tem R$ 10 pra tomar um expresso. O pessoal vem para cá e toma uma cervejinha, são três latões por R$ 10. O usuário daqui é periferia, o pessoal lota os ônibus e vem para cá, não pega o carro com motorista”, diz. 

 

Foto: Joana Berwanger/Sul21

“A proposta seria executar uma vasta estrutura repleta de tobogãs, espreguiçadeiras, escorregadores, pula-pula e muito mais […] Esses espaços possibilitam atrações interessantes que vão desde caminhar sobre as águas em passarelas infláveis ou descer em tobogãs até as águas. […] Essa nova atração além das possibilidades de receita, trarão uma nova visão turística para o Lami, fazendo com que novos usuários possam conhecer a região”, diz o estudo de viabilidade técnica-operacional.

Para Ana Felícia, a proposta vai de encontro com o modo de viver da comunidade. “Defendemos parques naturalizados, feitos das madeiras que vão caindo e que a partir daquela memória a gente restabelece também uma conexão profunda e transforma num banco pras crianças, num balanço. A nossa luta é mais profunda, da gente poder se afastar o quanto mais a gente puder dos plásticos.”

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
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Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
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