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12 de agosto de 2021
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16:00

Vítimas de violência crescente, mulheres indígenas se articulam contra o sexismo e o racismo

Por
Fernanda Nascimento
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Mulheres Kaingang na I Marcha das Mulheres Indígenas, em 2019, em Brasília. Foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo
Mulheres Kaingang na I Marcha das Mulheres Indígenas, em 2019, em Brasília. Foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo

A morte de Daiane Griá Sales, adolescente kaingang de 14 anos, nos arredores da Terra Indígena do Guarita, no Noroeste do Rio Grande do Sul, expôs problemas estruturais resultantes da articulação entre o racismo e o sexismo. Na mesma semana do assassinato, Raissa da Silva Cabreiara, uma criança guarani kaiowá de 11 anos, foi morta na Reserva Indígena de Dourados, no Sul do Mato Grosso do Sul. Os episódios têm mobilizado mulheres indígenas que buscam fortalecer as redes de enfrentamento à violência já existentes e trabalham na criação de novos espaços de discussão para combater desigualdades dentro e fora das aldeias.

A investigação do assassinato de Daiane segue em andamento. Existe a hipótese de que a jovem encontrada com a parte inferior do corpo dilacerada por animais tenha sido vítima de violência sexual antes do assassinato. No caso de Raissa, a perícia já concluiu que a criança sofreu estupro antes de ser atirada de um penhasco de 20 metros de altura. Três adolescentes foram apreendidos e um adulto foi preso por suspeita de praticar o crime. Um deles é tio da criança. “Nós, mulheres indígenas, por sermos indígenas e por sermos mulheres, infelizmente, estamos desamparadas. Muitos falam que ela [Daiane] estava fora da aldeia no momento da morte, como se a culpa fosse dela por sofrer violência. Só que a gente vive violência dentro de casa também, está aí o caso da Raissa”, resume Roseni Mariano, kaingang e moradora da Guarita.

Os assassinatos brutais estão longe de ser a única forma de violência sofrida pelas indígenas. Para a antropóloga e doutoranda em Antropologia Social Joziléia Daniza Kaingang o problema é atravessado pela omissão ou ausência do Estado na elaboração e implementação de políticas públicas que garantam os direitos de indígenas e, especialmente, das mulheres. “Trabalho com mulheres indígenas e na minha interação com as parentes, no trabalho como pesquisadora, no movimento social, o que tenho observado é uma crescente na violência, especialmente física, contra mulheres indígenas. E isso passa por muitos fatores, como a falta de perspectiva de vida, a inserção de outros valores externos aos nossos povos, além do pouco território para sobreviver como viviam os nossos antepassados”. 

Joziléia Daniza Kaingang. Foto: Arquivo Abrasco

Joziléia integra a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e tem sido uma das lideranças indígenas à frente dos debates sobre desigualdades de gênero no país. Enfrentando o machismo dentro e fora de ambientes indígenas, ela afirma que o acesso ao debate sobre direitos e ao protagonismo nas discussões públicas são recentes, com resistências internas e externas. “Nós somos atacadas de todas as formas. Com racismo, com violência, com assédio sobre nossos corpos, sobre nossos territórios, com desrespeito às nossas vidas. E, muitas vezes, quando vem à tona um caso como esse, ao invés de discutirmos com mais profundidade, o que vemos é o aumento do racismo e do machismo”. 

Dentre as inúmeras situações de violência que atingem especialmente as mulheres indígenas estão a exploração sexual de crianças e adolescentes; a precariedade no acesso e atendimento dos serviços de saúde; a ausência de redes de apoio para mulheres vítimas de violência doméstica; a retirada da guarda de crianças indígenas recém-nascidas pelo Estado por suposta negligência – geralmente associados à extrema pobreza; e o silenciamento de denúncias de violência e assédio. “As mulheres indígenas estão sofrendo violência de todos os lados e maneiras”, resume Joziléia. 

A morte de Daiane fez ressurgir a ideia de criar um coletivo de mulheres na Guarita. Uma das pessoas que há anos encabeça a luta contra as desigualdades de gênero sofridas pelos povos indígenas é Brasília Freitas, 71 anos. Em fóruns, encontros, marchas e atividades estaduais e nacionais, ela é uma voz ativa sobre os direitos das mulheres. “Nós precisamos de apoio, precisamos de apoio para as mulheres. Enquanto tiver desigualdade, não existe mulher”, ensina Brasília. 

Para Roseni Mariano, o esforço conjunto das mulheres tem sido capaz de transformar algumas realidades, mas os esforços precisam ser ampliados. “Eu venho de uma família na qual também presenciei violência doméstica. Só que naquela época parecia que era natural. Antigamente era assim, não sei se pelo fato de que não existia nenhuma lei que protegia os direitos das mulheres. Creio que com o passar do tempo isso vem mudando, mas o machismo ainda predomina”.

A Guarita é a maior reserva indígena do Rio Grande do Sul, com 24 mil hectares e abriga uma população estimada em 7 mil pessoas. A localidade é dividida em 18 setores – 16 ocupados por indígenas da etnia kaingang e dois pela população guarani. Entre as lideranças que representam os setores, nenhuma mulher. “A mulher kaingang muitas vezes não tem um espaço de diálogo nem dentro da sociedade kaingang. A gente luta por isso, a gente quer ter voz e não tem uma liderança mulher. E, automaticamente, é a visão do homem que prevalece. Muitas vezes, a mulher é silenciada e tem medo de falar o que está acontecendo”, relata Daniela Sales, kaingang, professora de Letras e moradora do território.

Em meio ao luto e revolta pelos assassinatos, as lideranças indígenas se articulam para a realização da II Marcha das Mulheres Indígenas, no próximo mês, em Brasília. O primeiro encontro, em 2019, reuniu 2.500 mulheres de 130 povos indígenas. Entre as pautas do documento final do encontro, o pedido pelo combate à violência e a ampliação da participação das mulheres: “Não basta reconhecer nossas narrativas, é preciso reconhecer nossas narradoras. Nossos corpos e nossos espíritos têm que estar presentes nos espaços de decisão.” 

Em setembro, ocorrerá II Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília. Primeira edição (foto) foi em 2019. Foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo

Segundo o Censo de 2010, os povos indígenas representam 0,47% da população brasileira. Mais vulnerável em diversos âmbitos sociais, a população indígena sofre de maneira mais expressiva com a violência sexual. O relatório Estupro no Brasil, de 2016, aponta que indígenas sofreram 0,7% dos crimes registrados no país. Entre as crianças, o índice é ainda maior: 0,9%. Os dados da Organização das Nações Unidas também apontam uma realidade de violência: em relatório produzido em 2016, a entidade estimou que uma a cada três mulheres indígenas sofrerá estupro ao longo da vida.

A violência não está deslocada das regiões onde estão inseridos os territórios indígenas. Em estudo realizado em 2016, Marília Cardoso Lopes demonstra a espacialidade da violência contra a mulher no Rio Grande do Sul. A região onde se situa a Terra Indígena do Guarita liderava o Índice de Feminicídios no Estado: com 1,3% da população de mulheres, era responsável por 3,9% das vítimas de feminicídio em solo gaúcho. 

A relação entre indígenas e membros externos à comunidade, marcada pela exploração sistemática de corpos e territórios, segue se impondo como um problema quando se fala sobre a violência contra as mulheres. “Quando a gente teve a presença dos colonizadores nos nossos territórios, os homens não-indígenas não falavam nem com as suas mulheres, quiça fossem falar com as mulheres indígenas. Os homens indígenas também eram silenciados e foram aliciados. Então foi o próprio não indígena que veio para dentro dos nossos territórios nos trazendo esse modo de ver, de pensar e de sujeição das mulheres”, diz Joziléia. 

A exploração da terra e da mão-de-obra também são apontados como problemas relacionados ao cotidiano de dificuldade enfrentado pelas mulheres. “É preocupante que nós tenhamos os trabalhos mais difíceis, menos valorizados, sem uma perspectiva do bem viver e com uma influência muito grande de pessoas de outros contextos. E aí, soma-se a isso, o alto índice de alcoolismo, condições sub-humanas e violentas que geram outras formas de violência”, analisa Joziléia. “Quando a gente fala da mulher, precisamos reunir a juventude, as mulheres, ter um diálogo e mostrar o que é qualidade de vida, o que é proteção à nossa cultura. As pessoas não têm dimensão do que está acontecendo, de gente que não está respeitando a nossa cultura”, diz Brasília.


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