A opção pelo investimento já faz parte da propaganda dos negócios. Foto: Luiza Castro/Sul21
10 de novembro de 2023
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08:33

Quando a terra vai para a Bolsa de Valores: cidade para quem e para quê?

Agravada por investimentos públicos, financeirização descola atividade produtiva do valor de terrenos e imóveis
Por
Luís Gomes
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Uma partida de banco imobiliário começa sempre com os jogadores disputando o acesso à compra de terrenos. Quando não há mais terrenos a serem comprados, passam a fazer investimentos naqueles que já adquiriram, na expectativa de que eles se tornem mais valorizados e possam gerar renda ou lucros maiores. Ganha quem consegue extrair o maior valor possível desses terrenos.

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No jogo imobiliário da vida real, os grandes jogadores do mercado imobiliário atuam com o mesmo objetivo. A grande diferença, porém, é que uma parte importante dos investimentos que valorizam seus terrenos não é feita por eles, mas pelo poder público. Em Porto Alegre, uma rodada deste jogo está sendo disputada diante dos olhares de todos na região central, com os investimentos públicos nos processos de revitalização da orla do Guaíba, do Centro Histórico e do 4º Distrito.

Mariana de Azevedo Barretto Fix, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (Fauusp), dedica-se a estudar o processo de financeirização da terra e do mercado imobiliário.

Um dos principais exemplos utilizados por ela é a construção da ponte estaiada Octávio Frias, em São Paulo. Hoje considerada uma obra icônica da capital paulista, ela foi construída, oficialmente, para interligar a região dos bairros residenciais Morumbi e Cidade Jardim a polos empresariais da cidade e ao aeroporto de Congonhas. Contudo, a professora argumenta que o objetivo da obra foi ser mais um “chamariz” para o mercado imobiliário do que uma solução para problemas de mobilidade.

 

Ponte Estaiada na capital paulistana. Foto: Alesp

Com investimento público final de R$ 233 milhões (em valores da época), a ponte estaiada foi inaugurada em 9 de maio de 2008. Algumas semanas depois, foi inaugurado o shopping que ancorava o empreendimento chamado de Parque Cidade Jardim. Projeto de 72 mil m² orçado em R$ 1,5 bilhão (em valores da época), incluiu também 12 torres, sendo nove residenciais, com apartamentos de até 1.700 m² e vendidos na planta por até R$ 10 milhões.

A existência de um empreendimento desse porte, diz a professora, só foi possível pela realização dos investimentos públicos de infraestrutura que, por um lado, qualificaram a região e, por outro, promoveram a remoção das cerca de 900 famílias que viviam na favela Jardim Edite, localizada na área da ponte. Ambos movimentos promoveram a valorização da área, sendo os ganhos desta valorização capturados pelo investidor privado.

A importância do financiamento público na acumulação de capital é exatamente o que se vê em Porto Alegre. Após as chamadas Obras da Copa do Mundo e a revitalização da orla do Guaíba – paga pela Prefeitura a partir de financiamentos internacionais –, grandes empreendimentos como o Shopping Pontal e o bairro privativo Golden Lake começaram a ser erguidos.

O Golden Lake levou dez anos para ser aprovado, passou por trocas na legislação, protestos e audiências públicas até ser viabilizado. O empreendimento está sendo publicizado como um bairro privado composto por sete condomínios, 18 prédios e aproximadamente 1,2 mil unidades. As torres terão entre 10 e 22 pavimentos, com unidades de 140 m² a 540 m². O primeiro dos sete condomínios já em construção é Lake Vitória, onde um apartamento de quatro quartos está sendo vendido a R$ 5,3 milhões. Unidades podem chegar a R$ 11 milhões e, conforme declarações do empreendedor, o Valor Geral de Vendas dos imóveis pode alcançar R$ 4 bilhões.

A origem do bairro privado é uma negociação iniciada em 2010, quando a ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) sancionou Projeto de Lei 13.523 para doação de uma área que pertencia ao Estado ao Jockey Club do Rio Grande do Sul.

Logo em seguida, a área de 17 mil m² foi repassada à iniciativa privada em permuta – troca do terreno por uma torre comercial com 330 unidades –, mas, em 2021, se transformou em acordo financeiro entre o Jockey Club e a incorporadora, com valor não divulgado. A partir de dados disponibilizados em demonstrativos financeiros da Multiplan, o Sul21 apurou que o negócio girou em torno de R$ 150 milhões.

 

Golden Lake terá sete condomínios em terreno do antigo Jockey Club. Foto: Luiza Castro/Sul21

Assim como ocorreu no caso da ponte estaiada, o projeto também tem relação com investimentos públicos e habitação social. Em 2010, a cidade se preparava para receber a Copa do Mundo de 2014 e uma das obras previstas para garantir maior fluidez no trânsito entre a zona sul e o restante da cidade era a duplicação da Avenida Tronco. Outro investimento público de grande vulto que hoje beneficia o Golden Lake é a canalização do Arroio Cavalhada, no trecho entre as avenidas Icaraí e Diário de Notícias, que fez parte do Programa Integrado Socioambiental (Pisa) e teve o objetivo de evitar o transbordo das águas do arroio. As obras, que iniciaram no governo de José Fogaça (2009-2010), só foram concluídas no governo de Nelson Marchezan (2017-2020).

Em 2011, ainda sem um lugar definitivo para morar, a comunidade atingida pela duplicação da Tronco fez forte apelo aos representantes da Câmara Municipal para que se comprometessem em transformar a área do Jockey Club em Área Especial de Interesse Social (AEIS) e desta forma assentar as 1,5 mil famílias removidas. Não foi atendida.

Durante o processo de preparação para as obras do Pisa, a Prefeitura identificou 1.680 famílias, de oito vilas — Foz, Icaraí I, Icaraí II, Hípica, Campos Velho, Nossa Senhora das Graças, Ângelo Corso e Barbosa Neto –, que deveriam ser removidas. Até o final de 2015, segundo relatório da então Secretaria Municipal de Gestão (SMGes), 985 famílias haviam sido reassentadas, sendo que 675 delas receberam o bônus moradia. Por outro lado, 695 não tinham sido removidas.

Posteriormente, muitas das famílias que receberam o bônus moradia, em razão do valor ser insuficiente para a compra de imóveis na região, voltaram à condição de ocupantes nas margens do arroio e, ainda hoje, permanecem nesta situação, mas novamente sujeitos a processos de remoção. Em agosto deste ano, o prefeito Sebastião Melo se reuniu com o ministro das Cidades, Jader Filho, para discutir os recursos para a construção de empreendimentos voltados para famílias que vivem do aluguel social ao largo do Arroio Cavalhada e ainda precisam, segundo a Prefeitura, ser reassentadas para as obras de duplicação da avenida Tronco.

Em meio ao processo de revitalização do Centro Histórico e do 4º Distrito, estão em fase de licenciamento os projetos de duas torres que pretendem estar entre as maiores da cidade. Para a rua Sete de Abril, bairro Floresta, está prevista a construção de uma torre de 117 metros de altura, o que só é possível pela flexibilização dos parâmetros urbanísticos pelo Programa +4D de Regeneração Urbana do 4° Distrito, lançado na gestão do prefeito Melo. Já para um terreno entre as ruas Duque de Caxias e Fernando Machado, está previsto um complexo residencial e comercial de 41 andares, que pode chegar a até 133,91 m de altura – as informações sobre o projeto, ainda em fase de licenciamento, são imprecisas.

A valorização da região central da cidade pelos investimentos públicos é destacada em fala do presidente do Sinduscon, Aquiles Dal Molin Jr., em live da entidade com a participação do secretário Germano Bremm, realizada em outubro de 2020. Ao advogar por mudanças no regramento urbanístico da cidade, ele pontua que o retorno dos investimentos públicos em infraestrutura, na forma de impostos pagos ao longo do tempo, estaria limitado pelo atual potencial construtivo.

“A cidade de Porto Alegre aproveita pouco esse capital construtivo, comparado a outras capitais. O retorno que Curitiba tem do investimento de infraestrutura é três vezes mais do que Porto Alegre tem com suas construções”, disse.

Contudo, para Mariana Fix, estes processos são marcados pela socialização dos custos de investimentos públicos, como no caso da expulsão dos moradores da favela Jardim Edite, e pela captura da valorização resultante de investimentos por agentes privados. Além disso, ela ressalta que a remoção da favela não resultou na saída das famílias da ilegalidade, o que indica que as ocupações são toleradas, desde que não interfiram na produção do lucro.

Mesmo em períodos de crise econômica, o valor médio de imóveis não apresentou desvalorização no Brasil. Ao contrário, os últimos anos foram de consolidação de grandes grupos imobiliários capazes de centralizar o capital em torno de si mesmos.

O Índice Geral do Mercado Imobiliário Residencial (IGMI-R) de setembro de 2023, calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que os imóveis residenciais valorizaram 10,28% nos últimos 12 meses, superando a inflação no período — calculada em 5,19% pelo IPCA — e as taxas dos principais títulos de renda fixa e dos fundos imobiliários.

Em artigo escrito com a professora Leda Maria Paulani, da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo, Mariana Fix destaca que a singularidade do mercado imobiliário é reunir em uma única atividade três formas de mais-valia: lucro, juro e renda. De forma resumida, o lucro com a venda dos empreendimentos, os juros sobre as operações financeiras e a renda sobre a propriedade, seja a do aluguel ou de atividades ligadas ao uso dela.

O processo de financeirização é demarcado pelo descolamento do valor de um terreno ou imóvel da atividade produtiva que é realizada nele (indústria, comércio, agricultura, etc.). Em vez disso, o valor passa a ser determinado, tal qual um ativo financeiro, pela renda futura esperada. Na prática, isso significa que o valor do imóvel passa a estar mais atrelado ao potencial de valorização como ativo financeiro do que pelo seu uso.

Uma vez entendida como ativo de capital, a terra então está sujeita ao fenômeno da especulação. O termo especulação financeira, no senso comum, é entendido como uma ação em que o proprietário mantém um terreno ou imóvel desocupado aguardando um momento de valorização que irá aumentar os seus ganhos. Contudo, ao virar ativo financeiro, ela é afetada por outro tipo de especulação.

“Os ganhos realizados nas Bolsas de Valores, quando se compra hoje a preços reduzidos ações que amanhã são vendidas por preços mais elevados, são típicos ganhos especulativos. Eles não estão relacionados, nem direta, nem indiretamente, à geração de valor novo ou valor excedente, mas tão somente às mudanças de mãos de determinados estoques de riqueza, sendo que cada agente visa, com essas operações, valorizar os seus próprios estoques”, escrevem Fix e Paulani.

Este processo é acentuado quando a terra está ligada à abertura de capital das empresas do setor. “Essa alteração tende a colocar sobre as empresas a pressão geral que a concorrência franqueada nas Bolsas entre os capitais de diferentes setores exerce sobre resultados, rendimentos e distribuição de lucros (dividendos), aumentando dessa forma a pressão por ganhos especulativos ainda maiores. Para que as empresas do setor imobiliário sejam bem-vistas nas Bolsas, passa a ser importante, por exemplo, a posse de estoques de terrenos (bancos de terra), o que evidentemente faz crescer a especulação”, afirmam.

Das oito empresas analisadas no especial Donos da Cidade, duas estão entre as construtoras com mais metros quadrados construídos em Porto Alegre. A aquisição de número elevado de terras faz parte do projeto de expansão da gaúcha Melnick Even. Após a abertura de capital na Bolsa de Valores de São Paulo, em 2020, a empresa ampliou os recursos captados através do IPO – Oferta Pública Inicial –, que permite que outras pessoas tornem-se sócias da empresa, e tem aplicado os rendimentos, majoritariamente, na compra de terrenos para compor o chamado landbank – “banco de terrenos”.

 

Na esteira da Melnick, Cyrela Goldsztein também mantém o foco nas construções residenciais. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na esteira da Melnick, a Cyrela Goldsztein também mantém o foco nas construções residenciais para consumidores de alta renda, em áreas de maior infraestrutura e, por consequência, com os terrenos mais caros da cidade. No ano passado, a receita líquida da empresa ultrapassou R$ 1,37 bilhão, superando os R$ 600 milhões de 2020. O crescimento também é parcialmente sustentado por ações na Bolsa de Valores.

A relação entre as mudanças reivindicadas pelas empresas para o Plano Diretor e o mercado financeiro ficou clara em intervenção de Juliano Melnick na já citada live do Sinduscon. Na ocasião, o CEO da Melnick afirma que, durante o processo de abertura de capital, a empresa precisou ajustar o discurso feito a investidores. Em vez de apresentar e defender a capacidade da construtora, ele se via, diz, precisando defender a praça em que atuava. No caso, Porto Alegre.

“As dúvidas, as restrições e, às vezes, até um descrédito que existem em grupos de fora do Estado é tão grande que nós tivemos que fazer uma defesa da nossa praça”, disse.

A percepção de que o mercado imobiliário de Porto Alegre está aquecido nos últimos anos foi constatada no Censo Demográfico de 2022. Em 2010, a cidade tinha 574.831 domicílios particulares permanentes. Já em 2022, esse número saltou para 686.414.

Contudo, este crescimento não pode ser facilmente explicado pela demanda habitacional, uma vez que o mesmo Censo apontou que a população de Porto Alegre caiu 5,4% no mesmo período, indo de 1.409.351 de habitantes, em 2010, para 1.332.570 moradores em agosto de 2022.

Por um lado, como argumenta a Prefeitura de Porto Alegre, há uma mudança na característica do mercado imobiliário, como o aumento de famílias monoparentais e o envelhecimento da população. Isto é, menos pessoas por domicílio. O Censo indica que a cidade tem 2,37 moradores por domicílio, contra uma média de 2,75 em 2010.

Por outro, o número de domicílios vagos mais que dobrou, passando de 48.934, em 2010, para 101.013. Outros 27.250 são de uso ocasional. Isto é, um em cada sete domicílios de Porto Alegre estão vagos.

Para quem, então, está sendo construída a cidade de Porto Alegre? A resposta está no mercado financeiro.

“A produção é desproporcional no seu ritmo e quantidade. Parece ter uma dinâmica de produção de unidades num número maior do que o crescimento da população. Isso por um lado. Por outro lado, alguém pode dizer que tem problema de habitação na cidade. Tem muita gente que mora mal, que mora na periferia distante e etc. E essa produção que a gente enxerga na cidade não é para essa faixa da população. Então, aí nós temos duas questões que nos remetem a pensar o seguinte: para quem é essa produção fundiária e imobiliária? Ela valoriza áreas em termos de valor da terra e produz edifícios para escritórios, para áreas de trabalho ou para unidades domésticas?”, questiona o professor Eber Marzulo, do Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Os novos imóveis, portanto, teriam como função principal fazer parte do portfólio de investidores. “Tanto do grande investidor, dos fundos de pensão que entram nas operações financiando a operação, quanto lá na ponta final, dos compradores. Na maior parte das vezes, os compradores finais compram o imóvel como investimento. O sujeito tem um portfólio de investimento e para ele pode ser interessante colocar R$ 2 milhões num loft, por exemplo”, diz Eber.

Fix destaca que, no caso da construção da Torre Norte do chamado World Trade Center, localizada a menos de 1 km da ponte estaiada, o empreendimento foi financiado por recursos do Fundação dos Economiários Federais (Funcef), fundo de previdência complementar dos funcionários da Caixa Econômica Federal. O Funcef, à época, possuía uma carteira de imóveis com 13 shoppings centers, 4 hotéis, 3 outros fundos de investimentos imobiliários e 130 imóveis para renda, um patrimônio de R$ 1,96 bilhão.

Em Porto Alegre, a participação de um fundo de pensão em um grande empreendimento imobiliário foi notória no Consórcio Cais Mauá do Brasil, que, em 2010, venceu a licitação para a revitalização do Cais Mauá.

O Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá do Brasil, responsável por 90% dos recursos captados para o investimento nas obras, era formado quase integralmente por institutos de previdência de servidores públicos, a maioria de prefeituras, chamados de Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). Em abril de 2019, o fundo foi alvo de uma operação da Polícia Federal que apurava desvios em fundos de investimentos com aplicações em projetos de construção civil. O contrato foi posteriormente rompido, com um novo processo de licitação em andamento.

Mariana Fix destaca que, apesar de financiarem este tipo de investimento, os servidores públicos não têm controle sobre onde seus recursos são aplicados. “As escolhas e as justificativas oferecidas pelos gestores indicam que a finalidade ética, social ou política de um investimento não pode estar no horizonte de decisões dos fundos ou, ao menos, acima do compromisso com a concessão de benefícios de aposentadoria e pensão de seus participantes. É o que explica o fato de os fundos fazerem frequentemente aplicações contrárias aos interesses dos trabalhadores, de modo análogo do que ocorre no mercado de ações, no qual se veem obrigados a busca papéis com maior capacidade de valorização, muitas vezes, hoje, aqueles pertencentes às empresas que melhor executam programas de redução do número de trabalhadores, terceirização e flexibilização de mão-de-obra”, escreve a professora.

O economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fabian Scholze Domingues acrescenta ainda que o boom da construção civil em um contexto de perda de renda dos consumidores pode ser explicado a partir de alguns fatores: o preço do metro quadrado construído, que é muito barato em relação ao custo do terreno, e o fato de o empreendimento ser vendido pelo valor do endereço, ou seja, a localização de um imóvel influencia diretamente no custo final de comercialização. Daí a preferência das construtoras por determinado bairro em detrimento de outros.

A fórmula baixo-custo-de-construção/alta-lucratividade também explica a lógica que está por trás do intenso processo de verticalização das cidades brasileiras hoje, diz Domingues: “Um andar a mais em um terreno valorizado rende um lucro extraordinário”.

O economista alerta ainda para o alto estoque de terras acumulado pelas incorporadoras, que, consequentemente, impacta no preço de mercado. Em seu entendimento, o resultado dessa equação, em um primeiro momento, são bairros cada vez mais caros e, no longo prazo, a desindustrialização da cidade.

A literatura do Urbanismo aponta para a existência de três tipos de agentes econômicos que atuam no mercado de terras em cidades. O acidental, que busca extrair renda de um negócio imobiliário. O ativo, que antecipa mudanças de regramentos urbanísticos em alguma área e busca extrair lucro da diferença de valor atual e futuro. E o estrutural, que não apenas antecipa mudanças, como atua ativamente para promover essas mudanças na legislação por meio de influência política.

Qualquer semelhança com o que acontece em Porto Alegre não é mera coincidência.

Entre os bairros de maior interesse das construtoras está, por exemplo, o Petrópolis, que na última década recebeu, praticamente, um novo empreendimento por ano. Um deles, com potencial de modificar significativamente a região, é o Complexo Belvedere que está em fase de construção. Há quatro anos, o investimento era estimado em R$ 850 milhões.

 

Complexo Belvedere avança no Petrópolis. Foto: Luiza Castro/Sul21

O projeto é do grupo Máquinas Condor, que, no final dos anos 1980, figurava como um dos maiores proprietários de terras de Porto Alegre. Durante quase três décadas, o empreendedor pleiteou a liberação para construir um grande empreendimento no terreno que inclui uma fonte de água mineral e, portanto, é uma área delimitada para preservação natural.

Pela legislação, a propriedade de minérios, incluindo a pesquisa e a exploração, cabe à União. Por isso, é de responsabilidade federal a concessão ou autorização da prática da exploração da fonte, mesmo que em propriedade privada.

Protocolado em 1995 apenas como um shopping center, o projeto foi originalmente aprovado em 2004, mas suspenso em razão de uma ação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), que questionou o impacto do projeto nas reservas subterrâneas de água no terreno.

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi firmado em 2006, mas o projeto ficou guardado por uma década, até 2016, quando foi firmado o termo de compromisso entre Prefeitura e Belvedere Participações LTDA. Naquele momento, contudo, o empreendimento contemplava um shopping com 146,5 mil m², um hipermercado Zaffari com 33,4 mil m² e duas torres comerciais com 32 mil m².

Em agosto de 2018, a então Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams) emitiu a Licença Prévia do empreendimento e, dois anos depois, em julho 2020, a Licença de Instalação (LI), que permitiu o início das obras.

A “demora” para a liberação da obra permitiu ao empreendedor esperar para que o poder público municipal providenciasse infraestrutura e serviços urbanos na região, como a construção da Terceira Perimetral, que viria a valorizar o empreendimento. No momento, a construção do hipermercado do complexo Belvedere já está em andamento. As obras do shopping e das torres ainda não começaram.

O professor Fabian Domingues avalia que a Prefeitura falha ao não frear a especulação imobiliária e que o resultado está sendo sentido pela população. “Temos visto uma fuga de estudantes e empreendedores que não conseguem pagar os altos custos da cidade e vão embora para outros lugares. A sociedade perde em nome de uma valorização imobiliária que atende os interesses de um único grupo. Do ponto de vista público, o que a Prefeitura deveria fazer é colocar na balança essas questões”, lamenta.

Uma das principais reivindicações das construtoras, a densificação de alguns bairros, está na pauta das discussões de revisão do Plano Diretor da cidade. Durante a Conferência de Avaliação do atual Plano Diretor de Porto Alegre, realizada em março deste ano, o prefeito Sebastião Melo indicou que, se dependesse só dele, a cidade não teria um limite de altura para construções. Na ocasião, ele chegou, inclusive, a citar o futuro prédio mais alto da Capital, que será construído no 4º Distrito. “Não é ainda o ideal, 127 metros ainda tá baixo”.

 

Prédio projetado para a rua Sete de Abril é um dos espigões com mais de 100 m de altura autorizados pela Prefeitura. Foto: Divulgação/SMAMUS/PMPA.

No mesmo evento, representantes de setores ligados à construção civil pediram liberação de índices de altura das edificações e mais liberdade para os projetos imobiliários. Por outro lado, entidades representativas da sociedade civil criticaram a falta de participação ampla da população nas discussões do Plano Diretor.

A professora da Universidade de São Paulo (USP) e urbanista Raquel Rolnik, referência nacional nas discussões de planejamento urbano, ressalta que o setor imobiliário sempre participou e tem toda a legitimidade para participar desses processos, colocando em debate os valores que têm a ver com o seu negócio.

No entanto, avalia que o destino de uma cidade não pode ser pautado apenas por esses interesses. “Valores como ambiência urbana, história, memória, racialidade e questões ambientais não podem ser ignorados”, diz.

Para a urbanista, a ideia de cidade em que o único valor relevante é a rentabilidade do solo acaba impondo aluguéis impagáveis, despejos e endividamento.

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