Após “transladação de área a ser demolida”, Cidade Nilo avança em frente à Encol. Foto: Luiza Castro/Sul21
8 de novembro de 2023
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09:11

Exceção da lei: Cidade Nilo e Torres do Beira-Rio indicam que nada é impossível em Porto Alegre

Quando projetos esbarram em impedimentos legais, secretário Germano Bremm toma para si a responsabilidade de garantir que avancem
Por
Lidiane Blanco
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Se alguém disser que irá transportar um prédio demolido para reformá-lo em outro ponto do mesmo terreno, é provável que você diga ser impossível. Não em Porto Alegre. Inconformado com o fato de a Lei 462/2001 impedir a construção de novos supermercados com mais de 2,5 mil m², em 2020, o Grupo Zaffari pediu à Prefeitura a “transladação de área a ser demolida” para então construir seu empreendimento fora dos parâmetros vigentes na cidade. As informações estão em inquérito civil aberto pelo Ministério Público Estadual para investigar se houve infração no licenciamento. Curiosamente apelidada de “Lei Zaffari”, pois limitaria a concorrência à rede de supermercados, a norma foi atualizada em 2010 e manteve os padrões.

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O grupo comprou o terreno onde ficava o antigo Supermercado Nacional, da rede Walmart, na esquina da Rua Carazinho com a Avenida Nilópolis, em frente à Praça da Encol. A loja de 4,8 mil m², no bairro Petrópolis, tinha sido construída antes de entrar em vigor a lei que limitou o tamanho desse tipo de estabelecimento. A regra permite exceção às edificações já existentes, mas os padrões não atendiam ao projeto pretendido e o prédio seria derrubado para dar lugar a duas torres de apartamentos e um centro comercial anexado ao novo Zaffari.

Em dois anos, ao menos sete pareceres dos órgãos públicos recomendaram à empresa que adequasse a proposta. Um deles alertava: “Caso a edificação seja demolida, o requerente perde o direito à construção de um novo prédio com área superior à permitida em lei”. Outro dizia: “Ratificamos a necessidade de serem atendidas as diretrizes”. E ainda: “A proposta apresentada não demonstra manter a edificação pré-existente e deverá atender a Lei”. Nada disso aconteceu e o projeto foi indeferido pelos técnicos do Município em julho de 2020.

 

Empreendimento está localizado na Nilo Peçanha, próximo à Praça da Encol. Foto: Luiza Castro/Sul21

A posição da Prefeitura, no entanto, foi revista depois de o “Cidade Nilo” – parceria do Grupo Zaffari com a construtora Melnick – entrar na lista de projetos prioritários beneficiados pelo decreto 20.655, expedido pelo ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB). A empresa exigiu a reanálise da “aplicabilidade da lei” e a revisão do indeferimento, alegando se tratar de reforma. “O estabelecimento apenas mudará de posição no terreno, por meio de sua reconstrução”, dizia o Requerimento Administrativo enviado pelo escritório de advocacia do grupo.

O documento contestava também a exigência do Estudo de Impacto Ambiental e o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU), que identifica se um empreendimento é viável ou não em uma determinada área da cidade e serve de base para análise de possíveis medidas mitigadoras e compensatórias que serão executadas pelo empreendedor. Segundo a assessoria jurídica da empresa, os impactos já tinham sido analisados há mais de 20 anos quando o imóvel original foi construído.

Acusada pelo grupo Zaffari de desobedecer a Constituição Federal, ferir o princípio da legalidade administrativa e afrontar o interesse público ao proibir a modernização do supermercado, a Prefeitura autoriza a continuidade do processo depois que o Grupo de Regulamentação e Interpretação do Plano Diretor (GRIPDDUA) enquadra o projeto na exceção da lei. Ou seja, a empresa poderia construir um novo Zaffari duas vezes maior do que determina a lei ao “transladar a área virtual”.

Criado por Marchezan para dar segurança jurídica às etapas de licenciamento, o GRIPDDUA gerou ainda mais dúvidas entre os técnicos municipais, que pediram apoio à Procuradoria-Geral Adjunta do Município. A própria PGM já havia negado aumento de porte ao Walmart em 2005, usando como referência a mesma Lei 462/2001.

 

Cidade Nilo é parceria do Zaffari com a Melnick. Foto: Luiza Castro/Sul21

Antes mesmo de a resposta da Procuradoria-Geral ser elaborada, Germano Bremm, então secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade, envia um ofício à diretoria-geral do Escritório de Licenciamento pedindo providências ao setor. Ele não gostou da iniciativa do corpo técnico e ordenou a continuidade da tramitação. “A recusa intransigente em dar prosseguimento ao processo administrativo não só causa prejuízos aos interessados, mas à própria Administração e ao Regime Jurídico Administrativo”, escreveu.

O diretor do Escritório de Licenciamento, Artur Amaral Ribas, que até então havia concordado com o indeferimento do projeto e envio de consulta à PGM, encaminha nova mensagem escrita de próprio punho à Coordenação de Desenvolvimento Urbano: “Considerando todo o exposto, solicito a redistribuição do processo e que a análise deste EVU seja conduzida diretamente pela chefia da CDU”.

Desde fevereiro de 2021, ao menos três denúncias foram levadas ao Ministério Público Estadual pedindo a verificação da legalidade do processo e a análise jurídica da interpretação dada pela Prefeitura à legislação. Com diversos pareceres divergentes dos órgãos municipais em todo o processo, é difícil compreender até mesmo os procedimentos adotados no decorrer do licenciamento do novo Zaffari.

Automaticamente enquadrado como Projeto Especial de Impacto Urbano de 2º Grau, ele foi aprovado pelo Conselho Municipal do Plano Diretor (CMDUA) e gerou um termo de compromisso – uma espécie de contrato –, condições exclusivas dos projetos especiais que precisam pactuar obrigações para mitigar e compensar os impactos negativos gerados por construções de grande porte.

Mas, ao justificar a transladação e o reaproveitamento dos estudos técnicos e ambientais de mais de 20 anos atrás, Bremm diz ao MP que “inexiste nos termos do licenciamento do supermercado transladado qualquer situação que vincule o empreendimento ao Anexo 11 do PDDUA, rol taxativo. Ademais, as razões do não enquadramento do empreendimento foram demonstradas diversas vezes no parecer do GRIPDDUA e na informação da PMS-6”.

 

Secretário Germano Bremm. Foto: Giulian Serafim/PMPA

O rol taxativo referido pelo secretário são as condições que enquadram por obrigatoriedade uma construção em projeto especial. Entre essas características estão edificações que possuem mais de 400 vagas de garagem. É justamente o caso do “Cidade Nilo”, que trará 442 novas vagas de estacionamento para o Zaffari e outras 194 às torres residenciais que pertencem à construtora Melnick – inexistentes no antigo Supermercado Nacional.

No entanto, ao se valer do instrumento de transladar, a Prefeitura desconsiderou o impacto das vagas de garagem. Essa é uma contradição da própria lei, porque existe um anexo (Art. 61., § 1º) que diz que o parâmetro é o número de garagens, mas quando considera-se o regime urbanístico, a questão dos estacionamentos não conta do ponto de vista da área (Anexo 5, Regime de Atividades).

Segundo investigações conduzidas pela Promotoria de Justiça da Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, não há dúvida que ocorreram sucessivos acréscimos na planta da edificação. “A proposta do Grupo Zaffari/Melnick envolve um complexo com vários usos: supermercado, galeria comercial, subsolos de estacionamento e torres residenciais. Logo, não se trata de uma ampliação e tampouco de um projeto semelhante ao já existente” e, portanto, não justificaria a dispensa dos estudos vinculados ao licenciamento.

Como isso vai impactar o entorno e o que foi feito para compensar? Documentos entregues de forma anônima ao MP, em maio deste ano, indicam que as ações de mitigação e compensação acordadas entre a Prefeitura e o Zaffari não são suficientes para amenizar os históricos alagamentos por falta de drenagem na região. O que já havia sido apontado pelos pareceres do corpo técnico especializado do órgão: “A construção existente no local e a nova proposta não apresentam o ‘mesmo efeito sobre o influxo das pessoas, o uso das vias e serviços públicos, o fluxo de veículos e a paisagem urbana’, como tentou argumentar o Município”.

A interpretação técnica do GRIPDDUA também foi considerada inadequada pelo corpo técnico do MP. “A edificação não está sendo modernizada, mas sim demolida, deixando de existir no tempo e no espaço, o que retira qualquer enquadramento da exceção do parágrafo 1° do art.2° da LC 462/2001”.

“É verdade que o que se pretende aqui não está expressamente previsto nas legislações municipais que regem a matéria”, admite a Procuradoria Municipal Setorial 06 em informação enviada ao MP, mas afirma que “não há qualquer instabilidade jurídica-urbanística uma vez que houve estudo exaustivo feito pelo Município para aplicação da exceção, além de sanção do Executivo Municipal” e que “não há por que se ater a minúcias, detalhes insignificantes”.

Outro fator desconsiderado no licenciamento foi o impacto que mercados menores do entorno sofrerão por conta da concentração econômica do novo “shopping”, o que vai contra um dos princípios do Plano Diretor. Conforme apurou o Jornal do Comércio, a liberação do tamanho da área não é aceita nem por quem atua no segmento. Ainda assim, no ano passado, um projeto de lei tentou acabar com a restrição de tamanho para novos supermercados em Porto Alegre, mas foi rejeitado na Câmara Municipal. Somente os cinco autores do PL votaram a favor da proposta, Felipe Camozzato e Mari Pimentel, do Novo, Fernanda Bath (PSC), Jessé Sangali (Cidadania) e Ramiro Rosário (PSDB). Mas os próprios vereadores da base do governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) se uniram à oposição para derrotar a proposta.

Em 2019, o secretário Germano Bremm colocou na pauta do Conselho do Plano Diretor o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) o projeto imobiliário do Sport Club Internacional, conhecido como “Torres do Beira-Rio”. A iniciativa foi barrada pelos conselheiros do CMDUA, pois eles entenderam que não faria sentido aprovar a construção de um empreendimento proibido pela legislação.

O terreno doado ao clube pela Prefeitura para fins esportivos não pode ser revertido para exploração privada, sob pena de ser devolvido ao poder público. Está na Lei 1651/1956. Mas, a intenção do clube é construir dois prédios — com 80 e 130 metros de altura –, um de 286 apartamentos de uso residencial, além de hotel, galeria comercial, centro de eventos, escritórios e 420 vagas de estacionamento, na avenida Padre Cacique, bairro Cristal.

Projetos de lei para mudar o regime urbanístico da área e permitir ao Internacional construir habitações não prosperaram até então. O último Projeto de Lei enviado à Casa legislativa está parado desde 2021. “Eu acho que seria mais correto esperar a votação na Câmara de Vereadores”, disse o conselheiro Luiz Antônio Marques Gomes, no dia 9 de julho de 2019, em reunião do CMDUA.

Após o secretário insistir que não havia impeditivo para aprovação do EVU, o Conselho pediu que fosse enviada uma diligência à Procuradoria-Geral do Município para que se esclarecesse se o projeto poderia tramitar mesmo sem ter base legal.

 

Projeto apresentado para a construção das torres ao lado do estádio Beira-Rio. Foto: Reprodução

A resposta veio duas semanas depois, do próprio Bremm, que elaborou o parecer de diligência: “O Conselho tem que solicitar esclarecimento e a administração municipal tem que responder, mas agora a gente pontuar este ou aquele, ou determinado órgão, isso não pode ser a prerrogativa do Conselho. Então, foi nesse aspecto que a gente fez o parecer de diligência, esclarecendo todos esses pontos, inclusive, nos aspectos legais”, disse em 23 de julho de 2019. “A não existência de lei que autorize a atividade residencial para a área não impede a aprovação do estudo de viabilidade urbanística, uma vez que o EVU não gera direito ao interessado”, afirma o secretário no documento.

O conselheiro Hermes de Assis Puricelli é o primeiro a fazer as considerações de vista sobre o processo a ser deliberado naquela noite: “Quando a gente tenta trazer à tona essas questões de ditas irregularidades ou desconformidade no processo, parece que a gente sempre é visto como alguém que quer complicar, quer atrasar, mas eu queria dizer, inclusive, em respeito aos profissionais presentes aqui, que a nossa preocupação é primeiro pela transparência do processo, pela legalidade e também para que mais tarde esse processo não pare novamente por algum questionamento. Eu insisto que tem várias irregularidades”, disse. “O que eu queria dizer é que também não me senti satisfeito [se referindo a resposta de diligência], eu havia pedido um esclarecimento ao DMAE” [Que não foi atendido].

A reportagem teve acesso ao estudo aprovado pela Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento (CAUGE), antes de ser barrado pelo Conselho do Plano Diretor. Nele, é possível identificar que constam orientações e documentos que fazem referência a pelo menos três empreendimentos distintos. Nas diretrizes do Departamento Municipal de Águas e Esgotos, por exemplo, há orientações para projeto de abastecimento de água para o “Centro de Treinamento a ser executado na avenida Edvaldo Pereira Paiva, 4001, para uma população de 70 pessoas”.

Em outra diretriz, a extinta Secretaria Municipal de Urbanismo afirma que “em relação à altura das edificações, o limite para a aplicação da arquitetura icônica, fica autorizado 160 metros de altura”. Outras orientações encaminhadas pelas secretarias estão incompletas e não é possível ver a totalidade do que foi recomendado, já que há várias folhas que foram retiradas do processo.

 

Internacional planeja construir duas torres no estacionamento ao lado do Beira-Rio. Foto: Luiza Castro/Sul21

“O que estamos discutindo aqui são condicionantes, que realmente vão ter efetividade quando da aprovação de projeto. Realmente, por todos os processos que já passaram por aqui, que nós mandamos para diversas e diversas secretarias, por que não foi atendido nesse momento esse pedido?”, questionou o conselheiro Gomes.

Para tentar resolver a situação, Adroaldo Venturini Barbosa, conselheiro representante da Região de Gestão de Planejamento 2, pede mais prazo para esclarecimentos de dúvidas. “Eu vejo que nós não estamos conseguindo entender o processo. Então, eu coloco como relator, tentando ajudar a ‘desenosar’, porque não é possível que haja tanta dúvida. A gente está aqui e quer ajudar, não só a cidade, mas fazer com que o Conselho se mantenha com uma boa postura, como sempre tivemos. Então, eu gostaria de solicitar mais uma semana para que a gente possa refletir e talvez tirar algumas dúvidas”.

Em nota ao Sul21, a SMAMUS afirma que “atua sempre dentro da legalidade, da melhor técnica e do que acreditamos que é o melhor para o desenvolvimento da nossa cidade”.

O processo foi retirado da pauta depois que o Ministério Público Estadual enviou uma “recomendação” à Prefeitura para que interrompesse a tramitação do projeto até que o processo de alteração legislativa fosse concluído.

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