Porto Alegre se molda a partir de interesses que contemplam uma pequena parcela da população. Foto: Maria Ana Krack/PMPA
7 de novembro de 2023
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09:27

Como um restrito grupo de empresários mudou a lógica do planejamento urbano de Porto Alegre

Intervenções do poder público, de interesse do setor imobiliário, têm sido fundamentais para derrubar leis, driblar o Plano Diretor e a opinião pública
Por
Lidiane Blanco
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Em 2020, a incorporadora Melnick enfrentava dificuldades para convencer investidores sobre a capacidade de Porto Alegre em absorver a quantidade de lançamentos anuais necessários para tornar os negócios do grupo ainda mais atraentes para o mercado. A empresa tinha acabado de abrir capital na Bolsa de Valores e o chamado Valor Geral de Vendas (VGV) – potencial de lucro com a venda das unidades de um empreendimento imobiliário – virou uma preocupação para o CEO, Juliano Melnick.

Entenda como mapeamos os projetos especiais que mudaram Porto Alegre nos últimos 10 anos

“O descrédito que existe entre grupos de fora do Estado é tão grande que tivemos que fazer uma série de defesas em relação a nossa praça. Eles [os fundos que investem em empresas de capital aberto] não acham normal ter que fazer tantos lançamentos, mas o VGV que a gente consegue fazer é infinitamente menor que outras capitais. Enquanto outras empresas precisam fazer três, nós temos que fazer dez”, disse Melnick, no dia 28 de outubro de 2020, para o secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, em live transmitida pelo Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon-RS).

Eliminar esse obstáculo, que impedia o grupo de expandir o seu portfólio e captar mais recursos, esbarrava em uma trinca de problemas: a venda de índice construtivo, afastamentos e altura – que permitiria utilizar esse índice – e o saturamento. O dono de uma das maiores construtoras do Estado disse entender pouco do Plano Diretor da cidade onde está sediado, mas queria uma solução para construir ainda mais apartamentos por projeto. “Se não mexermos no adensamento, a cidade vai consumir seu solo rapidamente. Ela tem um limite”, comentou Melnick. “Então, talvez, nós possamos, em uma janela de oportunidade que estamos vivendo, que é o entendimento do lado da Prefeitura mais alinhado com o nosso tema, resolver esses gargalos e destravar a cidade para o caminho do adensamento”, reivindicou o empresário a Bremm.

“O objetivo da pauta é debatermos com o governo municipal sobre a necessidade urgente de intervenções pontuais no Plano Diretor de Porto Alegre”, disse o arquiteto Antonio Zago, consultor do Sinduscon, no mesmo encontro. A arquiteta Lisandra de Lucena Theil, à época gerente de incorporações da construtora Rotta Ely, questiona o secretário se ainda teria “alguma outra medida ou artifício” que poderiam ser alterados antes da revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (Lei Complementar 434/99). “Esse é o enfoque”, pontuou.

“Como a gente pode ter mais decretos, mais leis complementares, assim como vieram maravilhas durante os últimos meses. E depois, se pensar que essa revisão seja uma compilação dessas leis já aprovadas, para gente surfar nessa onda de juros baixos e disponibilidade de crédito para que o Plano Diretor não seja um entrave”, perguntou Lisandra.

O engenheiro Aquiles Dal Molin Júnior, que até o ano passado presidiu o Sinduscon-RS, rasgou elogios a quem desobstruiu os caminhos para os negócios imobiliários. “O secretário Germano conseguiu num curto espaço de tempo fazer alterações que são históricas dos nossos desejos. A cada 15 dias temos uma novidade positiva do secretário”, disse.

Entre as benfeitorias citadas por Lisandra e Dal Molin estão os decretos que estabeleceram o sistema de licenciamento digital (20.606), o licenciamento expresso (20.613) e o habite-se autodeclaratório (20.542). Esses últimos transferiram da Prefeitura para arquitetos e engenheiros a responsabilidade ao projetarem novas obras de pequeno porte. Emitidas de forma eletrônica, as licenças deixaram de passar pelos processos administrativos municipais, estratégia já adotada por outras metrópoles brasileiras, mas que não é consenso no setor.

 

Nelson Marchezan Júnior. Foto: Alex Rocha/PMPA

Para a arquiteta e urbanista Raquel Hagel, presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura-RS, a fiscalização para emissão das Cartas de Habitação por parte da Prefeitura deveria ser mantida. “Por um lado, reduz a burocracia, mas, se não existirem vistorias por amostragem, pode abrir espaço para irregularidades”. O licenciamento expresso também é tema bastante controverso, mesmo dentro da entidade, afirma Raquel. “Entendemos que enquanto não temos na cidade uma legislação totalmente clara e direta é um procedimento que, em casos mais complexos, gera insegurança para o profissional” diz. O Sindicato dos Engenheiros tem o mesmo posicionamento. De acordo com o engenheiro civil João Leal Vivian, diretor de negociações coletivas do SENGE-RS, “o profissional hoje depende de interpretar uma grande quantidade de leis e decretos que muitas vezes geram conclusões opostas às dos técnicos municipais”.

Se antes uma construtora esperava em média 200 dias para receber aprovação do Escritório de Licenciamento, com a mudança a liberação passou a ser feita na hora. Agora, a Prefeitura apenas fiscaliza o empreendimento no caso de ocorrer alguma irregularidade. A medida liberou o órgão público para se dedicar à avaliação de projetos maiores.

Em um curto espaço de tempo, a paisagem da cidade ganhou novos contornos com a construção de milhares de salas comerciais e apartamentos. Dezenas de tapumes e obras espalhadas pelas ruas indicam que novos imóveis estão por vir. A criação de um sistema digital para aprovação de projetos e a modernização no Escritório de Licenciamento da Prefeitura foram importantes para acelerar essa transformação, mas não apenas isso. Quatro meses depois de ter sido eleito prefeito, em 2017, Nelson Marchezan Junior (PSDB) iniciou o que considerava serem “as reformas tão necessárias” para o município e que, segundo ele, só poderiam ser concretizadas pela “elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política. Delegar isso ao ‘seu João’ e à ‘Dona Maria’ é irresponsabilidade”, disse. Começava ali uma aproximação histórica entre o Executivo municipal e os empresários da construção civil, que mudaria a lógica do planejamento urbano da Capital.

Os elogios da indústria da construção civil ao secretário Germano Bremm não são sem razão. Figura central no apoio à reforma política proposta pelo prefeito Marchezan, ele foi mantido no cargo na transição de governo. Sob a administração do atual prefeito, Sebastião Melo (MDB), Bremm passou a ocupar posições públicas estratégicas para acelerar as liberações de empreendimentos imobiliários.

À frente da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS), do Conselho do Plano Diretor (CMDUA) e do Conselho de Meio Ambiente (COMAM) – órgãos que analisam a viabilidade desses projetos arquitetônicos –, ele tem alertado os empresários do ramo sobre o risco de Ação Direta de Inconstitucionalidade ao se fazer alterações no Plano Diretor que não tenham sido precedidas de consulta e participação popular, estudo prévio e estudo técnico.

Nos bastidores, no entanto, o secretário tem mostrado quais mecanismos podem ser utilizados para realizar mudanças pontuais no planejamento urbanístico. “A gente tem feito muitas alterações ao longo deste ano”, disse ainda na live do Sinduscon, em 2020. “Um ponto bem interessante que a gente pode trabalhar muito é o Sistema Municipal de Gestão do Planejamento, porque ele permite mudanças no processo de licenciamento como um todo, desde os projetos especiais de impacto urbano até a delimitação que a gente poderia fazer em relação aos estudos de viabilidade urbanística”, explicou Bremm aos empresários.

O Sistema Municipal de Gestão do Planejamento (SMGP), gerenciado pela SMAMUS, foi criado para dar dinâmica e permitir um processo permanente de atualização do Plano Diretor, mas deixa claro nos incisos I e II do artigo 33 que seu objetivo é criar canais de participação da sociedade na administração municipal e garantir um gerenciamento que priorize a melhoria da qualidade de vida da população como um todo, o que está sendo desvirtuado pela Prefeitura.

O artigo 15 do Código de Edificações de Porto Alegre também tem sido referido para embasar as decisões do governo. Ele permite, por exemplo, aprovação de projetos e licenciamento de construções, regulamentados unicamente pelo Executivo Municipal. Decretos, Leis Complementares e algumas mudanças que podem ser feitas por meio de resolução do Conselho Municipal do Plano Diretor (artigos 163 e 164 do PDDUA) também têm sido amplamente utilizados para realizar os pedidos dos empresários.

Procurada, a SMAMUS defendeu que a desburocratização e a modernização dos procedimentos administrativos “são pilares inegociáveis da atual gestão – tendo a convicção da correção técnica e jurídica das medidas tomadas”. A secretaria argumenta ainda que é natural que qualquer mudança gere descontentamento em parte da população, mas que a SMAMUS não pode basear suas avaliações apenas pela opinião daqueles que defendem a crítica pela crítica e glorificam o atraso e o conflito”.

As vitórias acumuladas pelo setor junto ao Executivo municipal garantiram um lugar ao sol para poucos. Nos últimos quatro anos, os empreendimentos projetados por duas construtoras correspondem à maioria dos projetos aprovados na Prefeitura: a gaúcha Melnick e a Cyrela Goldsztein, braço regional da Cyrela nacional. Ambas também foram as principais beneficiadas pelo decreto 20.655 de projetos prioritários para aceleração dos licenciamentos, lançado por Marchezan em 2020 para atender ao que ele chamou de retomada econômica após a pandemia de covid-19.

Os efeitos desta lista foram imediatos e positivos para as duas construtoras. Só em 2020, a Melnick projetou mais do que a soma dos sete anos anteriores. Hoje, a construtora tem quase quatro mil apartamentos em construção na cidade, distribuídos em 22 empreendimentos, sendo que 20 deles estão na lista de contemplados pelo decreto municipal. A Cyrela, até 2019, tinha em média duas construções projetadas por ano na capital gaúcha. No período seguinte, esse número saltou para 19 – 9 deles são prioritários.

As construtoras têm atuação nacional com foco maior em habitações residenciais de médio, alto e altíssimo padrão em áreas de maior infraestrutura e, por consequência, com os terrenos mais caros da cidade. Em 2020, a Cyrela arrecadou R$ 6,7 milhões em um imóvel num edifício no bairro Moinhos de Vento. No Cidade Nilo, empreendimento da construtora Melnick, priorizado pelo decreto – e que ainda não saiu do papel –, um único apartamento no bairro Petrópolis pode custar mais de R$ 11 milhões. Em 2022, a Melnick anunciou o melhor ano de sua história, ultrapassando R$ 1 bilhão em receita líquida. Parte do resultado se deu pelo recorde de empreendimentos entregues.

 

Botanique Residence: Foto: Luiza Castro/Sul21

A grande maioria desses empreendimentos foi viabilizada por meio dos chamados Projetos Especiais de Impacto Urbano – um instrumento de regulação previsto no Plano Diretor e que permite algumas exceções às regras de construção vigentes na cidade. Embora utilizado mais amplamente na última década, a figura do Projeto Especial aparece pela primeira vez em 1987, por pressão dos profissionais ligados aos interesses da construção civil que reivindicavam o “planejar pela proposição e não pela proibição”, explica a urbanista e mestre em Planejamento Urbano e Regional Maria Tereza Albano.

Quando foi criado, no entanto, fazia parte das estratégias de produção da cidade para desenvolver projetos para áreas carentes de infraestrutura, como os bairros Humaitá e Navegantes. Contudo, ao longo dos anos, acabou sendo utilizado massivamente para a construção de grandes empreendimentos em áreas nas quais não poderiam ser instalados, diz Albano.

A mestre em Planejamento Urbano e Regional e doutora em Geografia Julia Ribes Fagundes analisou, ao longo de dois anos, os Projetos Especiais aprovados entre 2010 e 2019. De acordo com o estudo, a região central da cidade foi a que mais recebeu projetos, a maioria de uso misto e comercial, direcionados para um público de classe média-alta ou para fins de investimento. “Se num primeiro momento estes empreendimentos parecem fazer sentido naquela região, com uma análise mais criteriosa é possível identificar que, ao concentrar boa parte dos serviços dentro de suas dependências, eles acabam interagindo pouco com a cidade, o que indica que o pretenso desenvolvimento produzido por estes projetos está diretamente relacionado à valorização imobiliária, já que eles acabam inflando os valores de aluguel no entorno” diz Júlia.

Ao analisar o que os empreendedores entregaram para a cidade em troca dos impactos urbanísticos e ambientais gerados e dos benefícios urbanísticos concedidos a seus projetos, a pesquisadora identificou que, das 1.292 medidas de mitigação e compensação de impacto (firmadas em Termo de Compromisso), 60,6% estavam relacionadas a infraestrutura viária, colaborando para um modelo de cidade baseado no automóvel.

Para a promotora de justiça do Ministério Público Estadual Annelise Steigleder, o grande problema dos projetos especiais é que a Prefeitura não consegue dizer não ao empreendedor. “Por que não consegue dizer não? Porque a lei permite. No entanto, o processo é todo discricionário”.

O que a promotora Annelise aponta como discricionário é o fato desses projetos especiais serem analisados caso a caso diretamente com entes públicos, o que, segundo ela, abre margem para negociações.

Hoje, para que um empreendimento desses seja aprovado, a empresa submete ao Município uma proposta preliminar que passa por estudos de viabilidade urbanística – que identificam se o prédio pode ou não ser executado naquele local – e impacto ambiental que aponta as condições da região antes da implantação do projeto. Muitos deles acabam interferindo na qualidade de vida das pessoas ao trazerem grande fluxo de veículos, aumento da poluição sonora, atmosférica e concentração de gases de efeito estufa.

Esses estudos são importantes, pois são eles que irão fundamentar as ações para mitigar os impactos negativos causados pela chegada de uma edificação de grande porte, como por exemplo, ampliação de ruas e rede de esgoto, reforma de uma praça ou de um centro de saúde para suportar a demanda de novos moradores. Uma compensação deve ser feita quando não é possível evitar ou atenuar esses problemas. Essas responsabilidades são do empreendedor, mas têm sido negociadas com a Prefeitura que, ou isenta o empresário de realizá-las, ou cobra o mínimo possível, como veremos na segunda reportagem da série.

Embora previsto no Plano Diretor, o estudo de impacto de vizinhança nunca foi regulamentado. De acordo com Annelise, isso também acaba fragilizando a participação social. “Enquanto o EIV prevê a consulta pública, o EVU tramita em sigilo, ninguém tem acesso a esse estudo, não se tem transparência”, lamenta a promotora. Isso porque a legislação diz que é obrigatório ao Município dar publicidade aos documentos do EIV, que devem ficar disponíveis para consulta de qualquer pessoa. Essa análise detalhada traria, por exemplo, dados sobre a valorização imobiliária causada pelo novo “vizinho”.

Quem mais aprova projetos imobiliários também está entre os maiores doadores da campanha de Sebastião Melo (MDB) à Prefeitura de Porto Alegre em 2020. Ricardo Antunes Sessegolo, diretor do grupo Goldsztein, aportou R$ 50 mil, além dos empresários Daniel Goldsztein (R$ 30 mil), Sergio Goldsztein (R$ 20 mil) e Fernando Goldsztein (R$ 40 mil). Dois diretores da Cyrela doaram R$ 30 mil cada um: Rodrigo Aurichio Putinato e Efraim Schmuel Horn. Com R$ 200 mil em doações, os integrantes da Goldsztein Cyrela foram os principais financiadores de Melo.

Quatro integrantes da família Melnick também fizeram generosos repasses à campanha do candidato vitorioso. Leandro Melnick (R$ 20 mil), Milton Melnick (R$ 18 mil), Juliano Melnick (R$ 17 mil) e Roseli Rabin Melnick (R$ 15 mil). O fundador da Multiplan, José Isaac Peres, aportou R$ 55 mil e Iboty Brochmann Ioschpe, presidente da Arado Empreendimentos Imobiliários, repassou R$ 40 mil em apoio ao prefeito. Juntas, outras sete empresas do setor imobiliário doaram mais de R$ 285 mil.

No mesmo pleito, quando Marchezan tentava a reeleição, alguns doadores também investiram no tucano, embora as apostas tenham sido maiores em Melo. Carlos e Pedro Jereissati, do Grupo Iguatemi, doaram, cada um, R$ 75 mil. O fundador da Multiplan, José Isaac Peres, investiu R$ 75 mil. Doaram ainda a Marchezan os empresários Elisabeth Teresa Marchioro Goldsztein (R$ 15 mil), Daniel Goldsztein (R$ 10 mil) e Ricardo Antunes Sessegolo, diretor do grupo Goldsztein, (R$ 10 mil).

 

Sebastião Melo. Foto: Gabriel Ribeiro/CMPA

Nos últimos anos, esse seleto grupo de empresários conseguiu o que ninguém havia conseguido antes em Porto Alegre: derrubar as leis urbanísticas e ambientais que impediam a construção de grandes empreendimentos na orla do Guaíba, ajustar a legislação municipal tantas vezes quanto necessárias para caber nos seus interesses, ainda que isso implique em construir torres de apartamentos em áreas de preservação permanente ou “criar solo” em bairros já saturados.

Com o apoio de Marchezan foi possível “destravar” os projetos mais polêmicos e emblemáticos da história recente da Capital, como o Shopping Belvedere, no bairro Petrópolis, o complexo Pontal e o condomínio Golden Lake, no bairro Cristal. Ao assumir o governo municipal, Melo deu continuidade e aprovou a construção de um novo bairro que irá ocupar o terreno da antiga Fazenda do Arado e tem tentado tirar do papel as Torres do Beira-Rio, ambos na zona sul da cidade. Projetos que estavam há mais de uma década parados por não se enquadrarem nos mínimos requisitos exigidos pela lei urbanística vigente.

O pedido de liberação para construir mais metros quadrados por empreendimento feito por Juliano Melnick foi atendido em 2022. A alteração nas regras de compra de solo criado já tinha sido apresentada em 2019 pelo então prefeito Marchezan, mas foi mal conduzida pelo Executivo. A mudança ignorou a exigência de debate prévio com a sociedade e o Ministério Público Estadual pediu a suspensão. Ao assumir o governo, Melo fez acordo com o MPE para que a lei seguisse valendo, realizou audiência pública virtual, remodelou e sancionou a Lei 946/2022.

Também conhecido como outorga onerosa do direito de construir, o solo criado é a permissão que o Município dá ao proprietário de um imóvel para edificar acima do limite estabelecido no Plano Diretor. Sempre que alguém construir em uma área maior que certa proporção do terreno, haverá criação do solo, e o excedente será cobrado. Até então, só era possível comprar até 300 m² extras no “balcão”, ou seja, diretamente com a Prefeitura. Para adquirir limites maiores do que esse, era preciso disputar a área desejada em leilão público.

A nova lei tornou o processo de compra mais vantajoso para as construtoras, antes sujeitadas à concorrência de outros empreendedores. O construtor também não precisa mais pagar em moeda corrente. A aquisição de solo criado pode ser trocada por imóveis, obras ou serviços. Com o fim dos leilões, acabou também a possibilidade de o Município arrecadar mais recursos com a disputa entre os interessados.

Conforme o Diário Oficial de Porto Alegre (DOPA), desde a implementação da nova Lei do Solo Criado, também foram a Melnick e a Cyrela as que mais compraram índices extras para construir — mais de R$ 10 milhões. Os edifícios já estão em obras nos bairros Jardim Europa, Rio Branco, Boa Vista e Petrópolis. Entre as contrapartidas acordadas pelos empresários que optaram por não pagar em dinheiro estão a revitalização no lago do Parcão, obras no Viveiro Municipal e a entrega de uma plataforma digital ao município.

O Complexo Pontal, projetado pela construtora Melnick em parceria com a BM Par, dividido em shopping, hotel, escritórios, consultórios médicos, centro de eventos, estacionamento, loja de material de construção e um parque público, foi aprovado entre vetos da população e denúncias de lobby e propina. A área onde está instalado o empreendimento estava estagnada desde a desativação da antiga indústria naval Estaleiro Só, em 1995. No processo de falência da empresa, o terreno passou para o poder público municipal. Nas duas décadas seguintes, a Prefeitura tentou leiloá-lo, mas só conseguiu após o então prefeito Tarso Genro (PT) sancionar a Lei Complementar 470/2002, que autorizou atividade comercial no local, tornando-o mais atraente para o mercado.

Avaliado em R$ 17 milhões [em valores da época], acabou arrematado pelo lance mínimo de R$ 7,2 milhões pelo empresário Saul Boff, dono da BM Par. “A ideia era fazer um empreendimento misto com torres residenciais e imóveis comerciais, para isso eu teria de mudar a lei porque, na época, só podia construir área comercial”, disse Boff em entrevista à GZH.

A segunda alteração da legislação para permitir a construção de residências chegou a ser aprovada pela Câmara Municipal, mas uma denúncia de pagamento de propina acabou com os planos do empresário. “Recebi oferta de ajuda para minha campanha eleitoral por um emissário da BM Par”, revelou o ex-vereador Cláudio Sebenelo (PSDB).

O advogado da empresa, Milton Terra Machado, negou ter havido suborno. “A oferta de doação não se vinculou a um pedido de aprovação do projeto”, disse à Folha de São Paulo. Segundo ele, o vereador tucano era amigo de um diretor da BM Par. O Ministério Público gaúcho alegou falta de provas e arquivou o processo. Em um plebiscito, realizado em agosto de 2009, a população decidiu que a área deveria continuar pública e que não poderia receber prédios residenciais, obrigando a empresa a mudar o projeto. As obras, entretanto, só começaram em 2019, com a licença de instalação entregue em cerimônia promovida por Marchezan.

O Golden Lake também não teria prosperado sem o apoio político que entregaria à Multiplan o terreno para instalar o projeto imobiliário. O local pertencia ao governo do Estado, estava cedido ao Jockey Club do Rio Grande do Sul e não podia ser vendido a terceiros. A ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) resolveu o impasse doando as terras ao clube em 2010. O Jockey então negociou uma permuta com o empreendedor: ao entregar o terreno de 166 mil m², receberia em troca uma torre comercial, além de uma reforma para parte da área do clube, mas a empresa mudou o acordo e decidiu pagar em dinheiro o valor correspondente.

O empresário José Isaac Peres aprovou com a Prefeitura 18 prédios de uma só vez para povoar um bairro de luxo privado com vista eterna para o Guaíba. Algo inédito em Porto Alegre. As obras do primeiro condomínio, Lake Victoria – que ainda está em construção –, também só começaram uma década depois da compra do terreno. O tempo de espera parece ter valido à pena. Hoje, um único apartamento no condomínio pode custar mais de R$ 11 milhões. A generosidade do Estado renderá cerca de R$ 164 milhões aos cofres do Jockey e outros mais de R$ 3 bilhões ao dono da Multiplan.

 

Golden Lake. Foto: Luiza Castro/Sul21

A Arado Empreendimentos foi ainda mais longe. Conseguiu liberar, em agosto deste ano, na SMAMUS, o estudo de viabilidade urbanística para o bairro que ela pretende construir na antiga Fazenda do Arado Velho. A previsão da empresa é criar 2.300 lotes para a construção de imóveis, o que trará um aumento populacional de 70% para o bairro Belém Novo, segundo o documento.

A aprovação do EVU, no entanto, estava condicionada à mudança do regime urbanístico da área da Fazenda. Para resolver a questão, o governo de Sebastião Melo elaborou um projeto de Lei Complementar que foi aprovado na Câmara de Vereadores, mas o estudo ambiental elaborado pela empresa Profill Engenharia e Ambiente S.A, e que baseou a alteração legislativa, foi declarado em parte como “falso/enganoso/omisso”. A afirmação consta em laudo do Instituto Geral de Perícias (IGP), em inquérito da Polícia Civil.

A audiência pública exigida pela legislação foi feita online em 2021. Aos moradores da região que tinham direito de participar, foi oferecido um espaço limitado a 60 pessoas por conta da pandemia de covid-19.

Vinte e cinco anos foi o tempo que o proprietário de um terreno na altura do número 500 da avenida Senador Tarso Dutra, no bairro Petrópolis, esperou para receber a licença para iniciar as obras do Complexo Belvedere. O empresário André Meyer pretende construir ali torres comerciais e residenciais, shopping center e um hipermercado Zaffari. “O nosso objetivo é fazer um pequeno novo bairro.”

Idealizado ainda em 1995, o projeto precisou passar por inúmeras modificações por localizar-se em área de preservação permanente – as intervenções nesses locais exigem alterações no regime urbanístico da cidade, pois estão protegidos por lei. No terreno há uma nascente, vegetação nativa, remanescente de Mata Atlântica, e fauna silvestre.

Em quase três décadas de tramitação a proposta foi submetida a audiências públicas em 2002 e colocada em suspenso até 2006, quando a Belvedere Participações LTDA assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público. Na ocasião, os empreendedores se comprometeram a readequar o projeto por conta do impacto ambiental que causaria às reservas subterrâneas de água. Foi excluída, por exemplo, a implantação de um posto de combustíveis, pois no aquífero há uma fonte de água mineral.

Em todos esses casos, não foi possível saber precisamente quais obras de mitigação e compensação de impactos – obrigatórias aos empreendimentos de grande porte – foram concluídas pelos empreendedores.

Segundo a Procuradoria-Geral do Município, responsável por elaborar os Termos de Compromisso e monitorar a entrega dessas obrigações, a Melnick ainda não entregou a ciclovia prevista no contrato assinado para o licenciamento do Complexo Pontal, já inaugurado. Em relação ao Condomínio Golden Lake e ao Complexo Belvedere, ambos em construção, não foi possível saber precisamente quais obras de mitigação e compensação de impactos foram concluídas pelos empreendedores, pois a PGM disse à reportagem que parte das obrigações previstas haviam sido executadas, mas na relação enviada não estão especificadas todas as entregas, as comprovações também não foram fornecidas.

Indo na direção oposta do que determina o Plano Diretor, Melo tem governado por decretos e leis complementares com escassa participação social. Os programas Reabilitação do Centro Histórico e +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito foram instituídos pelas leis complementares 930/2021 e 960/2022, respectivamente, criando um “Plano Diretor” específico para duas regiões da cidade. Em ambos os planos há espaços abertos que poderão ser definidos posteriormente via decreto ou “a critério do Executivo Municipal” – o que significa a mesma coisa.

O artigo 8º das duas leis traz nos incisos IX e XII texto idêntico que fala de ações relacionadas à implementação dos programas, entre elas consta: “estabelecer meios de consolidar a participação da sociedade por meio de ferramentas participativas”.

O 4º Distrito é uma área da região norte de Porto Alegre onde estão os bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo, Humaitá e Farrapos, e tem hoje quase 60 mil moradores. No entanto, segundo o Relatório de Participação da Sociedade, elaborado pela SMAMUS e pela Diretoria de Planejamento Urbano municipal, 801 pessoas participaram das reuniões para debater a implementação do Plano. Outras 116 participaram da consulta pública online, a maioria – cerca de 65% – não era morador do 4º Distrito, sendo 46,55% apenas frequentadores da região.

O envolvimento da população residente no Centro Histórico foi ainda menor: 267 pessoas participaram das reuniões realizadas online pela equipe técnica da Prefeitura, devido à pandemia de covid-19. Um questionário virtual para colher críticas e sugestões sobre o programa foi respondido por outras 746 pessoas, o que não chega a 3% dos quase 40 mil moradores do bairro. Novamente, a maioria do público que participou da pesquisa online – 76,9% – não residia na região.

 

4º Distrito é um dos focos da atual gestão. Foto: Luiza Castro/Sul21

Em setembro, uma denúncia de entidades da sociedade civil foi levada ao Ministério Público de Contas (MPC) do Rio Grande do Sul, apontando irregularidades nas três leis aprovadas na administração do prefeito Melo e que promoveram mudanças no regramento urbanístico da cidade. De acordo com o documento, as chamadas Lei do Centro, Lei do Arado e Lei de Regeneração do 4º Distrito apresentam “falta de conformidade com princípios legais, ausência de estudos econômicos e de medidas que possam preservar áreas históricas e culturais, além de concessão de benefícios sem especificar os critérios adotados”.

Uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado na Prefeitura de Porto Alegre, em andamento, identificou possíveis irregularidades envolvendo os programas. O último parecer elaborado pelo Procurador-Geral em Exercício do MPC, Geraldo Costa da Camino, destaca “a criação de incentivos alheios ao Estatuto das Cidades e ao regramento urbanístico do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, com potencial dano ao erário e à coletividade”. O documento também aponta ilegalidade no instrumento criado pelo Executivo municipal, não atendimento à Demanda Habitacional Prioritária, ausência de contrapartidas e falta de sustentabilidade financeira dos programas.

No último despacho do MPC, Da Camino ratifica que a Prefeitura deve se abster de novas aprovações e suspender autorizações já concedidas a qualquer projeto enquadrado pelas Leis Complementares 930/2021 e 960/2022 que envolvam isenções, descontos ou a compra de outorga onerosa do direito de construir até sejam sanadas as falhas.

Outros dois inquéritos civis tramitam no MPE, por meio da Promotoria de Justiça da Habitação e Defesa da Ordem Urbanística. Um deles, de 2019, acompanha o andamento das atividades que estão sendo desenvolvidas durante a revisão do Plano Diretor. O outro, de 2021, trata dos programas do Centro Histórico e 4º Distrito.

Procurada, a Prefeitura respondeu apenas após a publicação da reportagem, afirmando que: “Desenvolvimento com sustentabilidade e responsabilidade ambiental é um dos pilares desta gestão, que trabalha desde o início para modernizar regramentos e estimular propostas que agreguem inovação, qualidade de vida, empreendedorismo e oportunidades no presente e no futuro da cidade e dos cidadãos”.

O gabinete de comunicação da Prefeitura disse ainda que “a Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade responde pelo conjunto dessas estratégias, junto com demais órgãos do governo, e pode esclarecer eventuais pontos”.

À reportagem, a SMAMUS afirmou em nota que todas as suas ações foram e são pautadas pela legalidade e por análises técnicas, sejam jurídicas, arquitetônicas, urbanísticas ou ambientais e que os órgãos de controle, como Ministério Público e Tribunal de Contas, acompanham permanentemente a gestão por meio de pedidos de informações e documentos. “Cada solicitação é respondida de forma ágil e respeitosa, pois compreendemos o papel fundamental de quem atua para resguardar os interesses da coletividade”.

Sobre a gestão democrática, a Secretaria afirma que, na revisão do Plano Diretor, mais de 5 mil pessoas participaram dos encontros. “Já são quase cinco anos de oficinas, exposições e reuniões que somaram, apenas no último ano, cerca de 600 horas de trabalho conjunto com representantes da sociedade”. Observa ainda que todas as atividades são divulgadas previamente, com apoio da imprensa local.

A gestão democrática é reconhecida como uma diretriz para o desenvolvimento sustentável das cidades, com base nos preceitos constitucionais da democracia participativa, da cidadania, da soberania e participação popular e é um dos preceitos do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001).

O promotor de Justiça Cláudio Ari Pinheiro de Mello afirma que não há brecha nenhuma na legislação e que os planos setoriais criados em Porto Alegre violam o Estatuto da Cidade e ferem a Constituição. “Plano Diretor é lei, e como se trata de planejamento urbano tem que respeitar as regras do Estatuto da Cidade. A Constituição diz que o Plano será elaborado por lei da Câmara de Vereadores e deve resultar de um processo altamente democrático, não estando sob o comando do gabinete do prefeito. Portanto, as fragmentações dessas decisões não só são ilegais como são inconstitucionais. Simples assim”.

Pinheiro de Mello é enfático ao dizer que Porto Alegre não está respeitando o que determina a legislação. “O que a gente tem visto acontecer nos últimos dez anos é uma sabotagem da democraticidade de várias formas. No final da década de 2000, o Ministério Público anulou diversas leis por falta de audiência pública. A consulta pública passou a ocorrer formalmente, mas a Prefeitura começou a fazer de tal forma que as audiências acontecem, mas, na verdade, o que a população leva para essas audiências não tem nenhum impacto sobre a decisão efetiva sobre o planejamento urbano. Então elas têm, eu diria, uma simulação de democratização. Porque a democratização implica que o processo decisório vai ser impactado pela participação popular”, diz.

Inúmeras outras denúncias têm chegado ao Ministério Público Estadual sobre a condução da aprovação dos projetos especiais pela Prefeitura, muitas acabam arquivadas. O promotor diz que gostaria de ver o órgão atuando mais no questionamento desses atos, mas reconhece que há despreparo dos profissionais para enfrentar a matéria. “Nós não fomos competentes na judicialização de questões envolvendo habitação e ordem urbanística. Não foi um tema priorizado pela instituição. A própria justiça brasileira também não tem muita experiência com o tema da ordem urbanística. Me parece que isso está relacionado a uma espécie de baixa qualificação nessas áreas que são complexas.”

Pinheiro de Mello diz que que assumiu a Coordenação do Centro de Apoio Operacional da Defesa da Ordem Urbanística do MPE em junho deste ano com duas expectativas: que o órgão retome o seu protagonismo nessas áreas e que a sociedade se organize para estar em todas as frentes. “Existe um processo de deslegalização do Plano Diretor que está em curso em Porto Alegre, isso é ilegal. Esses temas vão constar expressamente na posição institucional do Ministério Público. Estamos formulando extensa documentação sobre planejamento urbano e a sua relação com o Plano Diretor”, afirma.

Para ele, também falta engajamento social. “A sociedade civil tem a mesmíssima legitimidade do Ministério Público. A receita que eu daria para as situações em que o MPE não é efetivo seria o protagonismo das associações de movimentos sociais e coletivos da sociedade civil. Porque eles têm que ser levados à justiça.”

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