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8 de junho de 2011
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12:27

Especial Fase (II): Quem são e como vivem os jovens internos no RS?

Por
Sul 21
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Rachel Duarte

A realidade é que o “bagulho é loko”, disse G.S. a nossa reportagem quando perguntado qual era a realidade da vida que diz já estar retratada nas letras de rap. G.S. tem 19 anos e sonhava, como muitos meninos brasileiros, em ser um jogador de futebol. Criado na Vila Santa Rosa, zona Norte de Porto Alegre, G.S tinha habilidade e chegou a treinar nas categorias de base do Esporte Clube São José. Mas, cresceu sem o pai (faleceu de doença na infância de G.S) e perdeu a mãe (também por motivo de doença) quando entrou na adolescência. A dor da perda fez com ele largasse o futebol, o estudo e o sonho em ser alguém na vida. A vulnerabilidade emocional foi apenas uma das circunstâncias que o levaram a ter desavenças que acabaram em duas mortes. Resultado: 2 anos e 9 meses cumprindo medida sócio-educativa na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase-RS) por duplo homicídio.

Ramiro Furquim/Sul21

G.S. conta com voz embargada como são os dias dentro da “cadeia”. A noção do tempo se altera, o humor fica instável. As necessidades pessoais seguem e saciá-las requer cuidados em relação às regras da instituição. Algumas delas saltam aos olhos. Ao percorrer os quartos, percebe-se uma decoração muito do estilo, da personalidade e dos desejos dos adolescentes privados de liberdade.

G.S. está cumprindo sua medida na unidade com maior controle de segurança e rigidez no trato com os jovens, a Comunidade Sócio Educativa (CSE). A unidade é uma das quatro que funciona na Vila Cruzeiro; tem capacidade para 120 adolescentes. Ela se destina à execução exclusiva de medidas de internação para jovens adultos de 18 a 21 anos.

Ramiro Furquim/Sul21

Há sete anos na Fase e há três meses como diretor da CSE, Alexandre Santana fala de um dos aspectos mais presentes no dia-a-dia dos sócio-educadores e funcionários que trabalham na Fundação: o aprendizado de valores essenciais perdidos ou nunca experimentados pelos adolescentes internados. “Cada funcionário traz da sua experiência de vida a melhor forma de lidar com os adolescentes e estabelecer os limites e regras da casa”, diz.

A rotina de um interno

Ramiro Furquim/Sul21

Horários para tudo. Acordar, comer, tomar banho, visita, estudo e atividades de lazer. Dependendo da unidade de internação, os jovens podem ter menos ou mais liberdade para os hábitos pessoais e menos ou mais possibilidades de ocupação. Conseguir oferecer toda a estrutura de atividades culturais, esportivas e a qualificação técnica para sair da Fase com um diploma e uma possibilidade de trabalho ainda é um desafio para o estado. Mas, em sua maioria, as unidades dispõem de professores, psicólogos e assistentes sociais, além dos sócio-educadores que acompanham os jovens dentro das casas.

Ramiro Furquim/Sul21

Os objetos de higiene pessoal são comprados por um funcionário, mas os recursos vêm da família dos adolescentes. A limpeza das unidades e a decoração dos quartos é feita pelos próprios adolescentes. Quando há transferência, os que chegam para ocuparem os quartos arrumam como querem. Não raro as paredes ficam repletas de imagens de praia, mulheres com pouca roupa, símbolos de clubes de futebol ou outras figuras, todas relativas à vida fora da internação.

As medidas sócio-educativas se dividem em Internação Com Possibilidade de Atividades Externas (ICPAE) ou Internação Sem Possibilidade de Atividade Externa (ISPAE). Conforme a medida, o adolescente pode sair da unidade para trabalhar dentro da Fase ou num emprego fora e passar os finais de semana em casa. Os que não têm este direito, têm sua liberdade restrita na Fase, com poucas opções de ocupação.

Ramiro Furquim/Sul21

No Centro de Atendimento Sócio-educativo Regional de Porto Alegre I, também na Vila Cruzeiro, os jovens relatam que há liberdade na rotina diária. A possibilidade de circular no pátio, ver televisão e tomar banho quando aberto o horário para acessar os banheiros é vista como um grande prêmio pela maioria.

Com capacidade para 55 internos e com 127 jovens internados atualmente, a Case Poa I consegue administrar a superlotação ofertando mais flexibilidade para os jovens. O diferencial para isso, segundo o diretor Jacob Baumgartiner, é a política da administração da unidade e o perfil dos adolescentes. “Muitos adolescentes são originários do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre. São meninos com porte menor porte e faixa etária entre 14 e 15 anos. Os atos infracionários são mais leves também. Normalmente não entram reincidentes. Então eles podem ficar soltos pelo pátio que não há motins nem fugas”, disse.

Ramiro Furquim/Sul21

O diretor alerta que as regras e condutas são rígidas, como em qualquer outra unidade. “Há cuidado especial com o tratamento pessoal ou comportamento. Xingamentos e abusos não são permitidos”, ressaltou.

No Case Poa I há uma horta que também é muito bem explorada pelos administradores. Técnicos agrícolas vão até a unidade duas vezes por semana e ensinam aos jovens a produção de hortaliças, ervas e temperos. “O contato com a terra e o cultivo das hortaliças auxilia na construção de novos valores, como cuidar de uma vida”, diz Baumgartiner.

A relação com o trabalho: uma lição de vida?

A postura dos jovens privados de liberdade que cumprem medidas sócio-educativas dentro da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase-RS) não é homogênea. Alguns aprendem a fazer coisas que servirão para um futuro trabalho no retorno à sociedade e parecem conformados. Outros, não veem a hora passar e buscam no trabalho apenas um aliado para os dias — muito bem contados — que faltam para deixarem as unidades e voltar para a rua.

Difícil não julgar a fala franca do jovem L.F. Diz ele que muitos adolescentes que vão parar na Fase pensam que é muito mais fácil roubar e ganhar dinheiro rápido e em grande quantidade.

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L.F. cumpre medida e já pode exercer atividades externas. Ele encontrou na oficina de chapeação oferecida no Centro de Convivência (Cecon), na sede administrativa da Fase, uma alternativa ao tráfico. Ele pensa em aproveitar o aprendizado para não ter o mesmo destino de toda a sua família: um irmão morto, dois irmãos presos e a mãe presa em razão do tráfico de drogas.

O Cecon oferece 10 oficinas que vão do artesanato, mecânica, gastronomia à confecção de sabonetes e velas. O espaço é acessado pelos adolescentes que já estão em regime com possibilidade de atividade externa. Nos turnos da manhã e da tarde, as aulas são ministradas pelos funcionários da Fase.

Ramiro Furquim/Sul21

A coordenadora de uma das oficinas, Leiva Pereira, conta que o aprendizado de coisas simples é valioso para os jovens e influencia positivamente em seu comportamento. “Os jovens ficam mais maleáveis. O ambiente aqui é agradável. É um ambiente aberto e colorido, dá um ar de liberdade”, diz.

Os produtos fabricados pelos adolescentes são vendidos dentro e fora da Fase e o lucro é dividido entre a instituição e os jovens. Os interessados podem conferir o trabalho deles no shopping Praia de Belas, em Porto Alegre, até o próximo domingo (12). Panos de prato, aromatizantes, sabonetes, velas, arte decorativa (pinturas em MDF, gesso e tecido), cerâmica (em argila e concreto celular) são alguns dos produtos que integram a exposição.

Outra iniciativa do Cecon é uma rádio com transmissão de programas noticiosos e de opiniões realizados pelos jovens. A programação musical também é selecionada por eles e reproduzida no espaço de convivência da unidade. Cada jovem tem direito a dois meses como radialista e os que completam 75% de frequência recebem um certificado.

Ramiro Furquim/Sul21

O projeto da rádio existe há três anos e a oficina é ministrada em software livre, mas, por incrível que pareça, os programas não são gravados ou aproveitados para veiculação externa. Porém, de acordo com o coordenador Jovaldri Lanza, existe uma possibilidade de uma parceria com a Procergs para veiculação dos programas no site da Fase.

Além das oficinas, os jovens são aproveitados para trabalhos na unidade administrativa da Fase. No Centro de Atendimento Sócio-educativo Padre Cacique, por exemplo, um adolescente que já está no fim da sua medida teve a oportunidade de ser contratado como auxiliar administrativo da Presidência da Fase. Com 17 anos e uma larga experiência no tráfico de drogas no litoral gaúcho e roubo de cargas na BR-116 (Canoas – Porto Alegre), L.P. conversou com a nossa equipe no seu primeiro dia no novo trabalho (1º de junho). “É legal. Vamos ver como será”, disse o jovem que já está pela segunda vez privado de liberdade. Em 2009, ele foi pego por roubo de cargas e ficou 45 dias privado de liberdade. Agora, já está há um ano e sete meses cumprindo medida e planeja estudar e trabalhar quando retornar à sociedade.

Ramiro Furquim/Sul21

O tempo máximo de um interno na Fase é três anos e o mínimo seis meses. O tempo pode não ser o suficiente para muitos amadurecerem ou estarem prontos para a ressocialização. Porém, as lições de vida dentro de uma instituição como a Fase acabam atingindo alguns jovens para além da ambição por um trabalho ou uma vida melhor. “Quando eu sair eu vou ganhar muito mais do que no tráfico. Vou ganhar minha liberdade de volta. O dinheiro não é tudo na vida. A vida é muito mais que o dinheiro, que a fama…”, disse um deles.

* Segunda de quatro reportagens. Fotos de Ramiro Furquim e vídeo de João Seggiaro.

Primeira Parte: Especial Fase (I): A realidade que leva os jovens à internação


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